Reportagens

Nas prateleiras dos supermercados, mais dúvidas do que certezas

Maiores redes de varejo do país adotam políticas frágeis de controle da procedência da carne vermelha e admitem dificuldades no rastreamento das fases iniciais da criação dos bovinos

Fernanda Wenzel ·
21 de fevereiro de 2019 · 5 anos atrás
Homem escolhe carne em mercado: consumidores reagiram e passaram a questionar os supermercados sobre a origem da carne bovina. Foto: Marcio Isensee e Sá.

Em novembro de 2015 o Greenpeace publicou o relatório “Carne ao Molho Madeira”, que detalhou as ações das maiores redes de varejo em atuação no Brasil para eliminar fornecedores associados ao desmatamento ilegal. O estudo avaliou sete empresas – Walmart, Carrefour, Grupo Pão de Açúcar (GPA), Cencosud, Comper, DB e Y. Yamada – e mostrou que, na realidade, a falta de ação era o aspecto mais evidente nas prateleiras dos mercados. Das sete empresas avaliadas, três não responderam ao questionário. Das que responderam, apenas o Walmart tinha uma política de compra de carne bovina implementada.

Os consumidores reagiram, e passaram a questionar os supermercados sobre a origem da carne bovina que chegava às suas casas. Uma petição, que exigia um produto seguro e livre de violações socioambientais, angariou 29 mil assinaturas.

Os representantes do varejo já vinham participando do Grupo de Trabalho de Pecuária Sustentável (GTPS) criado em 2009 para debater medidas de combate ao desmatamento na cadeia produtiva da carne bovina. Em 2013, a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) assinou um acordo como Ministério Público Federal (MPF) para evitar que os supermercados comprassem carne proveniente de áreas da Amazônia Legal com irregularidades socioambientais.

Tabela do Relatório Carne ao Molho Madeira do Greenpeace.

O primeiro a tomar medidas efetivas para o controle da origem da carne que chega aos supermercados, no entanto, foi o Walmart, dono do 3° maior faturamento do setor em 2017 segundo o Ranking Abras. Em 2015, a multinacional fechou uma parceria com a empresa de tecnologia Agrotools para monitorar todos os seus fornecedores com sede na Amazônia Legal, incluindo 62 mil fazendas, cinco frigoríficos e 35 plantas frigoríficas (informações do site do Walmart Brasil).

 

Pressão nos frigoríficos

Mas foi só a partir do relatório do Greenpeace que as duas líderes do setor anunciaram as primeiras medidas efetivas para controlar a origem da carne vendida em suas gôndolas. Líder e vice-líder em faturamento, respectivamente, Carrefour e GPA adotaram estratégias semelhantes àquelas já implementadas pelo Walmart. Passaram a cobrar dos frigoríficos o rastreamento por GPS das fazendas de onde eles compram o gado.

As informações de cada propriedade são cruzadas com diferentes bases de dados para garantir que o boi não venha de uma desmatada ilegalmente, embargada pelo Ibama, dentro de Unidades de Conservação e Terras Indígenas ou na lista suja do trabalho análogo à escravidão.

Segundo o Carrefour, em 2018 a multinacional comprou carne de 19 abatedouros localizados na Amazônia Legal. Nem todos estes frigoríficos assinaram o TAC com o MPF. Segundo o diretor de sustentabilidade do Carrefour Brasil, Paulo Pianez, esta não é uma exigência da companhia, já que os fornecedores precisam atender a outros requisitos de sua política de compra.

Assim como o Walmart, o Carrefour implementou um sistema de monitoramento georreferenciado em parceria com a Agrotools. Todos os frigoríficos que vendem carne para a multinacional também precisam comprar um sistema deste tipo. Segundo Paulo Pianez,  isso faz com que hoje a empresa consiga monitorar 100% da carne in natura comercializada em suas lojas.

