Reportagens

Pecuarista indiciado por dano a geoglifo acumula multas ambientais

Assuero Doca Veronez, presidente da Federação da Agricultura do Acre, já foi multado pelo Ibama por desmatamentos e queimas irregulares

Duda Menegassi ·
11 de agosto de 2020 · 4 anos atrás
Local onde deveria estar o geóglifo. Crédito: Relatório IPHAN.

Na última semana ganhou repercussão a denúncia sobre um sítio arqueológico no Acre que foi destruído para que no local fosse plantado milho. Os geoglifos, como são chamados, são compostos por pequenas valas que formam desenhos geométricos quando vistos de cima. Feitos pelos povos pré-colombianos na Amazônia há cerca de 2 mil anos, foram aterrados e devastados pelo homem moderno e seu trator em menos de 1 dia. Como já havia revelado ((o))eco em sua reportagem anterior, o dono da propriedade, conhecida como Fazenda Crixá, é Assuero Doca Veronez, presidente da Federação da Agricultura do Acre. Pecuarista e ruralista acreano, o nome de Assuero acumula multas no Ibama por desmatamentos irregulares na Amazônia e no Cerrado.

Em entrevista ao ((o))eco, Veronez assumiu a culpa pelo estrago ao sítio arqueológico, mas alegou se tratar de um erro cometido pelo gerente da fazenda. Segundo ele, o aterramento ocorreu há mais ou menos 1 ano. Através de imagens de satélite obtidas pela reportagem em parceria com MapBiomas é possível confirmar a danificação do sítio já em julho de 2019.

“Essa área da Fazenda Crixá é contígua a minha [Fazenda Campo Grande] e ela foi adquirida há uns anos atrás e tomei conhecimento de que nela havia um geoglifo, uma estrutura dessas, de sítio arqueológico. Eu avisei e mostrei pro meu funcionário, que é gerente e que gerencia todos os trabalhos da fazenda. Mostrei para ele e disse que aquilo deveria ser preservado. Decorridos depois de uns 2 anos, quando fomos trabalhar nessa área para fazer agricultura nela, ele, por conta e risco dele, diante da dificuldade que estava sendo trabalhar com máquinas tendo a presença daquelas valas, que é característica do geoglifo, ele resolveu por conta dele aterrar essas valas, nivelar o terreno. Foi um erro do meu gerente que achou que era buraco demais para operar com as máquinas que a gente tem hoje, que são máquinas grandes – colheitadeiras, plantadeiras, tudo grande. E a máquina não tem jeito de entrar lá dentro, aquilo é um buraco. Pro serviço ficar do jeito que ele achava que tinha que ficar, resolveu fazer [o aterramento]. Ele sabia que não podia, mas também não pensou da importância história que tem isso, que é um sítio arqueológico, esse pessoal não tem instrução para isso”, afirma Veronez.


“Eu só fui verificar isso muitos dias depois, passando por essa área de serviço. Admoestei, mas já estava feito, não havia muito o que fazer àquela altura. Agora estamos diante do fato. Eu estou assumindo toda a responsabilidade pelo erro cometido pelo operador do serviço que é meu funcionário e estou assumindo toda a responsabilidade”, resume o pecuarista.

O Iphan só foi notificado sobre o dano ao sítio arqueológico com a denúncia feita em julho deste ano. “O procedimento correto seria não ter dano a sítio, até porque é crime. Mas caso ocorra, o que infelizmente acontece, sim, o proprietário deve notificar o Iphan”, esclarece a assessoria do Instituto.

No Laudo de Vistoria do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), feito no dia 27/07, a fiscal Antonia Barbosa descreve que é possível observar o impacto do plantio de milho, “sendo possível, também, notar sinais de colheita recente com uso de maquinário”. A representante do Iphan também constatou que não é mais possível visualizar as valetas e muretas características do sítio, “nos levando a acreditar que no momento do arado o solo foi aproveitado para nivelar o terreno, aterrando assim as valetas e mutilando as muretas das estruturas de terra (geoglifos)”.

A plantação de milho seria usada para reformar as pastagens já degradadas, técnica conhecida como Integração Lavoura-Pecuária. No final do laudo, a fiscal adiciona: “É válido acrescentar que a necessidade de consulta ao Iphan é de pleno conhecimento do proprietário, que está à frente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Acre durante muitos anos”.

Quem é Veronez?

