Reportagens

Microbioma dos anfíbios está ligado ao clima

Bactérias que habitam a pele dos anfíbios têm diversidade menor nos trópicos, e maior nas regiões temperadas

Peter Moon ·
25 de fevereiro de 2019 · 5 anos atrás
A rã Heterixalus punctatus, endêmica de Madagascar, vive em floresta subtropical úmida de baixa altitude, em lagoas e terras agrícolas sazonalmente inundadas. Crédito: Miguel Vences.

Lê-se nos livros de biologia que a diversidade de animais e plantas é sempre maior nos trópicos, na floresta amazônica, na floresta equatorial africana e nas selvas do sudeste asiático, da indonésia e Madagascar. Os mesmos livros explicam que a biodiversidade vai diminuindo na medida em que os ecossistemas analisados vão se afastando dos trópicos, na direção das zonas temperada e polar. Este mandamento da ecologia moderna já foi confirmado inúmeras vezes, através do estudo da diversidade de vertebrados, de invertebrados, de plantas e fungos. Só esqueceram de avisar às bactérias. Especificamente, àquelas que habitam a pele dos anfíbios.

Neste que é o primeiro levantamento em escala global da diversidade bacteriana dos anfíbios, pesquisadores de 31 universidades e centros de pesquisa coletaram bactérias da pele de mais de 2.300 sapos, rãs, pererecas e salamandras, pertencentes a mais de 200 espécies, e que habitam biomas tropicais, subtropicais e temperados em 12 países dos cinco continentes. Participam do estudo dos herpetólogos o paulista Célio Haddad, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulistas (Unesp) de Rio Claro, e gaúcho Guilherme Becker, da Universidade do Alabama, em Tuscaloosa.

O objetivo inicial do estudo era melhorar o conhecimento da distribuição de bactérias da pele de rãs, sapos e pererecas, uma vez que se sabe que a comunidade bacteriana que habita a pele dos anfíbios exerce papel de extrema importância na manutenção da saúde dos mesmos.

“Em qualquer grupo de organismos você encontra uma comunidade gigantesca de bactérias que é muito pouco explorada. Agora, graças ao avanço da genômica, é possível começar a estudar a chamado microbioma, o conjunto dos microrganismos que habita uma determinada espécie, gênero ou grupo de animais e plantas,” explica Célio Haddad.

Com base em amostras de 205 espécies diferentes de anfíbios, a equipe concluiu que as condições do ambiente onde vive um animal, especialmente a temperatura, desempenham um papel definidor no que diz respeito às bactérias que habitam sua pele.

O herpetólogo Guilherme Becker, coletando material para a pesquisa, na Mata Atlântica. Foto: Gui Becker.

O resultado mais notável do estudo “Community richness of amphibian skin bacteria correlates with bioclimate at the global scale”, publicado na revista Nature Ecology and Evolution, foi que os micróbios da pele de anfíbios são mais diversificados em áreas com invernos frios e temperaturas variáveis. Trata-se de um resultado inesperado, já que a diversidade de animais e plantas é maior nos trópicos.

“Encontrar uma maior diversidade geral dessas bactérias da pele em áreas temperadas foi uma surpresa. Nossa tarefa agora é explicar por que isto acontece,” afirma o líder do trabalho, o biólogo Jordan Kueneman, do Instituto Smithsonian de Pesquisa Tropical, no Panamá (filho de americanos, Kueneman nasceu no Brasil, mas daqui saiu ainda criança).

“Não esperávamos este resultado, que a diversidade de bactérias na pele dos anfíbios fosse maior nos ambientes mais frios. O que se esperava era o contrário,” diz Haddad.

Entre 2015 e 2016, Haddad recebeu em Rio Claro um dos líderes do trabalho, o alemão Miguel Vences, e foi com ele capturar animais para coletar material para o estudo. “Não podemos usar animais de laboratório. Eles precisam estar no campo, nos brejos, em locais onde a composição bacteriana em sua pele não esteja comprometida, esteja intacta. Usamos luvas para manipular os bichinhos. Passamos um cotonete esterilizado na pele deles para coletar amostras do microbioma. Em seguida, o cotonete é colocado num tubo selado, e imediatamente congelado, evitando assim que a composição bacteriana se altere.”

Já em laboratório, é feito o estudo genômico para determinar quantos gêneros bacterianos existem, a quais famílias e grupos pertencem, e em qual proporção eles se encontram em cada uma das amostras.

O grupo usou dados de marcadores genéticos existentes e recém-gerados para descrever as comunidades bacterianas que vivem na pele dos animais. Eles aplicaram modelos estatísticos para identificar as variáveis ​​que explicam a riqueza microbiana, incluindo a riqueza de espécies de anfíbios (hospedeiros), e 19 variáveis de temperatura e precipitação, além de variáveis de elevação, latitude e densidade vegetal.

A pequena rã-de-vidro Vitreorana uranoscopa, encontrada no sul do Brasil. Foto: Gui Becker.

Os pesquisadores descobriram que as bactérias de crescimento rápido podem assumir o controle do microbioma em climas quentes, reduzindo a diversidade. No entanto, em ambientes com variações sazonais, como nos climas temperados, diferentes tipos de bactérias podem ser favorecidos durante diferentes épocas do ano.

