Reportagens

A face oculta da febre amarela

Desde o início da epidemia no centro-sul do País, em junho de 2016, a doença já matou 764 pessoas ‒ e ao menos 3.400 macacos, quase todos bugios

Peter Moon ·
21 de abril de 2019 · 5 anos atrás
Bugios são vulneráveis à febre amarela. Foto: Wikimédia.

Desde o final de 2016, quando teve início a atual epidemia de febre amarela no Brasil, a maior em décadas, já foram confirmados 2.245 casos da doença, com 764 mortes, indica o Ministério da Saúde. Mas a epidemia possui uma outra face, silenciosa, porém não menos dramática. Trata-se da tragédia que assola os macacos, infectados pelas picadas dos mesmos mosquitos transmissores do vírus da doença. Desde o final de 2016, a vigilância epidemiológica dos estados do centro-sul do País ‒ onde se concentra a epidemia ‒ coletaram os carcaças de mais de 10 mil macacos achados em florestas e parques, entre bugios (ou guaribas), macacos-prego e diversas espécies de saguis. O vírus da febre amarela foi encontrado em 3.403 deles.

“Acredita-se que mais de 90% dos macacos mortos são bugios. A espécie é extremamente suscetível à febre amarela,” afirma a Dra. Ester Sabino, diretora do Instituto de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IMT-USP).

“Existiam bandos de bugios com mais de 80 indivíduos que foram inteiramente dizimados” diz a veterinária Mariana Sequetin Cunha, do Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo.

Ela se refere ao ocorrido no final de 2017, quando todos os bugios do Parque Horto Florestal, na Zona Norte da cidade de São Paulo, foram mortos pela febre amarela. Ao todo, 17 famílias, totalizando 86 macacos, morreram após contrair o vírus da doença.

Em todo o estado de São Paulo, estima-se que 2,5 mil bugios, de uma população de 40 mil, morreram entre julho de 2016 e janeiro de 2018, segundo dados do Centro de Vigilância Epidemiológica.

Mariana Cunha é a principal autora de um estudo que acaba de ser publicado em Scientific Reports, dando conta da primeira onda da epizootia (epidemia em animais) de febre amarela no estado de São Paulo, ocorrida entre o segundo semestre de 2016 e o primeiro semestre de 2017.

Em termos regionais, aquele período concentrou 73% dos óbitos entre primatas não-humanos, a designação científica para nossos primos bugios, macacos-prego e saguis, que dividem conosco o ramo da ordem primata na grande Árvore da Vida.

Raio X da epidemia

Centenas de bugios-marrons foram mortos pelo vírus da febre amarela. Foto: Carla Possamai/Projeto Muriqui de Caratinga.

A febre amarela é uma doença febril aguda causada por um vírus transmitido aos macacos e ao homem por meio da picada de mosquitos infectados. Uma das características da febre amarela é a icterícia, que provoca uma coloração amarelada na pele e nos olhos, daí o nome da doença.

No ciclo de transmissão silvestre da febre amarela, o vírus circula entre mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes e os macacos bugios, pregos e saguis. Neste ciclo, o homem é considerado um hospedeiro acidental, quando não imunizado contra a doença, infectando-se ao entrar áreas de mata e ambientes rurais onde há ciclo de transmissão silvestre.

No ciclo de transmissão urbano, a manutenção da transmissão se dá entre o homem e os mosquitos da espécie Aedes aegypti. Neste ciclo, o homem representa o hospedeiro principal. A febre amarela era endêmica nas regiões Sul e Sudeste no início do século 20. Foi graças a campanhas de vacinação, aliadas ao combate aos focos do Aedes, que a transmissão urbana foi sendo erradicada. O último registro da transmissão por Aedes aegypti no Brasil se deu em 1942, no Acre.

Nas duas últimas décadas, foram registradas transmissões de febre amarela a humanos além dos limites da região amazônica, área onde a doença é considerada endêmica. Foram registrados no período casos em humanos e em macacos na Bahia, Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul.

