Reportagens

Extintos há 200 anos, jabutis são reintroduzidos no Parque Nacional da Tijuca

Animais haviam sido extintos pela exploração humana há tanto tempo que biólogos tiveram que recorrer à naturalista do século XIX para descobrir qual espécie era nativa de lá

Bernardo Araujo ·
3 de fevereiro de 2020 · 4 anos atrás
Jabuti reintroduzido com transmissor de rádio acoplado ao casco. Foto: Carolina Starling.

Passo a passo, o animal mais agressivo do Centro de Triagem de Animais Silvestres (CETAS) do Rio de Janeiro avançava em minha direção. Ciente de sua reputação e más intenções, eu observava intrigado sua aproximação, parado no centro de seu recinto. Eu tinha, afinal, todo o tempo do mundo para me afastar, porque longe de uma criatura de presas e garras, a “besta” em questão se tratava de um jabuti. Com seus 29 kg, Godzilla é um animal pouco usual para os padrões de sua espécie, tanto pelo seu tamanho avantajado quanto pelo seu temperamento. Ainda assim, eu tinha que saber: o que exatamente ele pretendia fazer comigo quando me alcançasse?

Parte de mim esperava um ataque direto contra minha canela. Recolher a cabeça e usar o casco como um aríete é uma tática que jabutis frequentemente empregam em disputas de dominância, medindo forças com seus adversários em batalhas que podem durar horas. No entanto, para minha surpresa, assim que chegou próximo o suficiente, Godzilla abocanhou a barra da minha calça e rapidamente (sim, rapidamente) puxou sua cabeça para dentro do casco. Demorei um segundo para entender que eu estava preso, e um segundo a mais para perceber que não é fácil se desvencilhar de um jabuti de quase trinta quilos. Após um momento de tensão eu finalmente consegui me soltar, grato por ter escolhido usar um par de jeans resistentes naquele dia. Implacável, Godzilla tornou a bufar e caminhar em minha direção, mas decidi que, por hora, já tinha aprendido o suficiente a respeito dele. Afastando-me de meu inusitado agressor, voltei minha atenção para as outras dezenas de jabutis no recinto, e para os biólogos que os carregavam para dentro e para fora de sua moradia temporária.

Em um pequeno cercado de quatro metros quadrados, separado por poucos metros do recinto principal que abrigava todos os animais, Robin Le Balle, aluno de doutorado do Laboratório de Ecologia e Conservação de Populações (LECP) do Rio de Janeiro, observava cuidadosamente a interação entre pares de animais. “Colocamos dois jabutis juntos dentro da arena e contamos quantas vezes eles exibem cada ação de uma lista de comportamentos que nos interessam,” conta o pesquisador, se referindo a apenas um dos vários experimentos que conduzia com os jabutis.

Jabutis esperando sua soltura no cercado de aclimatação do Parque Nacional da Tijuca recebem suplementação alimentar. Foto: Bernardo Araujo.

A pesquisa de Robin busca entender melhor a personalidade de cada animal. Ainda que pareçam similares, cada indivíduo possui traços próprios de agressividade, tendência à exploração e sociabilidade. “Quando colocados no cercado de teste,” continua Robin, “alguns bichos ficam parados com a cabeça para dentro do casco por até 10 minutos, quase imóveis, e outros prontamente se desencolhem e passam todo o tempo que podem explorando o local. Também encontramos diferenças na dominância entre indivíduos, sendo alguns mais dominantes, e outros mais submissos.” Conhecer essas diferenças pode ajudar a prever como cada animal se comporta em seu ambiente natural, e auxiliar na real missão dos biólogos que trouxeram 60 jabutis de diferentes regiões do Brasil para o CETAS do Rio de Janeiro.

Toda a área original do estado do Rio de Janeiro pertence ao bioma da Mata Atlântica. O fato de que apenas cerca de 19% dessa mata permanece de pé no estado, e o de que o Rio é um dos estados com maior cobertura relativa de Mata Atlântica remanescente, atestam o estado crítico da floresta que originalmente ocupava mais de 1.300.000 km2 do território brasileiro. Além disso, entre os poucos fragmentos florestais que restam, a grande maioria foram esvaziados de uma fauna de médio e grande porte, vital para a manutenção de funções ecológicas como a dispersão de sementes de espécies de árvores. Felizmente, o caminho para a defaunação não é sempre um caminho sem volta. A reintrodução de fauna — o restabelecimento de populações de espécies nativas em áreas onde elas haviam sido extintas — tem se tornado uma ferramenta cada vez mais utilizada no mundo todo. E um dos principais laboratórios vivos de reintrodução de fauna no Brasil é precisamente o fragmento de Mata Atlântica mais visitado de todo o país.

