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Reintrodução do mutum-de-Alagoas está próxima da realidade

Um casal já está no processo de adaptação à natureza e deverá ser solto já no ano que vem. Espécie desapareceu da natureza há quase 30 anos

Carolina Lisboa ·
15 de outubro de 2017 · 7 anos atrás
Extinta da natureza na década de 80, o mutum-de-alagoas está pronta para voltar pra casa. Foto: Marco Freitas.
Extinta da natureza na década de 80, o mutum-de-alagoas está pronta para voltar pra casa. Foto: Marco Freitas.

Após cerca de três décadas sem registro na Mata Atlântica, o mutum-de-alagoas (Pauxi mitu), também conhecido como mutum-do-nordeste, finalmente volta para casa. A história desta que é a única espécie brasileira na categoria Extinta na Natureza (EW) da Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção e da Lista Vermelha da IUCN iniciou-se há 42 anos, quando o conservacionista carioca Pedro Mário Nardelli foi a Alagoas resgatar alguns exemplares antes que a mata onde viviam fosse completamente destruída.

Este é o primeiro caso de reintrodução de espécie extinta na natureza no Brasil. Em 22 de setembro, um casal da espécie foi colocado em um viveiro de 400 m2 para início do processo de adaptação. A ação marcou a inauguração do Centro de Educação Ambiental Pedro Mário Nardelli, localizado na Usina Utinga Leão, em Rio Largo, Alagoas. Na ocasião, o governador Renan Filho (PMDB) assinou o decreto que torna a ave símbolo do estado de Alagoas. Estavam presentes cerca de 200 pessoas no evento, dentre elas o idealizador do projeto, Fernando Pinto, do Instituto de Preservação da Mata Atlântica (IPMA); o coordenador da Sociedade de Pesquisa em Vida Silvestre (Crax) e um dos responsáveis pela reprodução da espécie, Roberto Azeredo; e o ator Vitor Fasano, um entusiasta da conservação.

O espaço será aberto ao público em 2018, e um contrato entre a Usina Utinga Leão e o IPMA, que durou 10 anos e foi prorrogado por mais 20 anos, permitirá que outros três casais da ave sejam trazidos para Alagoas e reintroduzidos na natureza.

Durante o evento, Roberto Azeredo relatou o quão complexo vem sendo reintroduzir a espécie: “Olha como é grave deixar uma espécie chegar a esse nível de ameaça. Trabalhamos durante 42 anos para chegar nesse momento de trazer a ave de volta a um viveiro de Alagoas. Foi um alto nível de complexidade, com muitas pessoas envolvidas. O valor disso não é só para nós que fizemos o trabalho, mas também para o Estado de Alagoas”, disse ele.

Fernando Pinto descreveu os próximos passos para a reintrodução da espécie: “Quando tivermos o relatório do Batalhão Ambiental dizendo que não temos mais caçadores e que tudo está se encaminhando bem, no primeiro semestre de 2018 estaremos soltando o mutum na mata”.

Assinatura do decreto que tornou o Mutum-de-alagoas (Pauxi mitu) ave-símbolo de Alagoas. Foto: Ascom/AL.
Assinatura do decreto que tornou o Mutum-de-alagoas (Pauxi mitu) ave-símbolo de Alagoas. Foto: Ascom/AL.

Marco Antonio de Freitas, analista ambiental do ICMBio lotado na Estação Ecológica (ESEC) de Murici, área protegida que está a menos de 50 km da área de reintrodução, participou do evento e falou da importância da ação: “É motivo de muito orgulho ver a volta de uma espécie extinta na natureza. E não se trata de uma espécie qualquer. Trata-se de uma espécie emblemática, de porte grande para as aves, e que é considerada uma espécie-bandeira [por ser muito chamativa e carismática] e também uma espécie “guarda-chuva” [termo utilizado para designar espécies que, quando protegidas, toda a área ou ecossistemas envolvidos em sua área de vida, bem como todo o conjunto de espécies que vivem ali, são também beneficiados]”.

O analista chama atenção para uma ação fundamental para o sucesso da reintrodução, que é a fiscalização: “A área de mata, apesar de possuir um fragmento de Mata Atlântica bem conservada em parâmetros de vegetação e sua estrutura, precisa de um controle efetivo contra os caçadores, que não só deverá ser feito pelo Batalhão de Polícia Militar Ambiental (BPA), mas por monitoramento semanal, haja vista que o hábito cultural da caça é algo muito difícil de ser erradicado, principalmente no Nordeste, e também por conta das fracas ou inexistentes ações de fiscalização”, esclareceu. Como gestor de Unidade de Conservação, ele também faz sugestões: “O monitoramento deveria ser efetivado por pelo menos dois “guardas florestais” contratados para fazerem rondas diárias na região, de forma que a fiscalização seria constante e, quando possível, a visita do batalhão Ambiental de Alagoas ocorreria em ações mais incisivas. Aliado à fiscalização, um forte trabalho de educação ambiental deveria ser feito em todo entorno da floresta”, explicou.