A partir do final de 2016, no entanto, a transmissão ganhou novas proporções. A dispersão do vírus alcançou a região da Mata Atlântica, bioma que abriga grande diversidade de macacos e onde o vírus não era registrado há décadas.

Foi quando soou o alarme no Ministério da Saúde.

As regiões afetadas bordejam grandes centros urbanos densamente povoados, o que inclui quatro das dez maiores cidades brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Curitiba. Em 2016, dezenas de milhões de habitantes daquelas áreas não estavam imunizados contra a febre amarela.

Não bastasse, desde os anos 1990 o Aedes aegypti vinha repovoando o centro-sul do Brasil, de modo que estavam colocadas as condições para uma possível volta da transmissão urbana da febre amarela ‒ o que até o momento não ocorreu. Felizmente.

Mosquito Heamagogus, transmissor da febre amarela silvestre. Foto: Wikimédia.

Em meados de 2017, ficou evidente para o Ministério da Saúde e para as secretarias de Saúde estaduais a extrema urgência em vacinar cerca de 60 milhões de brasileiros, moradores das regiões onde pipocavam focos da doença, a fim de evitar uma tragédia humana de proporções desconhecidas,.

A estatística é tenebrosa. E bastante simples. Muito embora apenas 10% dos infectados pelo vírus da febre amarela venham a desenvolver a doença, entre aqueles que a desenvolvem a letalidade é 40%. Ou seja, na eventualidade do ressurgimento da transmissão urbana da doença, a cada grupo de mil pessoas picadas por mosquitos infectados pelo vírus, 100 iriam desenvolver a doença e 40 acabariam morrendo.

No pior dos cenários visualizados pelos epidemiologistas, a eclosão uma epidemia de febre amarela urbana no centro-sul do País poderia significar dezenas de milhares de mortos.

A campanha de vacinação em massa veio evitar tal possibilidade.

De acordo com dados do Ministério da Saúde, desde 2017 foram imunizados mais de 30 milhões de pessoas. Foi isto que fez arrefecer as estatísticas da epidemia.

Entre o final de 2016 e maio de 2017, durante a primeira onda da epidemia, foram confirmados em todos os estados atingidos 792 casos humanos da doença (com 274 óbitos), enquanto que a presença do vírus foi confirmada em 2.504 macacos mortos.

Entre julho de 2017 a junho de 2018, durante a segunda onda e já com a campanha de vacinação devidamente deslanchada, foram confirmados 1.376 casos em humanos (483 óbitos), e o vírus detectado em 864 macacos mortos.

Desde o início da terceira onda da epidemia, no segundo semestre de 2018, o total de casos confirmados em humanos caiu a 12 (com 5 óbitos), e em macacos a 20 animais. Nos primeiros quatro meses de 2019, foram registrados no centro-sul 78 casos em humanos (14 óbitos) e 15 macacos.

No estado de São Paulo, atualmente a epidemia se encontra praticamente limitada à região do Vale do Ribeira, que concentra 96,8% dos casos, segundo dados do Centro de Vigilância Epidemiológica. Razões para tanto incluem o fato de a região ser economicamente a menos desenvolvida de todo estado, ser coberta por extensas áreas de floresta, e a vigilância epidemiológica ser, infelizmente, precária.

Caça ao vírus

“Os resultados de seu estudo agora publicado são importantes para tentar compreender os caminhos bióticos que levaram o vírus da febre amarela a sair da Amazônia, onde a doença é endêmica, e pular de galho em galho, ou melhor, de macaco em mosquito, até vir provocar a epidemia atual no centro-sul.”