Robin Le Balle observa o comportamento dos jabutis no cercado de teste no CETAS RJ. Foto: Bernardo Araujo.

Desde 2009, o Parque Nacional da Tijuca (PNT), uma mancha verde de 4 mil hectares no meio da selva urbana da cidade do Rio de Janeiro, vem sendo o principal centro de operações do projeto Refauna, uma iniciativa que une biólogos da conservação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRJ). Indo além do restabelecimento de uma ou outra espécie extinta, este projeto se intitula um projeto de refaunação, tendo como objetivo reconstituir não só a fauna de uma floresta vazia, como as interações ecológicas que foram perdidas junto com esses animais. Para tal fim, o projeto já devolveu cutias e bugios para o parque, e agora, em 2020, é a vez de um réptil ser retornado à floresta.

“A maior parte das pessoas nem sabe que jabutis existiram por aqui,” diz Carolina Starling, aluna de mestrado do LECP e a principal responsável pela reintrodução dos jabutis. “Elas nem imaginam que o lugar dos nossos jabutis nativos é numa floresta! Entre os vertebrados maiores, jabutis costumam estar entre as primeiras espécies a desaparecer quando existe alguma pressão de caça. Há inclusive evidências disso para a Amazônia. Isso acontece por causa da demografia frágil deles. Eles são animais muito longevos e com baixas taxas reprodutivas, e declinam rapidamente quando existe caça.”

É bem provável que esses répteis tenham sido extintos das florestas do estado do Rio há mais de 200 anos, tempo suficiente para que desaparecessem da memória das populações humanas locais, e para que os biólogos de hoje não tivessem certeza sobre qual espécie de jabuti existia aqui em primeiro lugar. Carolina precisou recorrer a trabalhos de naturalistas europeus dos séculos XVIII e XIX para responder essa pergunta. “Dentre todos os trabalhos que consultei, o principal foi provavelmente o do Príncipe Maximilian de Wied-Neuwied, um naturalista alemão que esteve aqui no século XIX. Além de registrar a fauna dos lugares por onde ele passou, e sua associação com o ambiente onde viviam, Maximilian fez descrições e desenhos extremamente detalhados sobre a espécie de jabuti que encontrou, que me permitiram identificá-la com segurança como Chelonoidis denticulatus.” Essa espécie, à qual todos os jabutis do projeto pertencem, se distingue da outra espécie brasileira, Chelonoidis carbonarius, por ser um pouco maior e possuir uma anatomia (cor, tamanho e formato de escudos do casco e escamas, assim como o próprio formato do casco) e hábitos ecológicos (C. carbonarius tende a viver em áreas mais secas, por exemplo) ligeiramente diferentes.

Carolina Starling coleta dados de localização dos jabutis reintroduzidos no Parque Nacional da Tijuca. Foto: Paula Viana.

Essa confirmação era apenas o primeiro passo. À frente estava o desafio de encontrar jabutis que poderiam ser devolvidos à Tijuca, e o longo processo de prepará-los para sua reintrodução, que tomaria boa parte de 2018 e 2019. Após muita procura, Carolina conseguiu encontrar animais que poderiam ser utilizados no projeto no CETAS de Belo Horizonte, no Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS) do Parque Ecológico do Tietê, no Centro de Manejo e Conservação de Animais Silvestres de São Paulo e, principalmente da Universidade Federal do Mato Grosso, em Cuiabá. Algumas viagens de carro e avião depois — auxiliados respectivamente pelo PNT e pela GOL, que trouxe os animais de Cuiabá como carga viva em voos comerciais —, todos os jabutis necessários para uma primeira reintrodução estavam reunidos no CETAS do Rio, mas meses de trabalho ainda os separavam da floresta.

Como de praxe, os animais passaram por uma quarentena e diversos exames, a fim de confirmar que estavam suficientemente saudáveis para serem reintroduzidos e que não carregariam nenhum patógeno para seu novo ambiente. Estruturas para abrigar os animais também tiveram que ser construídas não apenas no CETAS, mas também no PNT. Para desenvolver a melhor estratégia possível para a reintrodução, o projeto está testando dois protocolos diferentes para a soltura dos animais. Parte dos jabutis seriam liberados diretamente no parque. Outros ficariam seis meses dentro de um cercado de aclimatação na própria Tijuca, onde receberiam suplementação alimentar durante o período de adaptação em seu novo ambiente.

