Reportagens

Depois da madeira vem o gado: o desmatamento em Santo Antônio do Matupi

No sul do estado do Amazonas, perto das divisas de Rondônia e Mato Grosso, retirar madeira e colocar gado repete o padrão que destrói a floresta

Fernanda Wenzel · Marcio Isensee e Sá ·
4 de fevereiro de 2020 · 4 anos atrás


Bem ao sul do estado do Amazonas, perto das divisas de Rondônia e Mato Grosso, o  vilarejo de Santo Antônio do Matupi tem 23 oficinas mecânicas, 11 bares e restaurantes, 9 lojas de  produtos agropecuários, 8 hotéis, 4 farmácias e 3 postos de combustível. Toda essa estrutura parece incompatível com o vilarejo de cerca de 10 mil habitantes, à beira da BR 230, a estrada Transamazônica. Conhecido também pelo apelido de 180, em referência ao quilômetro da rodovia em que se localiza, Matupi é um distrito do município de Manicoré.

Matupi registra uma das maiores taxas de desmatamento do Amazonas, o que explica o disparate entre sua pequena população em comparação com sua abundante atividade econômica. Aqui o movimento começa cedo, com caminhonetes 4×4 circulando entre as fazendas. Nas chamadas agropecuárias, lojas de produtos agrícolas, a atividade também é intensa. Os clientes vêm em busca de rações, vermífugos, botas, borrifadores de agrotóxicos e o que mais for preciso para o trabalho no campo. Nas madeireiras, a fumaça sai das chaminés de grandes fornalhas e árvores gigantescas transformam-se em pilhas de madeira. A estrada é poeirenta quando faz sol e barrenta quando chove, mas o trânsito de caminhões carregando gado e madeira não para. 

A origem do vilarejo reflete uma história comum da Amazônia nos últimos 50 anos. Os primeiros moradores chegaram junto com a Transamazônica, nos anos 1970, atraídos pela oferta infinita de terras a preço zero. Naquela época, para ganhar o título de propriedade bastava marcar uma área e desmatá-la. Manuel Vieira Alves, 72, chegou em 1990 e conseguiu seu pedaço de chão, depois de passar por Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso. Segundo ele, a vila começou a crescer de verdade com a chegada das madeireiras, nos anos 2000: “Vieram as serrarias para cá e aí começou a atrair gente. Foi quando desenvolveu mais”.

Em 1995, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) criou o assentamento Santo Antônio do Matupi, que deu nome à localidade e atraiu migrantes vindos principalmente do sul do país. 

Madeira, depois pecuária

Moradores contam que Matupi já teve mais de 50 madeireiras, a maioria ilegais. Os altos índices de desmatamento colocaram o distrito no radar da fiscalização ambiental. Houve operações do Ibama em 2009 – quando o órgão apreendeu 160 caminhões de madeira – em 2011 e 2013. Outras 9 ações de fiscalização ocorreram desde 2017. A mais recente foi em setembro de 2019, quando duas serrarias foram desmontadas. A repressão não conseguiu acabar com a atividade, mas reduziu o número de madeireiras à metade. Hoje, segundo o Ibama, existem 26 autorizadas a atuarem no distrito. Nem por isso a economia de Matupi parou de crescer. Faz alguns anos, a pecuária tomou a frente como principal atividade econômica. O distrito concentra praticamente todo gado de Manicoré – 115 mil cabeças – o que o torna o quarto maior rebanho do Amazonas. Entre 2004 e 2018, o número aumentou 800%, passando de 12,8 mil para 115 mil animais. No mesmo período, foi desmatada uma área equivalente a 82 mil campos de futebol. 

José Carlos da Silva, 53, tem mais de 3 mil cabeças de gado. Sua família foi uma das primeiras a chegar a Matupi, em 1978, vinda do município de Xambrê, no interior do Paraná. Daquela época, ele lembra apenas da fome e da malária. Hoje, mora com a família em uma casa ampla e confortável, tudo graças à pecuária. “O pessoal até fala que gado é um negócio abençoado, e eu acredito que é. […] Tem os vegetarianos, né? Tem um monte de nome que eles falam lá, mas pra cá eu ainda não vi esse pessoal. Pra cá, as pessoas querem comer carne mesmo”. Da Silva acompanhou a transformação da economia local, da madeira para o gado:  “É um processo. Sempre nos lugares em que está começando, a madeira chega primeiro. Depois, vem o desmate da pecuária. Anda junto, a madeira com a pecuária”. As duas atividades também funcionam de forma parecida na hora de fugir da fiscalização ambiental. “Quantas vezes não saí correndo quando tava fazendo desmate?”, reclama Silva.

Clique aqui para fazer o download da tabela com os dados.

Atualmente, os bois criados em Santo Antônio do Matupi são vendidos para o abate em Manaus, Humaitá e Manicoré. Para chegar até Manaus, os animais são levados por 190 quilômetros em caminhões de boi até Humaitá, onde são colocados em barcaças, e viajam por 4 ou 5 dias pelo Rio Madeira. Outra opção é percorrer cerca de 100 km até o porto de Prainha e escoar pelo Rio Aripuanã.

