Reportagens

Lucro da Cedae em quatro meses pode cobrir restauração no Guandu por duas décadas

Custos de reflorestamento e manutenção em áreas prioritárias da bacia são estimados em R$ 375 milhões, um terço do lucro líquido que a empresa teve em 2019

Bernardo Araujo ·
12 de abril de 2020 · 4 anos atrás
Rio Guandu, com a maior parte de suas margens desmatadas. Foto: Marcio Isensee e Sá.

Esgoto não é o único problema que assola a bacia do Guandu, onde fica o manancial que abastece 9,5 milhões de pessoas na Região Metropolitana do Rio. Segundo o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), dos 244.960 hectares legalmente considerados Áreas de Preservação Permanentes (APPs) na bacia — florestas que deveriam ser obrigatoriamente conservadas para a proteção de mananciais —, apenas 115.969 (47,3% do total) mantém sua cobertura florestal. Mas apesar da enorme ausência de verde, o investimento necessário para melhorar consideravelmente a situação da bacia pode não ser tão grande assim.

Uma estimativa produzida por uma série de instituições não-governamentais e de pesquisa atuantes na bacia do Guandu, baseadas no projeto Produtores de Água e Floresta (PAF), — coordenado pelo Comitê Guandu — apontou serem necessários R$ 375,67 milhões para a restauração e manutenção de florestas em áreas prioritárias para a saúde das águas da bacia do Guandu pelos próximos 20 anos. Para colocar este número em perspectiva, o lucro líquido da Cedae, em 2019, foi de R$ 1,02 bilhão, quase o triplo. O lucro da companhia de saneamento auferido em apenas quatro meses seria suficiente para garantir mais floresta e produção de água na bacia.

“Nós fizemos um exercício de criar prioridades, e estas estavam relacionadas à capacidade de produção de água — que varia entre diferentes áreas de uma bacia — e de produção de sedimentos, que podem ir parar nos rios e causar assoreamentos”, diz Maurício Ruiz, secretário de Meio Ambiente em Volta Redonda (RJ) e presidente da Associação Nacional de Órgãos Municipais de Meio Ambiente (Anamma).

Ruiz fundou e coordenou por 20 anos o Instituto Terra de Preservação Ambiental (ITPA), responsável por iniciativas de reflorestamento nas cidades fluminenses de Rio Claro e Miguel Pereira. O trabalho do instituto resultou em 2.500 hectares de matas recuperadas e mais de 3 milhões de árvores plantadas. E o foco na restauração de mata ciliares — aquelas que crescem em volta de corpos d’água — é mais que justificado. Florestas garantem proteção a mananciais, pois são essenciais para controlar a entrada de nutrientes e poluentes nos rios, reduzir a erosão e garantir a porosidade do solo (e o abastecimento de fontes que estão abaixo da terra). Elas também permitem que uma quantidade maior de água circule pelas bacias, pois capturam umidade do ar e a devolvem para o sistema em volta.

Pecuária de baixo rendimento

“As principais bacias produtoras de água do Guandu têm 9.739 hectares de pastagens em beira de rio e entorno de nascentes. Essas áreas precisam ser obrigatoriamente recuperadas, seguindo nossa legislação. O custo de restauração vai variar em torno de R$ 35 mil por hectare aqui no estado do Rio”, diz Maurício. “Acontece que maior parte dos proprietários utiliza essas áreas para uma pecuária de baixíssimo rendimento. Pasme: é algo em torno de R$ 70 por hectare por ano, quase nada”.

O valor total de reflorestamento desses 9.739 hectares seria de R$ 340,72 milhões. Mas estas áreas que precisam ser restauradas fazem parte de um conjunto maior de 24.861 hectares que devem ser protegidos permanentemente, por meio de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA). Ou seja, deve-se garantir que o proprietário não vá usar uma motosserra e pôr a floresta abaixo para garantir seu rendimento anual de R$ 70 por hectare. Logo, é preciso desembolsar R$ 1.740.270 ao ano (ou R$ 34.805.400 em 20 anos, que se somam ao custo de restauração). Daí o valor total de R$ 375,67 milhões.

US$ 4,1 milhões para garantir floresta em pé

Vários estados brasileiros desenvolvem projetos e programas de PSA, com resultados bastante significativos, como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Espírito Santo e Acre.

No momento, alguns Projetos de Lei que tratam de PSA buscam dar segurança jurídica e difundir este tipo de projeto pelo país, tramitam na Câmara dos Deputados. Marcia Hirota, diretora executiva da SOS Mata Atlântica, destaca o Conexão Mata Atlântica, cujo objetivo é recuperar e preservar serviços ecossistêmicos na bacia do Paraíba do Sul, na qual é feita a transposição que abastece o Guandu.

Coordenado pelo Inea, o Conexão pagou, somente no ano passado, R$ 1 milhão a 162 produtores rurais nos municípios de Barra do Piraí, Valença, Varre-Sai, Porciúncula, Cambuci e Italva, por meio do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF, na sigla em inglês). O projeto conta com recursos de US$ 4,1 milhões (R$ 20,8 milhões na cotação do dia 11 de abril) para garantir que esses proprietários garantam floresta em pé em 1.773 hectares e consequentemente a produção de água até 2022.

