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Após 5 anos da crise de abastecimento, SP ainda busca alcançar segurança hídrica

Cantareira, o mais afetado durante crise, recebe ações do projeto Semeando Água, que desenvolve atividades junto a produtores rurais visando aumentar resiliência do Sistema

Cristiane Prizibisczki ·
29 de setembro de 2019 · 5 anos atrás
Represa Jaguari, em Bragança Paulista. Foto: André Prata.

Há cinco anos, em outubro de 2014, o Sistema Cantareira, que abastece a região metropolitana de São Paulo, registrou os menores níveis em toda sua história. Era o auge da crise hídrica, quando o nível dos reservatórios chegou a cerca de 5% do armazenamento, já considerando o uso das reservas técnicas, e a população enfrentou severo racionamento de água. A crise representou um alerta para os problemas que o sistema enfrentava e para uma característica que até hoje não foi resolvida: sua baixa resiliência.

Levantamento da Agência Nacional de Águas (ANA) sobre a variação do volume útil do Cantareira mostra que a regulação do Sistema é muito suscetível às variações no regime de chuvas da região, com médias que vem decrescendo ao longo das últimas décadas. A notícia não é nada boa em épocas de mudanças climáticas, com períodos de estiagem mais longos e frequentes.

Para tentar resolver o problema de abastecimento em São Paulo, de 2014 a 2019, a Companhia de Saneamento Básico do Estado (Sabesp) realizou 35 grandes obras, como transposições entre os diferentes sistemas paulistas, e mais de mil intervenções urbanas, além de campanhas junto à população.

Como resultado, o consumo de água na capital está 24% menor do que os níveis registrados antes da crise e a perda de água por vazamentos na rede foi reduzida para 30,1% (a média nacional é de 38,3%). Segundo o último Relatório de Sustentabilidade divulgado pela Sabesp, referente a 2018, somente neste ano foram investidos mais de R$2 bilhões nas obras e serviços destinados à ampliação e fortalecimento estrutural impulsionado pela crise.

Apesar dos investimentos, para especialistas, São Paulo ainda não atingiu uma situação de segurança hídrica, devido a problemas comuns aos sistemas de abastecimento em todo país: a degradação e o uso do solo no entorno dos mananciais.

“Estamos captando água de um manancial que é servido por uma bacia com ações antrópicas atuando sobre ela que não recebem o cuidado que deveria ter, em termos de Estado e de município”, diz Francisca Adalgisa da Silva, analista de sistemas de saneamento da Sabesp.

Margens ocupadas

O Cantareira é um grande sistema de reservatórios interligados, construído a partir da década de 1970 com o objetivo de abastecer municípios da Grande São Paulo e região. Ele é formado por cinco represas (Jaguari-Jacareí, Cachoeira, Atibainha, Paiva Castro e Águas Claras), que estão conectadas por túneis subterrâneos e canais, importando água da Bacia do Rio Piracicaba para a Bacia do Rio Tietê. Atualmente, o Sistema atende 7,5 milhões de pessoas na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) – eram 9,5 milhões antes das obras de manutenção e modernização do sistema.

A superfície do Sistema Cantareira ocupa uma área de quase 230 mil hectares (2.278 km²), abrangendo 12 municípios, sendo quatro deles no Estado de Minas Gerais (Camanducaia, Extrema, Itapeva e Sapucaí-Mirim) e oito em São Paulo (Bragança Paulista, Caieiras, Franco da Rocha, Joanópolis, Nazaré Paulista, Mairiporã, Piracaia e Vargem).

Segundo o Atlas dos Serviços Ambientais do Sistema Cantareira, criado pelo Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), atualmente, 61,6% da área do Sistema é dominada por ações antrópicas, como áreas urbanas e pastagens em pequenas propriedades. Da mata nativa, restam apenas 35,4%, em diferentes estágios de sucessão e perturbação.

Efeito esponja

Nos anos que se seguiram à crise hídrica, o Sudeste viu a precipitação aumentar, mas não a ponto de restabelecer os volumes do Sistema anteriores a 2014. Essa situação se deve grandemente às características do uso do solo no entorno das represas.

Segundo o Atlas do IPÊ, além das ocupações urbanas, 46% das margens são usadas para pastagens, geralmente degradadas, com baixa produtividade e alto impacto ambiental. “Pastagens degradadas apresentam baixa biomassa (capim ralo), provocam a compactação do solo, são pobres em nutrientes e biodiversidade e permitem uma maior exposição do solo a processos erosivos”, diz o documento.

Isto é, áreas com vegetação preservada contribuem para a retenção da água da chuva no subsolo, já pastagens e áreas degradadas não favorecem a penetração da água pelos poros do terreno para abastecer o lençol freático, que precisam ser recuperados para, assim, reabastecerem as represas.

“É um sistema de baixa resiliência, ou seja, quando tem chuva muito forte, ao invés do solo armazenar essa água, ela acaba passando muito rápido através de escoamento superficial, chegando muito rápido até a represa. Em 2009 e 2010, a Sabesp teve que abrir as comportas porque os reservatórios estavam muito cheios, perdendo toda aquela água. O ideal seria que essa água fosse armazenada nos lenções freáticos, para quando houvesse maior período de escassez, você tivesse essa água de forma mais perene”, explica Alexandre Uezu, biólogo e pesquisador do IPE em Ecologia e Paisagem.