Toda essa série de esforços começou a ser recompensada no início deste ano. No dia 16 de janeiro, 28 dos 60 animais do projeto foram liberados na floresta. Parte destes aguardava a abertura das portas do cercado de aclimatação há seis meses, enquanto outros foram transportados diretamente do CETAS para sua vida em liberdade. Todos foram numerados, equipados com radiotransmissores, e serão monitorados diariamente por equipes do Refauna até meados de fevereiro, para que os biólogos possam acompanhar para onde os animais vão se mover, e se eles estão conseguindo sobreviver bem. Em breve, experimentos relacionados à interação desses animais com a vegetação nativa também começarão a acontecer. “Vamos começar experimentos para averiguar quanto tempo sementes ingeridas demoram para passar pelo trato digestivo dos animais,” diz Carolina. “Junto com nossos dados de movimentação, isso vai nos dar uma ideia do quão longe do local de alimentação as sementes poderão ser depositadas. Vamos também analisar a relação entre jabutis e besouros rola-bosta, que podem ajudar a carregar as sementes dispersadas para ainda mais longe, e talvez permitir que eles parem num ambiente ideal para sua germinação”

Biólogos do Refauna procuram os jabutis liberados na floresta com o auxílio de equipamento de rádio-monitoramento. Foto: Carolina Starling.

A esperança é que esses animais ajudem a dispersar os frutos de diversas árvores nativas, e que também comecem a predar algumas invasoras. “Já observamos os jabutis predando Dracena, comigo-ninguém-pode e jaca, o que é ótimo,” acrescenta Carolina.

A reintrodução de jabutis no PNT está apenas começando. Os 28 indivíduos já soltos estão sendo monitorados há duas semanas, passam bem, e já começam a dispersar pela floresta. Uma fêmea, Rubi, já se afastou mais um quilômetro da região de soltura, ocupando novas áreas da Tijuca. Porém, seu novo lar é apenas um dentre centenas de fragmentos do quais jabutis foram extirpados na Mata Atlântica, e as esperanças da equipe do Refauna para o futuro vão além dele.

Em breve, os biólogos poderão associar os dados de comportamento que obtiveram no CETAS com os dados de movimento e sobrevivência dos animais no parque. Isso os ajudará a entender como as personalidades dos jabutis afetam o processo de reintrodução, o que pode ser extremamente valioso para novas reintroduções. “Este experimento visa criar um tipo de protocolo de seleção para futuras reintroduções desta espécie,” afirma Robin. “O objetivo é prever diferentes aspectos da sobrevivência, como o estabelecimento de áreas de vida dos animais ou o ganho de peso dos mesmos, usando dados de personalidade.“

“Eu vejo o refauna como um foco multiplicador,” diz Carolina. “É como um laboratório onde podemos aprender sobre reintroduções e transmitir esse aprendizado para outras pessoas aplicarem este conhecimento de forma mais eficiente.”

 

 

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  • Bernardo Araujo

    Bernardo Araujo é ecólogo, conservacionista e comunicador científico.

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Comentários 3

  1. Jose diz:

    Belo trabalho feito pelos os Biologos;
    Parabens!


  2. Jorge diz:

    Gostaria de saber porque misturam duas populações de biomas diferentes de Jabuti quando sabidamente isso é um grande erro. Existem inúmeras diferenças entre populações de biomas diferentes (ex: anta de Mata Atlântica vs. anta amazônica; onça pintada de Mata Atlântica vs. Pantanal). É um grande erro introduzir uma população com características diferentes. Por acaso foi feito um teste de DNA para comparar as populações ? Aparentemente foram pegando aonde era possível os jabutis sem pensar nas consequências.

    Já em relação ao registros históricos, eu só encontrei relatos sobre jabutis na Viagem ao Brasil do Maximilian de Wied-Neuwied para a Bahia, não foi citado para o Rio de Janeiro (vide o índice alfabético).

    Segundo dados de especialistas Chelonoidis denticulatus tem registro para o Rio de Janeiro, mas para Teresópolis ( http://www.icmbio.gov.br/portal/faunabrasileira/e… ).


  3. Paulo diz:

    Novamente a Biologia da Conservação na prática.