O crescimento do rebanho local já atraiu a atenção de investidores. Hoje, há 2 frigoríficos em construção no distrito. Um deles pertence a um empresário local e deve ficar pronto no final de 2020. A unidade terá capacidade para abater 560 animais por dia, uma planta classificada como de porte médio. O segundo frigorífico está quase pronto e pertence ao grupo Frigonosso, dona de abatedouros em Cacoal e Porto Velho (RO), Rio Branco (AC) e Boca do Acre (AM). A empresa foi a primeira a ser multada por descumprimento do TAC da Carne, um Termo de Ajustamento de Conduta em que os frigoríficos se comprometem a não comprar carne oriunda de desmatamento ilegal. Em ação judicial de outubro deste ano, o Ministério Público Federal (MPF) pediu o pagamento de uma multa de R$ 3,8 milhões de reais, diante da “total ausência de esforços para cumprir as obrigações assumidas” pela empresa na sua unidade de Boca do Acre. Apesar da multa, o Frigonosso se prepara para abrir seu novo frigorífico em Santo Antônio de Matupi,  onde, nos últimos 10 anos, o Ibama já embargou 452 áreas de fazenda por ilícitos ambientais.

((o))eco entrou com contato com o representante do Frigonosso em Santo Antônio do Matupi, mas ele negou receber a reportagem. Também foi solicitada uma entrevista através do email institucional da empresa, sem resposta.

20 fazendas e R$ 80 milhões em multas

Se os primeiros fazendeiros a chegar aqui, nos anos 1970, chegaram com uma mão na frente e outra atrás, hoje Matupi atrai gente graúda. Douglas Pereira Louzada Neves, maior fazendeiro da região, tem 20 fazendas em seu nome, que somam 70,8 mil hectares (mais de 70 mil campos de futebol), situadas em Manicoré e no município vizinho, Novo Aripuanã. As informações constam no documento anexado a uma das 6 ações que o Ministério Público Federal abriu contra Neves, que denunciam o desmatamento ilegal de 1.661 hectares. No Ibama, Neves também se destaca pelo número de autuações: foram 40 vezes, com 8 propriedades embargadas. Somando multas do Ibama e pedidos de indenizações do MPF, o total é de R$ 79,8 milhões.

Mas quando recebeu ((o))eco em sua casa, em Santo Antônio do Matupi, Neves admitiu um patrimônio mais modesto, de 3 mil hectares de terra e 3 mil cabeças de gado. Homem de poucas palavras, explicou que veio de Colorado, em Rondônia, em busca de terras mais baratas. Questionado sobre as multas do Ibama, alertou: “Sua reportagem tá começando a ir pro lado errado. Daí, já vou desanimar de você”.

A chegada de grandes investidores como Douglas Neves à Matupi é um dos fatores que impacta a formação do assentamento original do Incra, onde agora é difícil encontrar os primeiros assentados. A maioria vendeu a propriedade para grandes fazendeiros vindos de outros estados, principalmente Rondônia: “Tem muito pouca gente daquele tempo. Uns venderam aquele lotinho e compraram área maior para fora. Tem assentado do Incra aí que vendeu aqui por R$ 10 mil e foi lá pra frente e comprou 3 vezes mais terra do que ele tinha aqui”, explica Manuel Vieira Alves.

Uma dinâmica que mantém ativa a engrenagem do desmatamento. Quem vem na frente consegue a terra quase de graça, mas arca com as dificuldades de chegar em um lugar sem infraestrutura e onde o Estado é inexistente. Quem vem atrás paga um pouco mais caro, mas chega com mais dinheiro e melhores condições de investimento. Um processo que faz parte da história de ocupação da Amazônia, como explica Gabriel Cardoso Carrero, pesquisador sênior associado do Idesam (Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia): “É um processo que poderia ser chamado de matogranização de Rondônia, e depois de rondonização do Amazonas. São pessoas que têm esse perfil de trabalharem mais com pecuária do que com agricultura, e que vão atrás de terras desocupadas, sem nenhuma infraestrutura. Quando a infraestrutura chega, estas terras valorizam e essas pessoas acabam por vender a terra e vão mais à frente na fronteira”.

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Esta reportagem faz parte do projeto que busca melhorar a eficiência dos acordos da carne e da soja, realizado em parceria com o Imazon e apoio da Gordon and Betty Moore Foundation

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  • Fernanda Wenzel

    Fernanda Wenzel é jornalista freelancer especializada em Amazônia e meio ambiente.

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    Marcio Isensee e Sá é fotógrafo e videomaker. Seu trabalho foca principalmente na cobertura de questões ambientais no Brasil.

