Reportagens

Produção bovina concentra em 55 municípios metade do desmatamento associado

Expansão de pastagem foi responsável por 81% do desmatamento na Amazônia brasileira e 54% no Cerrado em 2018, segundo dados publicados pela Trase

Daniele Bragança ·
14 de julho de 2020 · 4 anos atrás
55 de 2.803 municípios produtores concentram 50% do desmatamento associado à produção bovina. Foto: Greenpeace/Marizilda Cruppe/EVE.

A pecuária é o principal vetor que impulsiona o desmatamento na Amazônia brasileira. Mas essa derrubada de floresta para dar lugar ao pasto está mais concentrada do que se pensava. Segundo pesquisa divulgada no começo do mês pela Trase, apenas 2% dos municípios brasileiros com atividade pecuária concentram 50% do risco de desmatamento associado ao setor.

A Trase é uma iniciativa das organizações Stockholm Environment Institute e Global Canopy, duas organizações sem fins lucrativos, e desenvolveu um modelo onde utiliza os dados de exportações de soja ou de gado de cada município e o associa ao desmatamento local.

Segundo o último relatório, derrubar florestas para dar lugar a pastagens foi responsável por 81% do desmatamento na Amazônia brasileira e 54% no Cerrado em 2018. Cerca de 1,1 milhão de hectares foram desmatados na Amazônia e no Cerrado por causa da pressão exercida pela produção bovina para exportação.

A pressão da soja sobre a floresta é bem menor, comparada com a expansão de pasto, mas não chega a ser irrelevante. “A pecuária expande em cima da floresta, enquanto a soja expande em cima da pecuária”, explica Toby Gardner, diretor da Trase.

Em 2019, um terço da perda total de floresta tropical registrada em todo o mundo ocorreu no Brasil. E parte desse desmatamento está diretamente relacionada com a produção de commodities.

Porto Velho lidera o ranking de município com maior desmatamento associado à pecuária, seguido pelos municípios paraenses São Félix do Xingu e Altamira. Ariquemes (RO) e Canarana (MT).

Em entrevista ao ((o))eco, Gardner explica como o agrupamento dos dados de desmatamento e produção dão uma visão de quão concentrada estão os polos problemáticos da cadeia de commodities. Veja os principais pontos da  entrevista:

((o))eco: Como vocês fazem esse rastreamento de cadeia e relacionam isso ao desmatamento? 

O diretor da Trase, Toby Gardner. Foto: Anneli Sundin/SEI.

Toby Gardner: Para fazer o mapeamento da cadeia, o nosso método é inovador no sentido de ligar diferentes bancos de dados que não foram ligados até agora. Pegamos o dado de alfândega, os dados autodeclarados dos frigoríficos, onde eles trabalham, quem é o dono de quem, localização e os dados do GTA [Guias de Trânsito Animal]. Também usamos outros dados como, por exemplo, quais frigoríficos são credenciados para exportar para a China? Então, quando se junta todos esses dados, estamos tentando fazer a melhor conexão possível por cada município de produção. Esse dado gerado acabará incluindo a grande questão dos indiretos [o gado cuja origem é desconhecida – leia mais aqui], ou seja, a gente está ligando a produção ao frigorífico, à exportação, e esse conjunto de dados te dá várias maneiras de restringir a possibilidade do gado produzido num determinado município ir para uma certa empresa e ser exportado para um certo país. Por exemplo, a China. Como apenas certos frigoríficos podem exportar para a China, no nosso modelo não permite que o restante dos frigoríficos possa exportar para a China. Isso limita a zona de compra de cada empresa e de cada país.

Com isso sabemos qual a produção de gado de cada município, a exportação de gado por cada cadeia, sendo a cadeia um conjunto de carne que está sendo processada por uma empresa e exportada para determinado país. Rastreamos essa cadeia e cruzamos como os dados de desmatamento. Mas não é apenas o Prodes [Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite, que calcula o desmatamento anual na Amazônia], porque a gente precisa saber a expansão anual de pasto e por isso a gente usa o dado do Lapig [Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento, da Universidade Federal de Goiás (UFG)], que é o melhor centro de pesquisa da América Latina de mapeamento de pastagem.

O foco na pesquisa de vocês é na China e União Europeia? ou é expandido para o mundo inteiro?

“A tendência é que a China está importando mais e o restante do mundo está importando menos, mas a produção está aumentando.”

Todo mundo. Como eu falei no começo, a gente mapeia toda a cadeia em todas as regiões de produção do Brasil, por meio de todas as empresas que exportam a carne que são centenas, mas apenas 3 que dominam o mercado. Acontece que a China, mais Hong Kong, responde pela exportação da maioria da carne brasileira. E há outros países em jogo que são importantes: a Rússia, vários países do Oriente Médio, especialmente na questão do boi vivo, que a gente alerta no nosso relatório. Com as nossas estimativas, por meio dessa habilidade de fazer o mapeamento até a região de produção, calculamos que o risco de desmatamento associado à exportação de boi vivo é até cinco vezes maior do que a exportação de carne congelada. A União Europeia respondeu por até 7% em 2017 da exportação da carne brasileira.