Semeando água

Desde a criação do Sistema Cantareira, a Sabesp mantém o programa de reflorestamento Cinturão Verde dos Mananciais Metropolitanos que, nos últimos anos, plantou cerca de dois milhões de mudas e, segundo relatório da empresa, ampliou a cobertura vegetal das áreas pertencentes à Companhia de 61% para 78%. O problema é que apenas 14% da área total do Sistema (33 mil ha) está sob concessão da Sabesp e a maior parte do restante se concentra em áreas particulares.

Levando em conta essas características, o Instituto IPE criou o programa Semeando Água, que tem por objetivo disseminar práticas sustentáveis junto aos produtores rurais da região, de forma a ampliar a conservação dos recursos hídricos e, ao mesmo tempo, aumentar a renda desses produtores. O projeto, que em 2019 está em seu segundo ciclo, atua em cinco frentes: Restauração Florestal, Educação Ambiental, Manejo de Pastagem Ecológica, Políticas Públicas e Comunicação.

Curso. Crédito: Thiago Baccarin/Estúdio Garagem.

O projeto realiza campanhas de conscientização ambiental nos oito municípios participantes e fornece cursos de capacitação para produtores rurais, tudo de forma gratuita. Nesses cursos, que têm duração de três dias, os fazendeiros da região têm aulas sobre melhores práticas no manejo da pastagem, fontes alternativas de geração de renda – como silvicultura, viveiros de mudas e cadeias produtivas de produtos da região, a exemplo do queijo – além de legislação ambiental e restauração florestal.

Além disso, o projeto fornece consultoria gratuita para aos produtores. “No último dia de curso, fazemos o planejamento individual de cada produtor, usando sistemas de informação geográfica, para a implementação do sistema rotacionado de pastagem. Ainda há uma parcela considerável que não tem o CAR (Cadastro Ambiental Rural), então ajudamos no processo de inscrição também”, explica Andrea Pupo Bartazini, coordenadora de educação ambiental do Semeando Água. Se necessário, o projeto também pode apoiar proprietários rurais com doação de materiais e mão de obra.

A iniciativa do Instituto IPE ainda ajuda os proprietários rurais na recuperação das Áreas de Proteção Permanente (APP). “Apenas na região, 21 mil hectares das APPs devem ser recuperados, o que significa plantar 35 milhões de árvores”, diz Alexandre Uezu, que também é coordenador do Semeando Água. No entanto, o IPE salienta que é fundamental que existam políticas públicas para ajudar proprietários nesse trabalho.

Atualmente, estão em curso programas como o Conservadores de Águas, no município de Extrema (MG), e o Projeto Nascente Modelo, em Piracaia (SP), que fazem parte do Sistema Cantareira. No entanto, a própria Sabesp reconhece que é preciso aumentar as iniciativas públicas nesse sentido.

Miguel Uchoa. Foto: Cibele Quirino/Projeto Semeando Água.

“Temos que ter efetivamente uma melhoria na questão do uso e ocupação do solo. Mais fiscalização, evitar ocupações, desmatamento, degradação dos corpos hídricos, das nascentes menores. Precisa de investimento real na recuperação dos mananciais, de uma política pública voltada para os mananciais, além de investimento da educação ambiental”, diz a analista da Sabesp, Francisca Adalgisa da Silva.

Para Miguel Uchôa, administrador da Fazenda Cravorana, localizada em Piracaia (SP) e participante do Semeando Água, a iniciativa do Instituto de Pesquisas Ecológicas foi benéfica em vários sentidos e deveria ser replicada em outras propriedades. “Já percebemos que com o manejo ecológico, cria-se um ‘colchão’ do capim que nunca abaixa mais do que 15 cm. Ele amortece a chuva e permite que a água infiltre bem mais. Outra coisa que a gente já percebeu também é que existe um melhor controle de carrapato, baixando custos e mão de obra. Valeu tanto a pena participar do projeto que estamos ampliando a área da fazenda com as técnicas aprendidas”, diz.

Agora, resta que governos municipais e Estadual se empenhem mais em recuperar as áreas de mananciais, por meio de ações diretas em áreas públicas, ou programas voltados aos proprietários de terras do entorno dos Sistemas, de forma a contribuir com produtores e tentar garantir segurança hídrica para a população beneficiada, evitando a ocorrência de novas crises de abastecimento.

“O que observamos no Cantareira é um reflexo do que acontece no restante do país. É uma questão histórica. Fizemos uma aposta num tipo de produção, geralmente na forma de monoculturas e  pastagens, e perdemos os benefícios que um sistema mais diverso poderia ter, tanto em benefício do produtor rural, quanto no fornecimento de serviços ambientais”, diz Alexandre Uezu.

 

 

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Comentários 1

  1. Paulo diz:

    Visto em vôo, ao redor dos mananciais e morros inclinados, tudo "pelado". Primeiro precisam fazer o que manda a lei.