“Quando a gente faz um pedido de carne, esse pedido é lido automaticamente pelos frigoríficos interligados ao Carrefour. O frigorífico levanta as fazendas que vão fornecer o gado necessário para atender àquele pedido e o sistema faz o cruzamento de dados. Se for detectado um problema, a carne não vai ser vendida pelo Carrefour. Dependendo do problema, o frigorífico e o produtor podem ser bloqueados”, garante Pianez.

De onde vem o boi? Redes do varejo dizem que é possível identificar a fazenda de onde o gado saiu para chegar ao frigorífico, mas não as fazendas pelas quais o gado passou anteriormente, nas fases de cria e recria. Foto: Marcio Isensee e Sá.

No caso do GPA, entre 13% e 15% da carne vendida nos estabelecimentos vem de abatedouros instalados na Amazônia Legal. Segundo Susy Yoshimura, diretora de Sustentabilidade da multinacional no Brasil, 99% do faturamento da carne comprada pelo GPA (independentemente do bioma de origem) é rastreada. Ou seja, a companhia sabe quais as fazendas que fornecem gado para os frigoríficos que, por sua vez, vendem a carne ao GPA.

Mas o sistema de geomonitoramento, que permite a análise em tempo real da origem de cada lote de gado comprado pela empresa, abrange 94% do faturamento da carne. Isso corresponde à metade dos 22 fornecedores que vendem diretamente ao GPA. Segundo Yoshimura, a meta é chegar a 100% até o final do ano.

Tanto o Walmart como o Carrefour e o GPA reconhecem que suas políticas de compra de carne não conseguem abarcar o problema dos indiretos. Ou seja, é possível identificar a fazenda de onde o gado saiu para chegar ao frigorífico, mas não as fazendas pelas quais o gado passou anteriormente, nas fases de cria e recria.

“Para resolver esses desafios é preciso haver uma congregação de atores ainda maior, uma escala tecnológica e a inclusão desses primeiros atores da cadeia, que normalmente são menores”, afirma Paulo Pianez.

Já o gerente de Sustentabilidade do Walmart, Abdias Machado, afirmou durante um Webinar sobre carne sustentável, transmitido em 23 de agosto passado, que a questão dos indiretos (a falta de rastreamento das fases iniciais da criação do boi) é uma “caixa de pandora” para todos os elos da cadeia da pecuária. Para resolver este problema, Machado expôs a necessidade de que os produtores rurais adotem sistemas de rastreamento do gado por satélite, animal por animal: “Temos trabalhado com nosso fornecedor de tecnologia, porque levar isso pro campo é um dos grandes desafios”.

Lentidão na mudança

Ao mesmo tempo, nenhuma das grandes redes de varejo tomou a decisão de excluir de sua lista de fornecedores as empresas que tiveram altos níveis de inconformidade nas auditorias do MPF relativas ao TAC da Carne no Pará, divulgadas em março de 2018.

A JBS, líder da indústria da carne no Brasil, apresentou irregularidades em 19% das compras de gado. Outros frigoríficos apresentaram inconformidades em mais de metade das compras auditadas, como os frigoríficos Ribeiro (79%), Altamira (72%) e Aliança (69%). Já o grupo Minerva teve 0,1% de inconformidade. A Marfrig, que assinou o Compromisso Público da Pecuária com o Greenpeace mas não assinou o TAC no Pará, não se submeteu às auditorias.

A passividade dos supermercadistas em relação às auditorias esvazia o discurso da Procuradoria da República à frente dos TACs da carne no estado do Pará. Ao decidir não punir os frigoríficos pior avaliados, o procurador Daniel Azeredo afirmou que os resultados das auditorias deveriam servir de instrumento para que os demais elos da cadeia produtiva eliminassem do mercado os atores menos comprometidos com a pecuária sustentável.

“Eles [MPF e frigoríficos] nem entraram em consenso. Eu não posso pegar uma coisa que está em discussão com o Ministério Público e usar um documento deles como algo que vire um critério, que ainda tem questões qualitativas a serem definidas. Têm indicadores, têm perímetros que não estão ainda definidos”, explica Susy Yoshimura.

