Reportagens

Considerado extinto por mais de um século, o formigueiro-de-cabeça-negra segue desprotegido

A espécie de ave, que só ocorre numa pequena localidade no litoral do estado do Rio de Janeiro, segue vulnerável à extinção, com um habitat desprotegido e cada vez mais pressionado pela expansão urbana

Duda Menegassi ·
18 de fevereiro de 2021 · 3 anos atrás
O macho do formigueiro-de-cabeça-negra (Formicivora erythronotos) tem uma coloração avermelhada característica. Foto: Marco Silva

Por mais de um século, o pequeno pássaro formigueiro-de-cabeça-negra, descrito pela primeira vez em 1852, desapareceu. Um último esforço de expedição para tentar encontrá-lo foi feito nos anos 80 e percorreu regiões do estado do Rio de Janeiro como o município de Nova Friburgo, que até então era o local onde acreditava-se que a espécie vivia, mas não se viu, nem ouviu nenhum pio do formigueiro. A verdade é que se sabia muito pouco à época sobre este pássaro, muito menos como era o seu canto, já que todas as informações se baseavam em exemplares mortos, comprados ou coletados por naturalistas e colecionadores. Foi com muita surpresa – e grandes doses de incredulidade – que a espécie foi reencontrada, em 1987, num local diferente do esperado: o litoral fluminense, mais especificamente em uma zona entre os municípios de Angra dos Reis e Paraty. Nos 33 anos que se passaram desde então, a comoção pela sua redescoberta não se transformou em ações concretas de conservação, e hoje, com o avanço desordenado da urbanização, pesquisadores alertam que algo precisa ser feito para garantir a sobrevivência do formigueiro-de-cabeça-negra.

Primeiro, cabe apresentá-lo melhor. O formigueiro-de-cabeça-negra (Formicivora erythronotos) é um pássaro pequeno, mede cerca de 11 centímetros – menor que uma caneta. Os machos apresentam uma coloração avermelhada nas costas em meio ao corpo negro, o que lhes rendeu o nome, que significa “devorador de formigas com as costas vermelhas”, uma referência também a sua preferência de cardápio.

A espécie vive em matas secundárias como capoeiras, ambientes de vegetação mais arbustiva, ou arbóreas em baixadas costeiras úmidas. Essa característica por um lado garante uma maior adaptabilidade do formigueiro a áreas antropizadas, como plantios abandonados, por outro lado, as florestas de baixadas do estado do Rio, que outrora também poderiam abrigar a espécie, foram quase todas devastadas.

“A região da Costa Verde – Angra dos Reis, Mangaratiba e Paraty – só foi devassada mesmo a partir dos anos 70, quando construíram a Rio-Santos. Havia uma pressão pequena sobre a vegetação. E a redescoberta [do formigueiro] foi 15 anos depois disso. Já o contrário não, se a gente pegar a região da capital até o norte do estado, todas as baixadas, que seriam o habitat esperado para o formigueiro, foram detonadas há muito tempo, mais de 200 anos. Sobrou muita pouca mata de baixada, fragmentos. Enquanto na Costa Verde, a mata de baixada se salvou até os anos 70”, conta Fernando Pacheco, o ornitólogo responsável pela redescoberta do formigueiro-de-cabeça-negra, em 1987.

O rio Mambucaba marca a divisa entre os municípios de Angra dos Reis e Paraty, na região fluminense conhecida como Costa Verde. Mais ao leste, num raio de cerca de 30 quilômetros e mais próximo da cidade de Angra, está a região do Ariró. De acordo com o Livro Vermelho da Fauna Ameaçada (Volume II – Aves), cerca de 90% da população total do formigueiro estaria concentrada nessas duas localidades: o vale do Mambucaba e a baixada do Ariró.

Apesar de aparecer apenas como Em Perigo na Lista Vermelha da União Internacional pela Conservação da Natureza (IUCN), na lista nacional organizada pelo Plano de Ação Nacional (PAN) Aves da Mata Atlântica, o formigueiro-de-cabeça-negra é considerado Criticamente Ameaçado, a categoria mais severa antes da extinção na natureza.

A ornitóloga Maria Alice dos Santos Alves, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), faz parte do Grupo de Assessoramento Técnico do PAN e explica que a classificação crítica se dá pelo declínio populacional da espécie. “Estima-se que não existam mais que 250 indivíduos maduros na natureza”, aponta a ornitóloga. “Além de poucos indivíduos, provavelmente estão concentrados em uma única subpopulação. Além disso, está ocorrendo perda do hábitat na região para, por exemplo, expansão urbana, empreendimentos turísticos, pastagens e monoculturas”, completa.