Uma área de 42 hectares de baixa produtividades vem sendo convertida em produtivas por meio de técnicas sustentáveis, e outros 268 hectares estão sendo restaurados de diversas formas. Além dos recursos internacionais, há contrapartida de R$ 29 milhões do governo do Estado do Rio, que será aplicada por meio de medidas compensatórias de restauração florestal e investimentos do Programa RioRural.

Outros projetos de PSA, como o projeto Oásis, promovido pela Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, abrem precedentes para que o pagamento aos proprietários de terra que prestam serviços ambientais venha diretamente de instituições como companhias de água e saneamento. “Tem várias iniciativas acontecendo, e é uma política que a gente valoriza muito. Traz um ganho para quem de fato preserva a natureza, para quem protege nossas fontes que são vitais para nossa qualidade de vida,” conclui Marcia.

Cuidar da qualidade das águas da Bacia do Guandu é essencial para a manutenção da vida de milhões de pessoas, e essa preocupação tem originado projetos voltados para a recuperação de matas ciliares. Em e-mail, a Cedae informou que conduz o projeto “Replantando Vida”, responsável pelo plantio de 3 milhões de mudas de mais de 250 espécies nativas de Mata Atlântica em rios utilizados para captação de água para tratamento e distribuição. A companhia de saneamento informou ainda que “qualquer instituição, associação ou mesmo pessoa física pode solicitar o apoio, com mudas florestais da Mata Atlântica, para desenvolver seu projeto voluntário de restauração”, e que “basta submeter o projeto para a equipe técnica do programa”. A Cedae não informou os recursos aplicados.

Nota baixa pela Conservation International

Falta de mata ciliar e ocupação com construções as margens do Rio Guandu. Foto: Marcio Isensee e Sá.

Esforços empreendidos até o momento parecem ser insuficientes para melhorar a qualidade ambiental do Guandu. Em 2019 foi divulgado o resultado do Índice de Saúde da Água (ISA) de Guandu, uma ferramenta criada pela Conservation International (CI) que avalia o estado de ecossistemas aquáticos. Este índice pontua — numa escala de 0 a 100 — elementos ligados à vitalidade de ecossistemas, sua capacidade de prover serviços para a sociedade humana e à governança sobre eles.

Uma das primeiras avaliações feitas pelo ISA é a de qualidade geral da água, que leva consideração parâmetros como temperatura, pH, quantidade de oxigênio, demanda biológica por oxigênio e turbidez. A nota atribuída foi de 31 pontos.

“Essa pontuação baixa está associada a aporte de sedimentos, matéria orgânica e consequentemente poluição dos corpos hídricos, comprometendo a manutenção das comunidades aquáticas”, diz Bruno Coutinho, diretor de gestão do conhecimento da CI-Brasil.

No quesito de regulação da qualidade da água para o consumo humano que leva em conta os mesmos parâmetros, mas de forma menos rígida a pontuação foi 51, que também indica que a bacia não está sendo capaz de fornecer propriamente este serviço.

“Precisamos pensar a infraestrutura natural como parte da infraestrutura necessária à vida do ser humano nas cidades”, conclui Maurício. “A gente pensa demais na infraestrutura cinza, e acha que água vem das estações de tratamento de água. Não vem. A água vem da floresta”.

Graças a PSA, Costa Rica quase dobra sua quantidade de florestas em 20 anos

Há 20 anos, a Costa Rica iniciou um inovador e extensivo programa de PSA, que, juntamente com uma legislação florestal de 1995, resultou em um aumento surpreendente na quantidade de florestas do país. De menos de 30% na década de 1980, em 2015 a cobertura florestal da Costa Rica atingiu 54% do território nacional. Antes da implementação deste programa, a taxa de desmatamento no país era de cerca de 6%, uma das mais altas do mundo. Mais de 1 milhão de hectares foram incorporados à prática de PSA, abrangendo quase 16 mil famílias, mais de 136 mil hectares de terras indígenas, e resultando no plantio de mais de 6 milhões de árvores.

Entre 2010 e 2015, 79% do financiamento para este programa de PSA veio de impostos sobre combustível, 6% de taxas relacionadas a água e apenas 2% vieram de iniciativas privadas. O resto foi irrigado por doações e dívidas por parte de instituições financeiras internacionais.

De acordo com um relatório do Global Green Growth Institute, de 2016, projetos de PSA devem evitar se basear em suposições, buscando evidências científicas a respeito da relação entre uso da terra e serviços ecossistêmicos. De acordo com o documento, “quão mais sólida a informação na qual o projeto de PSA se baseia, menor a probabilidade de que contribuidores financeiros se desencantem com ele. Para garantir a sustentabilidade, projetos de PSA devem ser flexíveis, dinâmicos e capazes de, ao mesmo tempo, aprender com suas experiências e se adaptar à mudanças de contexto político, social ou ambiental.”

 

Esta é a terceira reportagem da série “Do esgoto ao copo – Especial Guandu”, que trará diversas faces dos desafios do abastecimento da Região Metropolitana do Rio.

 

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  • Bernardo Araujo

    Bernardo Araujo é ecólogo, conservacionista e comunicador científico.

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