O pecuarista Assuero Doca Veronez. Foto: Marcio Isensee e Sá.

Além da presidência da Federação da Agricultura e Agropecuária do Estado do Acre (FAEAC), Assuero Doca Veronez também já foi vice-presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, mas foi afastado em 2012 após ser preso, acusado de envolvimento em uma rede de exploração sexual comercial de menores. O pecuarista foi condenado em primeira instância a seis anos de prisão. O processo em segunda instância tramita em segredo de Justiça.

De acordo com a pesquisa feita por ((o))eco na base de dados abertas do Ibama, o pecuarista já foi autuado ao menos 4 vezes por infrações relativas à desmatamentos e queimadas irregulares. Quando questionado sobre as multas por infrações ambientais, Veronez disse não se lembrar das autuações, que deveriam ser “muito antigas”. Lembrou apenas de uma multa recebida por uma antiga propriedade sua em Campos Lindos, no Tocantins, num processo que, segundo o ruralista, ainda está em tramitação.

Conforme as informações do Ibama, foram 969,52 hectares desmatados de Cerrado sem autorização e uma multa de mais de 90 mil reais.

LEIA TAMBÉM: Tratores destroem geoglifos milenares para plantar milho

“Eu tenho uma autuação do Ibama, lá do Tocantins. Eu tinha uma fazenda lá que foi vendida vai fazer 20 anos e lá era uma área de campo, e foi feito lá sem a licença e me multaram e isso tá em grau de recurso até hoje. O Ibama não se manifestou mais e eu não sei como é que está isso. É coisa de 2001, 2002, eu acho. Eu vendi essa fazenda nessa época já. Aqui [no Acre], eu não me lembro de nenhuma multa aqui”, pontua o ruralista.

As autuações no Acre – das quais  Veronez não se lembra – correspondem a queima de 150 hectares de pastagem; desmate de 735 hectares; e “por desmatar, causar a morte ou suprimir espécies de qualquer formação vegetal”, todas essas ações sem a prévia autorização do Ibama.

Além do trabalho à frente da FAEAC, Veronez é o idealizador do projeto Amacro, que viraria uma região de desenvolvimento agropecuário entre os estados de Amazonas, Acre e Rondônia, nos moldes de Matopiba, região que abrange áreas do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, e que se transformou na mais nova frente de expansão da fronteira agrícola brasileira. Em março, ((o))eco publicou uma entrevista em vídeo sobre a Amacro com ele. (assista aqui na íntegra).

Desdobramentos do caso

O Iphan realizou o embargo da área, paralisando qualquer atividade que gere movimentação do solo, portanto o plantio, o arado e a colheita. A produção de gado não está embargada. A denúncia foi encaminhada ao Ministério Público Federal (MPF) do Acre, que já instaurou inquérito civil público e requisitou à Polícia Federal a instauração de inquérito policial para apurar os prejuízos causados ao sítio arqueológico e buscar a responsabilização civil e criminal por tais danos.

O MPF também oficiou o Instituto de Meio Ambiente do Acre para apurar se “foram exigidos estudos prévios ou a anuência do Iphan no procedimento de licenciamento das atividades realizadas na área em que se encontra o sítio arqueológico”.

Geoglifo que foi aterrado: Crédito: Relatório IPHAN.

O inquérito policial investigará eventual responsabilidade pelos crimes previstos na lei de crimes ambientais (Lei n. 9.605/1998), que protege este tipo de sítio, especialmente protegido pela Lei n. 3.924/1961.

O sítio arqueológico Fazenda Crixá está inscrito no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos desde o ano de 2008 e é fiscalizado pelo Iphan regularmente. Segundo relatórios do órgão, a última vistoria realizada na propriedade data de outubro de 2018. Na época, o parecer indicou que os geoglifos estavam íntegros, mas recomendou o monitoramento contínuo do sítio. “Com base no que foi observado durante a vistoria técnica na área do Fazenda Crichá [Crixá] as estruturas de terra do sítio não foram impactadas, contudo há extensas plantações de cana-de-açúcar no entorno. Isto justifica a continuidade de fiscalizações periódicas”, conclui o parecer da técnica do Iphan, Cristiane Martins.

Em julho de 2019, uma nova tentativa de vistoria do Iphan acabou frustrada ao encontrar uma porteira fechada com cadeado e ao enfrentar uma forte chuva que teria dificultado a locomoção na estrada com lama.