A tendência é que a China está importando mais e o restante do mundo está importando menos, mas a produção está aumentando.

Vocês chegaram a uma consenso para explicar por que o boi vivo é mais associado ao desmatamento?

Sim, porque a produção está quase totalmente concentrada no Pará, que como você bem sabe, é um estado com novas fronteiras de desmatamento. São áreas com pouca governança territorial comparado com as áreas de onde vem a carne processada. Uma vez que você faz a média, têm muitas regiões que não têm desmatamento recente, isso baixa a média. Mas no caso do boi vivo, vem apenas do Pará. E quase todo o Pará tem desmatamento recente, então a média fica mais alta. Mas eu fiquei surpreendido que seja cinco vezes maior.

O que significa risco de desmatamento? 

Olha, a gente relata vários números no relatório como um todo, têm alguns números que falam sobre desmatamento em si, mas o risco de desmatamento, uma vez que você vê o número que corresponde ao risco de desmatamento, isso corresponde à exportação. É o risco que algum comprador, seja uma empresa, seja um país, está exposto ao risco de desmatamento. Por que  gente fala risco? porque a gente não sabe e não tem como saber, por causa da falha na transparência por parte das empresas, a origem definitiva de cada fazenda. Mas a gente pode resolver a origem do município.

E com base nisso, se o município tem 100 hectares de desmatamento, o comprador x está comprando 100 hectares de desmatamento atribuído à expansão para a criação de gado. Se esse comprador está comprando 50% da produção com fim de exportação, a gente atribui 50% do desmatamento desses 100 hectares, ou seja, 50 hectares. Porque sem mais dados, é a única maneira que você pode vincular o desmatamento com a exportação. Porque muitas vezes o frigorífico está comprando o boi de uma zona de compra grande. Então, o comprador não está comprando de uma determinada fazenda, eles nem sabem, porque a rastreabilidade dos indiretos foi pouco resolvida até agora. E o nosso método é um avanço nessa questão. Já que uma faixa de 20% da produção de carne brasileira é exportada, uma faixa de 20% do desmatamento total atribuído à produção de gado é ligado à exportação. É 1/5, mais ou menos.

Evolução do desmatamento em Porto Velho, até 2016. Imagem: Google Earth.

Por que Porto Velho lidera o ranking de município com maior desmatamento associado à pecuária? tem muitos frigoríficos lá? 

Tem. Porto Velho, sendo logicamente a sede do estado, tem uma zona de compra maior também. Rondônia está cheia de frigoríficos e tem uma fronteira agressiva de desmatamento.

Vamos falar sobre as outras commodities que não carne bovina. Vocês dedicaram parte do relatório à soja, né?

Por enquanto estudamos a soja, pecuária, mas também fizemos outros commodities, incluindo frango. O Brasil é o maior exportador de frango no mundo, bilhões de aves, coisa chocante, bilhões mesmo, quase toda a soja produzida para a alimentação de frango vem do sul do país, onde não tem desmatamento recente. Na média, o desmatamento ligado à exportação de frango é baixíssimo, nem se compara com o desmatamento embutido na exportação de carne. É mais de mil vezes menos que a carne.

E uma coisa interessante na carne é que o risco de desmatamento associado à exportação é muito concentrado. Então, a gente sempre soube dos hotspots do desmatamento, mas o tanto que isso é concentrado foi uma surpresa para mim. O fato de que 2% dos municípios correspondem a mais de 50% do risco de desmatamento, esse dado é bom, no sentido de que simplifica muito o problema. Então não é a questão de que o desmatamento corre por toda a cadeia, que ocorre em nível igual em todas as empresas. É concentrado e isolar essa questão é uma parte importantes do nosso trabalho no Trase.

Vocês entraram em contato com as empresas exportadoras, os campeões do setor, para apresentar o relatório? 

“O ônus da prova está com eles, para mostrar que o mapeamento da cadeia deles identifica que o risco é menor do que o que a gente está atribuindo.”

Esse relatório agora, a gente não compartilhou antes, mas temos um diálogo com eles, temos toda a abertura para dialogarmos mais com eles, porque a nossa intenção não é de fazer campanha, estamos fazendo pesquisa, tentando colocar dados e análises de credibilidade, de legitimidade que podem basear e nortear o processo de combater o desmatamento, o processo de melhorar a sustentabilidade da cadeia. Então os nossos dados podem muito bem facilitar, simplificar o trabalho das empresas e igualmente o trabalho das ONGs.

Normalmente, a respostas dos frigoríficos ao nosso relatório é que o nosso dado é cru e que eles [frigoríficos] não estão expostos a tanto risco assim. Mas sem maior transparência por parte deles, porque a transparência da cadeia do campo por meio de dados declarados é muito ruim e sem maior transparência, não tem como saber. Então a nossa análise é a melhor possível com os dados públicos disponíveis. É meio um jogo de ônus da prova. O ônus da prova está com eles, para mostrar que o mapeamento da cadeia deles identifica que o risco é menor do que o que a gente está atribuindo.