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Comentários 12

  1. Anderson diz:

    Como pode um site tão mentiroso ! Primeiro chegou nas propriedades rurais falando que era uma revista com assuntos ligados à pecuária ! E na verdade é uma ONG! E outra são as inverdades sobre o Matupi ! Falam da madeira mais não falaram o tanto que o povo trabalha correto aqui ! Com planos de manejos florestais ! Tinha que criar vergonha na cara e quando for falar com um produtor rural, tinha-se que curvar pra cumprimentar! É ele que coloca o alimento sua mesa bando de atoa !!!!


    1. Paulo diz:

      Tem derrubada ilegal. Tem ou não tem.

      Fala a verdade.


  2. Vilson Borelli diz:

    Nos sentimos prejudicados/condenados com inverdades nesta reportagem do Matupi,180, gostariamos de enviar 2 notas de esclarecimento pra serem publicadas em seu inteiro teor . pra qual email enviamos ?


    1. danyrius19 diz:

      Boa noite sr Borelli, por favor envie suas notas de esclarecimento para [email protected], que avaliaremos sua reclamação e responderemos. Daniele Brangança, editora do site ((o))eco


  3. Paulo diz:

    80 milhões de multa!

    Cadê os advogados da PROCURADORIA da República dos governos passados e atual.
    O Eco deve ir atras dos nomes dos advogados do órgão e perguntar a eles.


    1. Allysson diz:

      Aínda existem uns babacas que não sabe de onde vem um kg de carne que come tem é que extinguir esse ibama que só atrapalha quem quer trabalhar e igual semana passada agora estão atirando nós trabalhadores pelas costas. Bora presidente BOLSONARO extibguê logo esse órgão que só está aí pra travar e atrapalhar o BRASIL de verdade e pra dar emprego a pessoas que querem o atraso do pais


      1. Paulo diz:

        Eu sei, de onde vem meu file/bife , etc.
        Com certeza não vem desta região sr. Alysson.

        Emprego! ou sub emprego.

        Papo furado de cupim.


        1. Janiel diz:

          O Sr. deve morar em uma casa confortável, em uma grande cidade, deve usar roupas caras e com certeza tem uma boa renda financeira, quem sabe veio a ate de uma familia com grandes poderes aquisitivos!!!Agora aqui no sul do amazonas 90% da população estao aqui em busca de um futuro melhor para sua própria velhice e para seus filhos, em vez de morrerem de fome e pedirem ajuda do bolsa família eles querem trabalhar e tirar o próprio sustento, desfrutar do frutos do seu trabalho… Entao convidamos com toda educação do mundo ao Sr.a Paulo a vir passar uma temporada no Santo Antônio do Matupi, mais sem o dinheiro que o senhor deve ter… ai sim o Senhor pode acusar essa população esquecida do resto do país, que se quer dispõe de um hospital para atender sua população!! Isso garanto que esse site não mencionou…. e quanto a ong que menciona esta matéria, quando voltarem seja-mos sinceros e nao enganem as pessoas que aqui moram com falsas metiras, pessoas com pouco estudo, mais muita vontade de terem uma situação melhor na vida!!!


        2. Marivaldo diz:

          Ai que o Sr. se engana!!! Muito dos grandes mercados de sua regiao compram carne de da região norte do Brasil, Pará, Rondônia entre outros, fora as carretas de bezerros e bois que levam diariamente para grandes fazendas e confinamentos do sul e sudeste de nosso país… agora lhe faço uma pergunta sera que nunca comeu carne de estas regiões???


          1. Pedro diz:

            Oi colega, vou responder a sua pergunta , mesmo não sendo eu que fiz a outra resposta , aqui onde eu moro em São Paulo eu tenho uma terrinha onde tem de tudo , incluindo gado , aliás gado 🐮 é Msto hoje em dia em todo lugar tem , poroso não 👎 precisamos de comprar nada aí do Norte entendeu ?! Essa desculpa, que vocês sustentam os supermercados etc com carne 🥩 , pra mim não vale nada , São Paulo é auto -sustentável , oque vocês fazem aí é forjar uma produção pecuária na floresta 🌳 onde tem outras finalidades sem precisar destruir , e porque vocês fazem isso , para grilar terras e extrair madeira , vocês não vivem de gado 🐮 colega nunca foi gado sempre foi roubar a floresta Derrubar madeira e não pagar imposto por isso aí é tudo ilegal na maioria


          2. Paulo diz:

            Boa noite.
            Sr. Janiel, tenho casa confortáve sim, depois de 15 anos pagando aluguel, até economizar e adquirir. Não uso roupa cara, muito jeans, média renda. Vim de família de "colonos" e destes de imigrantes da Europa . Se lascaram como muitos.
            Eu trabalhei deste os 15 (carteira assinada),depois me formei e saí somente com o canudo na mão, que agradeço muito a minha Mãe (viúva).
            Sei que os cupins do SUL, devoram tudo. E da carne, vasculho a origem, tenham certeza de lá não é.
            Abraços
            inté