A argumentação da diretora de Sustentabilidade do GPA é a mesma da JBS, que contestou a metodologia e a base de dados utilizados pelo MPF. Segundo a empresa, outras auditorias contratadas pela JBS mostraram níveis de conformidade que beiram os 100%.

Yoshimura também não concorda que seja depositada tanta expectativa no poder do varejo de controlar a cadeia da pecuária: “Acho que o varejo não é mais que nenhum ator, ele é um ator. […] Não tem como você colocar mais peso no varejo porque acha que é o varejo que diz o que o consumidor vai ou não comprar. Acho que isso não é verdade, que tem um pouco de romantismo nesta idealização”.

Já o representante do Carrefour reconhece que as auditorias são um instrumento importante, mas que segundo ele precisam ser complementadas por outras ferramentas de controle. Segundo Paulo Pianez, a empresa intensificou a fiscalização sobre os frigoríficos pior classificados.

No que diz respeito à JBS, Pianez afirma que não foram encontradas irregularidades nos lotes vendidos aos supermercados do Carrefour, e que a empresa continua sendo uma importante parceira comercial.

Nós preferimos manter com os nossos controles estes frigoríficos fornecendo para o Carrefour, atuando junto a eles para entender por que houve o problema. Acho que essa atuação tem um caráter mais construtivo de resolver o problema, e não apenas de excluir, e continuar o problema”.

A Walmart Brasil, que em junho de 2018 foi vendida para o fundo de investimentos Advent International, não quis gravar entrevista a((o))eco.

Carnes embaladas antes de serem expostas à venda: exclusão das médias e pequenas redes de supermercados dos compromissos da pecuária sustentável gerou muitas críticas das grandes redes de varejo. Foto: Marcio Isensee e Sá.

Os menores precisam entrar

A exclusão das médias e pequenas redes de supermercados dos compromissos da pecuária sustentável é umas das principais reclamações das grandes redes de varejo.

“Estamos sendo cobrados pelas grandes de que precisa haver um trabalho para que os menores também entrem nessa agenda”, reconhece o Superintendente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), Márcio Milan.

A principal queixa é que, enquanto Carrefour, GPA e Walmart pagam mais caro para excluir fornecedores com irregularidades socioambientais, esta carne ilegal segue encontrando espaço nas prateleiras das outras redes supermercados, e a um preço mais baixo. As três multinacionais abocanharam 35% do faturamento do setor do varejo no Brasil em 2017, segundo levantamento da Abras.

Um acordo que deveria ter sido assinado no último dia 21 de novembro, em Brasília, poderia ser o primeiro passo para que as demais empresas do varejo entrassem em campo. O acordo setorial, construído no âmbito de um grupo de trabalho criado neste ano pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), iria definir metas e prazos para que os signatários eliminassem de suas respectivas cadeias de abastecimento os produtores com irregularidades sociais e ambientais.

Além dos atores tradicionais, que estão há anos nas mesas de negociação – JBS, Marfrig e Minerva por parte da indústria, GPA, Carrefour e Walmart por parte do varejo -, este acordo incluiria o grupo Cencosud, dono da quarta maior rede de supermercados do Brasil. A informação é do Superintendente da Abas, Márcio Milan. A empresa opera desde 2007 no Brasil e é responsável pelos supermercados Prezunic, Gbarbosa, Bretas, e Mercantil Rodrigues.

Questionado se confirmava a assinatura do acordo, o grupo Cencosud respondeu apenas: “Seremos sempre a favor de uma decisão coletiva, liderada pela entidade representativa do varejo, e sempre levando em consideração o cumprimento da legislação vigente”.

Como foi dito, o acordo deveria ter sido assinado na abertura do Seminário Sistemas Integrados para a Cadeia Produtiva da Pecuária. Mas não foi. O discurso oficial é de que ainda é preciso desenvolver uma base de dados que centralize todas as informações referentes aos fornecedores de gado dos biomas Amazônia e Cerrado, trabalho que segundo o MMA só deve ser concluído em dois anos.

Mas nos bastidores a informação era de que a assinatura não saiu devido às incertezas com o governo Jair Bolsonaro. A inclusão do Cerrado no acordo foi outro fator que pesou para que o setor privado decidisse postergar a assinatura.