Uma vez que isso seja provado com algum tipo de auditoria e verificação independente, que não seja apenas a palavra deles, que não seria aceito em qualquer setor, a gente incorpora esses dados na nossa modelagem. E se for o caso de estar exposto a menos desmatamento, eles vão ficar melhor na foto nas análises do Trase.

Em relação à soja, a moratória está fazendo a diferença? Em relação à carne, a soja é tão problemática quanto? como você vê isso? 

Olha, tem várias partes na sua pergunta. Primeiro, a moratória da soja está tendo efeito sim, sem dúvidas. Diminuiu drasticamente o desmatamento atribuído diretamente à expansão da soja. Essa palavra diretamente é importante, vou voltar nela.

“É muito difícil não observar essa dinâmica e dizer que a expansão da soja não tem nada a ver com expansão do desmatamento na Amazônia.”

Mas a moratória tem várias limitações. Uma delas é que só cobre a Amazônia. Uma das explicações para que a moratória teve um efeito tão positivo na Amazônia é porque existe o Cerrado do lado. Então, é uma alternativa para a expansão. E expandiu. E a expansão da soja no Cerrado é problemática.

A gente estimou que uma faixa de 100 mil hectares do Cerrado em 2018 foi desmatado para a soja. Então, quando eu falo desmatado para a soja, isso significa desmatamento direto.

Usamos uma janela do tempo de 5 anos, com base em vários estudos e análises, para considerar o intervalo entre desmatamento e a safra da soja. Isto porque demora até 5 anos para preparar solo, para garantir crédito e muitas vezes, eles usam o gado nessa área por dois, três anos. Então isso é uma das limitações [da moratória]. O outro é que a moratória só considera desmatamento nas áreas onde foi plantada a soja, e tem propriedades que têm desmatamento fora da área da soja, mas mesmo assim dentro da propriedade. Em uma análise nossa, que foi publicada há algumas semanas, com foco no Mato Grosso, identificamos que grande maioria desse desmatamento foi ilegal. Essa é a segunda limitação. A terceira é a questão do desmatamento indireto e temos um estudo que fala sobre isso. Isso é importante principalmente na Amazônia, onde não estamos vendo a floresta sendo convertida para a soja, mesmo dentro de cinco anos, porém o desmatamento continua aumentando. O principal vetor do desmatamento é o gado, a pecuária, mas a pecuária se expande em cima da floresta, enquanto que a soja se expande em cima da pecuária. Não é questão que a área da pecuária está aumentando ao longo do tempo, está mais ou menos ajustado. Então, isso é uma evidência indireta que cada hectare de pasto que é perdido para a soja corresponde a pelo menos um hectare de floresta que é perdido para a expansão de pasto.

Brasil é o maior exportador de soja para a Europa. Foto: Marilze Venturelli Bernardes.

É muito difícil não observar essa dinâmica e dizer que a expansão da soja não tem nada a ver com  expansão do desmatamento na Amazônia. Lembrando também que o único uso da terra que expandiu muito nos últimos anos na Amazônia foi a soja. O gado expandiu um pouquinho, outros usos do solo expandiu quase nada comparado com a soja. Então, levando tudo isso em consideração, é muito difícil imaginar que a soja seja independente da dinâmica de desmatamento.

A moratória da soja permitir a expansão da soja em pastos e não em florestas, é isso? 

A moratória da soja não permite soja plantada em cima de áreas desmatadas depois de 2008. Mas se a floresta ainda está sendo convertida para pasto, a área de pasto que está sendo perdido para a soja não precisa avançar para cima da floresta para ter um efeito em indireto. Porque se não há soja, em princípio, você não perde área de pasto e não vai precisar esse tanto de pasto novo.

Imagina que você tem 100 hectares de pasto e 50 hectares de pasto está convertido para a soja. Então, se tiver uma demanda para a pastagem, você perdeu 50% dessa área, por  exemplo. Você perdeu 50%, mas a demanda ficou a mesma, a demanda para a terra, a demanda para a carne. Então, o que acontece é que quem estava produzindo carne e que perdeu ou vendeu para a expansão de soja, vai para outro lugar, esse outro lugar é a expansão para cima da floresta.

E essa expansão da soja para cima de área de pastagem só pode ocorrer se essa pastagem já existir em 2008?

Exatamente. A soja só vai expandir para cima da pastagem, se foi convertida antes de 2008.

E a pastagem vai para outro lugar, provavelmente para cima de floresta

Exato, que vai ser convertido depois de 2008.

 

 

Saiba Mais

SEI-PCS Brazilian beef v2.0 documentation

 

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  • Daniele Bragança

    Repórter e editora do site ((o))eco, especializada na cobertura de legislação e política ambiental.

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