Conservação

A espécie foi descrita no século XVII pelo naturalista alemão George Marcgraf e permaneceu sem registros até sua redescoberta, em 1951, pelo ornitólogo Olivério Pinto. No início dos anos 70 havia registros de cerca de 20 indivíduos ou menos, em quatro fragmentos de floresta. Em 1976, Pedro Nardelli obteve o primeiro exemplar, uma fêmea de seis anos, que morreu pouco depois. Em 1979, conseguiu cinco exemplares, dois machos e três fêmeas, sendo que um casal não se reproduziu. Assim, todo o conjunto gênico da espécie é oriundo de apenas um macho e duas fêmeas. Segundo a IUCN, os últimos registros da espécie em habitat silvestre foram feitos por caçadores, com indivíduos caçados provavelmente entre 1984 e 1988.

Viveiro onde habitará as duas aves até a reintrodução definitiva. Foto: Marco Freitas.
Viveiro onde habitará as duas aves até a reintrodução definitiva. Foto: Marco Freitas.

A espécie foi salva da extinção graças aos esforços de reprodução e conservação desenvolvidos pelo zoobotânico Mário Nardelli, no Rio de Janeiro, que aumentou o número de indivíduos de 12 para 44. Em 1999, o local fechou por dificuldades financeiras e 24 de seus exemplares foram enviados para a Crax, em Contagem, Minas, e para o Criadouro Científico e Cultural Poços de Caldas, em Poços de Caldas, também em Minas. Hoje, cerca de 230 indivíduos, alguns deles híbridos de mutum-de-alagoas e mutum-cavalo (Pauxi tuberosa), sobrevivem em cativeiro em três criadouros e centros de pesquisa em Minas Gerais, Rio de Janeiro e no Parque das Aves, em Foz do Iguaçu, onde também houve sucesso na reprodução dos casais.

Desde seu resgate por Pedro Nardelli, muitos têm sido os esforços para reproduzir a espécie em cativeiro e salvá-la da extinção. As ações para a reintrodução nas reservas de Mata Atlântica em Alagoas iniciaram em 1998, envolvendo diversos órgãos, dentre eles a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh), o Instituto do Meio Ambiente (IMA-AL), o Batalhão de Proteção Ambiental (BPA) da Polícia Militar de Alagoas, o Ministério Público Estadual (MPE) e o Instituto para Preservação da Mata Atlântica (IPMA). O ICMBio elaborou um Plano de Ação Nacional específico para a ave, o PAN Mutum-de-alagoas, que se encerrou em dezembro de 2013 com 56% de suas ações implementadas. A espécie foi então recepcionada no Plano de Ação Nacional para Conservação de Aves da Mata Atlântica.

O mutum-de-Alagoas foi extinto da região de Mata Atlântica ao norte do rio São Francisco, conhecida como Centro de Endemismo Pernambuco (CEP), onde era a maior ave terrestre. A colonização da área iniciou-se no século XVI e se estende até hoje, onde persistem o desmatamento para cultivo de cana-de-açúcar e a caça de animais silvestres. Na década de 70, um forte ciclo de desmatamento ocorreu no CEP, incentivado pelo programa Proálcool. À revelia do Código Florestal Brasileiro e sem qualquer intervenção de órgãos responsáveis pela proteção dos recursos naturais, muitos fragmentos de mata foram dizimados. Atualmente, as matas do CEP encontram-se bastante degradadas, havendo poucos remanescentes com mais de 500 hectares. O maior deles tem está na ESEC Murici, com 2.700 hectares. Assim, não é surpresa que as localidades com o maior número de espécies de aves ameaçadas de extinção no mundo encontram-se em Alagoas e Pernambuco, onde restam menos de 2% de cobertura vegetal nativa. A reintrodução do mutum depende da integridade dos remanescentes de Mata Atlântica, principalmente os das Usinas Serra Grande e Utinga Leão em Alagoas, que estão entre os mais aptos a receberem a ave, bem como alguns fragmentos em Pernambuco.

Os mutuns não foram as únicas aves do Centro de Endemismo Pernambuco a serem extintas. Na lista também estão o gritador-do-nordeste (Cichlocolaptes mazarbarnetti), o caburé-de-pernambuco (Glaucidium mooreorum) e o limpa-folha-do-nordeste (Philydor novaesi), com os últimos registros entre 2004 e 2011 em remanescentes como a ESEC Murici e a RPPN Frei Caneca. Infelizmente, estas aves não tiveram a mesma sorte em ter alguém como Pedro Nardelli para salvá-las da extinção. Contudo, por se tratarem de espécies pequenas e de difícil detecção na mata, ainda há esperança de que elas possam ser redescobertas. Na revisão da lista de espécies ameaçadas do Brasil realizada pelo ICMBio no início de 2017, na qual 12.254 espécies foram avaliadas, 1.192 possuem algum grau de risco de extinção e onze foram consideradas extintas.

O mutum-de-alagoas (Pauxi mitu). Foto: Marco Freitas.
O mutum-de-alagoas (Pauxi mitu). Foto: Marco Freitas.

 

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  • Carolina Lisboa

    Jornalista, bióloga e doutora em Ecologia pela UFRN. Repórter com interesse na cobertura e divulgação científica sobre meio ambiente.

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Comentários 3

  1. Parabéns pelo ótimo artigo e com uma noticia tão otimista e animadora! Tomei a liberdade de transcrever em meu blog: http://www.jornaldasavesepeixes.net/2017/10/mutum


  2. ccpianca diz:

    Parabéns pelo trabalho e desejo muito sucesso para os lindos mutuns.


  3. bruno r. padovano diz:

    Parabéns a todos os envolvidos e em particular ao zoobotânico Mário Nardelli, um exemplo de cientista preocupado com a preservação da bio-diversidade brasileira e terrestre.