Perguntado sobre as vistorias do Iphan, Veronez explicou que “nem fiquei sabendo dessa vistoria aí [de 2018]. “Eu vou muito pouco lá. Eu tenho meus trabalhos, a Federação de Agricultura, até ano passado eu viajava demais, estava sempre em Brasília, tudo. Com o problema da Covid aí, parou”, justifica para depois acrescentar que também não sabe quem teria atendido os fiscais na visita de 2018, inclusive se pode ter sido o próprio gerente e tratorista que teria sido responsável por aterrar os geoglifos.

“Mas esse pessoal eles [do Iphan] às vezes entram, mesmo sem ter ninguém, eles entram. Por exemplo, agora esses dias que foi feita a vistoria depois da denúncia, pessoal foi lá, foi uma moça do Iphan, ela ficou lá, vendo, passando aparelho para ver se encontrava objeto, essas coisas, e ela não falou com ninguém (…) não perguntou nada, não deu satisfação. São assim às vezes. Fiscais não precisam de autorização para entrar, eles vão entrando. É que nem pessoal do Ibama e do meio ambiente”.

Escavação no geoglifo

Local aterrado. Crédito: Relatório IPHAN.

Durante a vistoria de fiscalização do Iphan foram encontrados vestígios arqueológicos que indicam que essa é uma área de alto potencial para escavações. “Foram identificados vestígios arqueológicos em superfície durante a fiscalização. Destaca-se que os vestígios encontrados compõem, evidentemente, apenas um diminuto amostral do que deve haver em termos de material arqueológico na área”, descreve o Relatório da Fiscalização feita na Fazenda Crixá no dia 27/07. A escavação da área será conduzida pelo Centro Nacional de Arqueologia (CNA), autarquia do Iphan.

O arqueólogo Eduardo Goés Neves, da USP, que trabalha há anos na região amazônica, reforça o potencial arqueológico do geoglifo. “Principalmente cerâmica, mas tem coisa de pedra também, o que é interessante porque você não tem rocha no Acre. A gente tem machados de pedra que vinham provavelmente do Rio Madeira, em Rondônia. (…) Tem muito material lítico, de pedra lascada, e tem também microvestígios de plantas”, detalha o arqueólogo em referência também ao potencial estudo da paleobotânica na região, para descobrir quais eram as configurações desta floresta que hoje reconhecemos como a Amazônia.

O pesquisador explica ainda que o avanço das atividades econômicas – pecuária, soja, milho e a cana-de-açúcar – nesta região do Acre tem pressionado a área onde estão a maioria dos geoglifos conhecidos. “Inclusive a gente só conhece os geoglifos porque o desmatamento tornou eles visíveis. Então tem um conflito ali, latente, que eu acho que vai ficar cada vez mais forte agora que virou o governo. São centenas de sítios”, aponta o arqueólogo do Museu de Arqueologia e Etnologia, da Universidade de São Paulo (USP).

Em nota, o Centro Nacional de Arqueologia destaca as pressões que avançam sobre os geoglifos. “Com a expansão econômica e os estudos de impacto ambiental, muitos geoglifos puderam ser descobertos, estudados e conservados. Todavia, esse patrimônio acaba sendo ameaçado pelas atividades econômicas potencialmente impactantes, quando não realizados os devidos estudos para avaliação de impacto ao patrimônio arqueológico no âmbito do licenciamento ambiental, conforme legislação vigente”, ressalta o texto.

“Acho, impressão minha, que para efeito de pesquisa, não há tanto prejuízo. Como o geoglifo é uma vala, essa vala foi aterrada, mas os objetos porventura que possam ser encontrados nas escavações que seriam feitas poderão ainda ser buscados pela pesquisa. Os objetos estão lá, se for esse o objetivo da pesquisa arqueológica. Sob esse ponto de vista não há prejuízo”, diz Veronez. “Já coloco de antemão que estarei à disposição do Iphan para cumprir as determinações que eles me passarem quanto à possível ou não recuperação dos geoglifos ou pelo menos a mitigação dos danos causados”, reforça o pecuarista.

 

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  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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Comentários 2

  1. Sousa santos diz:

    Ruralistas são assim mesmo . No início destroem o meio ambiente, depois destroem a história.


  2. Paulo diz:

    Eeeetá ficha corrida. Não aprendem.