Descobriu-se que a temperatura mínima do mês mais frio do ano foi o fator mais forte correlacionado à riqueza microbiana na pele dos anfíbios, indicando que a temperatura e a estabilidade sazonal da temperatura são as que melhor predizem a riqueza microbiana.

Como a temperatura pode exercer efeitos sobre as comunidades microbianas? Os autores descobriram que certas funções genéticas previstas variavam com o clima. Especificamente, as abundâncias previstas de genes associados à síntese de antibióticos e associados à dormência variaram com a temperatura mínima do mês mais frio do ano.

“A dormência é importante para entender por que a diversidade bacteriana na pele dos anfíbios está ligada à sazonalidade,” diz Becker. “Na comunidade bacteriana na pele dos anfíbios das regiões temperadas existem grupos de bactérias mais adaptadas ao frio, e outros mais adaptados ao calor. Na medida em que as estações se alteram, a composição e a dominância da microbiota também vai mudando.”

Assim, no verão, prevalecem as bactérias adaptadas ao calor enquanto as bactérias que preferem o frio, apesar de estarem presentes, estão dormentes. Com a chegada do outono, a queda de temperatura e a mudança na precipitação vai alterando a composição do microbioma até que, no inverno, os grupos de bactérias estivais se encontram dormentes, e quem prevalece são os grupos bacterianos invernais. Nos trópicos, onde a temperatura é relativamente constante o ano todo, havendo somente a alteração no regime de chuvas, as bactérias adaptadas ao inverno não são necessárias.

A perereca verde da Mata Atlântica Aplastodiscus leucopygius. Foto: Gui Becker.

Os autores utilizaram esses resultados para desenvolver hipóteses sobre os mecanismos pelos quais a temperatura influencia a riqueza bacteriana. Eles sugerem que a dormência promove a riqueza criando um “banco de sementes” bacteriano, enquanto os antibióticos promovem a riqueza através da introdução de perturbações intermediárias e, portanto, heterogeneidade no sistema.

Por exemplo, bactérias que sobrevivem ao frio poderiam permanecer em estado latente na pele dos anfíbios, o que explicaria a maior diversidade microbiana observada nesses ambientes.

“Este é o primeiro estudo de biogeografia microbiana de vertebrados que vai além da descrição de diversidade e composição de bactérias. Existem outros estudos de biogeografia de vertebrados e plantas, mas nenhum outro explicando os padrões de diversidade através de mecanismos genéticos,” diz Becker.

No momento, os pesquisadores estão produzindo novos estudos, um sobre a diversidade de fungos na pele dos anfíbios, e outro sobre a diversidade do microbioma que prolifera no interior dos anfíbios, por exemplo no sistema digestivo.

Conhecer a fundo a composição bacteriana da pele dos anfíbios é também tarefa premente, pois pode resultar na descoberta de probióticos que elevem a resistência dos anfíbios ao fungo Batrachochytrium dendrobatidis, que infecta a pele de animais causando a quitridiomicose, doença frequentemente fatal que tem causado declínios anfíbios catastróficos ao redor do planeta.

O herpetólogo gaúcho Guilherme Becker explica como a doença se desenvolve. “Uma vez que um anfíbio é infectado pelo quitrídio, a quantidade de bactérias aumenta muito em um primeiro momento, talvez pelo comprometimento do sistema imune causado pelo ataque de bactérias oportunistas. Já num segundo momento, os animais começam a ficar doentes, a pele fica mais grossa, e o fungo vai cobrindo toda a pele. Uma vez que eles ficam muito doentes a carga de bactérias despenca. É um sinal ruim. Quando a quantidade de bactérias cai dramaticamente, o anfíbio geralmente morre.”

Ichthyosaura alpestris, o tritão-alpino é uma salamandra que habita florestas em regiões montanhosas da Europa e da Grã-Bretanha. Crédito: Miguel Vences.

Mas há pelo menos um anfíbio resistente ao fungo quitrídio. É a rã-touro americana (Lithobates catesbeianus), espécie introduzida em ranários de todo o mundo e que, ao escapar para o meio ambiente, tornou-se uma espécie invasiva em escala global. Até onde se sabe, a rã-touro é imune ao fungo. Pior, sua tolerância ao fungo faz com que seja o agente introdutório do quitrídio nos ecossistemas que invade.

Neste sentido, é particularmente interessante saber o que os pesquisadores descobriram sobre a composição do microbioma bacteriano na pele das rãs-touro. A diversidade de bactérias não se altera ao longo do ano ou em função das variações de temperatura. Diferentemente dos demais anfíbios, a diversidade bacteriana da rã-touro se altera de acordo com o meio ambiente onde ela vive. Não há um padrão. Isto talvez explique a extrema adaptabilidade que a espécie possui.

 

Saiba Mais

Kueneman, J.G., Bletz, M.C., McKenzie, V.J. et al. 2019. Community richness of amphibian skin bacteria correlates with bioclimate at the global scale. Nature Ecology and Evolution.

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  • Peter Moon

    Peter Moon é um repórter científico, historiador da ciência e pesquisador da história natural da América do Sul

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