O habitat do formigueiro-de-cabeça-negra está sendo pressionado pela ocupação desordenada. Foto: Marco Silva

“Embora esta espécie ocorra em áreas de floresta secundária e em regeneração, aparentemente não se mostrando exigente no uso do hábitat, trata-se de uma espécie rara e com distribuição muito restrita, sendo endêmica de floresta de baixada litorânea da Mata Atlântica, em contato com áreas de restinga arbórea e mangue, evitando entrar em florestas densas ou pouco perturbadas. Suas exigências ecológicas não foram suficientemente estudadas, o que dificulta direcionar ações de conservação. Pouco se conhece sobre a biologia e ecologia desta ave, que se limita principalmente à pesquisa sobre sua reprodução por pesquisadores da UFRJ, realizada há cerca de 20 anos”, explica Maria Alice.

De acordo com ela, levantar dados sobre o formigueiro é o primeiro passo para construir as melhores estratégias de conservação e é uma das ações do Plano de Ação Nacional, cujo ciclo atual se encerra em 2022. “Para esta ação, está sendo feita uma amostragem expedita para realizar uma modelagem, de forma a indicar potenciais áreas de ocorrência do formigueiro-de-cabeça-negra, o que pode ajudar a identificar esses locais na área de distribuição da ave. Com o conhecimento detalhado da área de ocorrência da ave e consequentemente estimativas de tamanho/densidade populacionais, poderemos chegar a uma definição mais precisa do status da espécie e direcionar ações que possam ser mais efetivas para a sua conservação”, conta.

O segundo passo seria garantir a proteção do habitat do pássaro. Próxima da área de ocorrência do formigueiro está o Parque Nacional da Serra da Bocaina, mas não há registros da ave dentro da unidade de conservação de fato. Maria Alice aponta que uma solução em potencial seria realizar a delimitação continental precisa dos limites da Estação Ecológica de Tamoios, o que poderia abranger áreas de ocorrência da espécie.

“Efetivamente esta ave não tem praticamente nenhuma unidade de conservação de proteção integral, tanto no nível federal quanto estadual, que contemple toda ou a maior parte da sua área de ocorrência”, afirma Maria Alice.

Outra área protegida vizinha é o Parque Estadual do Cunhambebe, gerido pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea-RJ). “O Parque Estadual do Cunhambebe, por exemplo, desde 2008 protege legalmente uma grande parte da Costa Verde, mas ironicamente seu contorno deixou de fora as áreas conhecidas de ocorrência do formigueiro-de-cabeça-negra. Provavelmente este Parque focou nos maciços de floresta ombrófila preservados, que embora seja um ambiente importantíssimo para a biodiversidade em geral, é evitado pelo formigueiro-de-cabeça-negra. Seria importante em algum momento rever os limites deste Parque estadual, de forma a ampliá-lo em locais que possam abranger as áreas de ocorrência dessa espécie”, explica a ornitóloga.

“Uma importante medida adicional seria incentivar proprietários locais a criarem RPPNs nos trechos em que essa ave está presente”, acrescenta, em referência às Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), unidades de conservação privadas e de proteção integral.

Seja por meio da criação de novas áreas protegidas ou da ampliação e delimitação das existentes, os pesquisadores envolvidos na conservação do formigueiro-de-cabeça-negra são unânimes: é preciso proteger o território de ocorrência da espécie para garantir sua sobrevivência.

“Essa é uma ave que gosta de ambientes sucessionais, ela fica no sub-bosque e se alimenta até 2 metros de altura. Ela precisa dessa vegetação arbustiva, a capoeira. E nesse aspecto, ela “dá sorte”, porque não depende de florestas maduras, que levam 100 anos para se formar. E hoje em dia ela está só ali. Não existe de fato uma área de preservação ali onde ela ocorre, que seja de proteção integral e uso restrito”, aponta Pacheco.

De acordo com dados do IBGE, em 1970, o distrito de Mambucaba tinha uma população de 880 habitantes. Conforme o Censo de 2010 do IBGE, o número no distrito pulou para mais de 17,7 mil moradores. Já a população do município de Angra dos Reis é estimada em 207.044 pessoas.

“Essa região, o distrito de Mambucaba, está crescendo e essa expansão urbana está entrando nas áreas que eram de ocupação dessa espécie. O formigueiro ocorre principalmente no vale do rio Mambucaba, em ambas as margens, de um lado é Paraty e do outro é Angra. E nesse lado de Angra, ele está perdendo a cada ano uma área grande com esse crescimento desordenado de Mambucaba. No passado, quando eu conheci essa região e redescobri a espécie, metade do distrito era a vila dos funcionários da usina nuclear. Hoje em dia, Mambucaba é enorme. Hoje a vila de funcionários deve ser 5% da área urbana de Mambucaba”, ressalta.

 

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  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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Comentários 1

  1. aguinaldo dorlitz diz:

    Tenho 78 ano, até os doze anos vivi na ilha de Santo Amaro (Guarujá SP)no morro, proximidade com morro do macaco molhado ,vi muito passarinho comendo formiga mas conheci por TÃO QUERO seria o mesmo . Não me lembro a cor.