Juliana Simões, ex-secretária de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentável do MMA, vinha conduzindo as negociações do grupo de trabalho. Apesar da frustração por não ter conseguido fechar o acordo, durante a apuração desta reportagem ela estava confiante de que a assinatura deve acontecer ainda em 2019.

“A inclusão do Cerrado no acordo foi outro fator que pesou para que o setor privado decidisse postergar a assinatura.”

É esta a mesma opinião do Superintendente da Abras. Segundo Márcio Milan, após a assinatura a entidade vai começar a realizar eventos de conscientização e capacitação das médias e pequenas empresas. O primeiro evento seria para as 20 maiores representantes do setor. Aos poucos este escopo iria sendo ampliado, com o objetivo de terminar 2019 tendo alcançado as 100 maiores redes de varejo do Brasil. A adesão ao acordo, no entanto, seria voluntária.

“Nós, como Abras, não podemos determinar que elas atuem de uma forma ou de outra. O que nós fazemos é mostrar a responsabilidade e o risco que cada um corre se não adotar uma postura neste sentido”, justifica Milan.

4ª maior rede não tem nenhuma política para carne

Enquanto as três maiores empresas de varejo implementaram medidas de controle de fornecedores de carne bovina e participam do Grupo de Trabalho Pecuária Sustentável, a multinacional chilena Cencosud, 4ª maior rede de supermercados em atuação no país, permanece inerte.

São 204 estabelecimentos comerciais nos estados de Sergipe, Alagoas, Bahia, Minas Gerais, Goiás e Rio de Janeiro. Em 2017, as operações do grupo no Brasil tiveram lucro bruto de US$ 521 milhões.

Apesar da representatividade no mercado, o Cencosud não tem uma política de compra de carne bovina. Seu primeiro Relatório de Sustentabilidade foi lançado apenas em 2017, e não traz nenhuma diretriz em relação à cadeia da pecuária ou aos seus fornecedores.

Em outubro de 2018, a empresa de análise de riscos ambientais Chain Reaction Research divulgou relatório que analisou 497 amostras de carne bovina vendidas em diferentes estabelecimentos da Cencosud no Brasil. O estudo concluiu que 23% dos produtos vieram de frigoríficos localizados na Amazônia Legal. Destes, 16% foram obtidos junto a abatedouros que não assinaram o TAC com o MPF.

O relatório destaca que a Cencosud obteve um dos piores resultados dentre os varejistas avaliados em dezembro de 2017 pela Chain Reaction Research, no que diz respeito à sustentabilidade da rede de fornecedores de carne. A multinacional atingiu uma pontuação de 5%, comparado a 38% do GPA, 47% do Carrefour e 52% do Walmart. Em outro levantamento, feito pelo Global Canopy Project, o Cencosud obteve nota zero em uma escala de zero a cinco.

A Cencosud afirma que está analisando o relatório da Chain Reaction, mas que “exige de todos os seus fornecedores o cumprimento dos requisitos legais em temas de saúde, segurança, meio ambiente e direitos humanos”. Em dezembro de 2018, a empresa lançou uma carta em que se compromete, entre outras coisas, a solicitar aos fornecedores a assinatura de um termo de compromisso com a produção sustentável de carne e a eliminar fornecedores que constem nas listas de áreas embargadas, de desmatamento, de ocupação irregular de áreas protegidas ou terras indígenas, ou que utilizem trabalho escravo. A Cencosud não esclarece como será feito este controle sobre os fornecedores.

A reportagem também fez contato com a rede de supermercados Irmãos Muffato, dona do 5° maior faturamento do varejo brasileiro. Forte no estado do Paraná, a rede também não possui nenhuma política de compra de carne bovina nem apresenta relatórios de sustentabilidade. A Irmãos Muffato não quis participar da reportagem.

 

 

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  • Fernanda Wenzel

    Fernanda Wenzel é jornalista freelancer especializada em Amazônia e meio ambiente.

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