Em São Paulo, em seu laboratório no Instituto Adolfo Lutz, o trabalho da veterinária Mariana Sequetin Cunha é investigar amostras de tecidos (geralmente de cérebro, fígado ou baço) coletadas em todos os macacos mortos encontrados pela vigilância epidemiológica estadual, e enviadas compulsoriamente para análise no Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo. Entre julho de 2016 e março de 2017, foram encaminhados ao Adolfo Lutz amostras de 430 macacos mortos. A grande maioria vinha de bugios, macacos-aranha e saguis, mas havia também alguns titis (Callicebus nigrifrons) e micos-leões-dourados (Leontopithecus rosalia).

Cunha investigou cada um deles, para determinar a existência ou não do vírus da febre amarela.

Os resultados de seu estudo agora publicado são importantes para tentar compreender os caminhos bióticos que levaram o vírus da febre amarela a sair da Amazônia, onde a doença é endêmica, e pular de galho em galho, ou melhor, de macaco em mosquito, até vir provocar a epidemia atual no centro-sul.

“A febre amarela é silvestre. O risco é virar urbana. O estudo da Mariana descreve a evolução do vírus em diferentes espécies de macacos. Os saguis têm uma forma mais branda da doença, quando comparados aos bugios e aos macacos-prego,” diz Ester Sabino, do Instituto de Medicina Tropical da USP.

De acordo com Cunha, “nem todos os macacos mortos encontrados pela vigilância e encaminhados ao Adolfo Lutz morreram de febre amarela. Alguns morreram atropelados, outros foram eletrocutados, por exemplo. Mas a partir do momento em que um macaco é achado morto, seja por qual circunstância aparente for, o protocolo exige que seja enviado para cá.”

De fato, a presença do vírus acaba descartada no maioria dos casos. E mesmo na minoria na qual o vírus é encontrado, no caso dos macacos-prego e dos saguis não é possível afirmar que morreram de febre amarela, pois os macacos-prego (gênero Sapajus) apresentam certa suscetibilidade ao vírus, podendo ou não morrer da doença, enquanto os saguis (gênero Callithrix) são considerados resistentes. Já entre os bugios (gênero Alouatta), a ausência ou presença do vírus é um divisor de águas entre a vida e a morte.

A partir dos primeiros casos da epidemia em meados de 2016 no norte do estado de São Paulo, o vírus veio avançando até atingir a região de Campinas, em meados de 2017. “O vírus não circulava em Campinas desde o início do século 20!” exclama Cunha.

Campanha da Associação Mico Leão Dourado contra a matança de macacos. Imagem: Facebook/AMLD.

“O primeiro macaco infectado pelo vírus foi confirmado no Adolfo Lutz em julho de 2016. Era um sagui da região de Ribeirão Preto. Em agosto veio a segunda confirmação, num bugio achado em São José do Rio Preto.”

Como os saguis são resistentes ao vírus, aquele primeiro sagui de Ribeirão Preto não poderia ter morrido de febre amarela, apesar de o vírus ter sido detectado em seus tecidos.

“Isto só pode significar uma coisa: o animal entrou em contato com o vírus ao ser picado por um mosquito. Mas acabou morrendo por outras causas,” explica Cunha.

“Nossa dúvida é saber se, apesar de resistentes, os saguis não poderiam estar servindo como reservatórios naturais do vírus, que passam à frente quando picados pelos mosquitos Haemagogus e Sabethes, que por sua vez irão sugar o sangue de outras espécies de macacos e do homem, infectando-os.”

Entre o material coletado dos 430 macacos e que foi analisado por Cunha e colegas, como Antonio Charlys da Costa, pesquisador do IMT-USP e o segundo autor do artigo, o vírus da febre amarela foi confirmado em 67 animais, sendo 30 bugios, nove macacos-prego, sete saguis e 21 animais de gênero não identificado.

“Isto acontece porque, nestes 21 casos, o material coletado não trazia a identificação do gênero do macaco. A suspeita, entretanto, é que quase todos eram bugios, devido à elevada concentração do vírus que foi detectada nos tecidos analisados,” explica Cunha.

Uma linhagem de 40 anos

A tarefa dos pesquisadores consistiu em isolar o vírus em cada uma das 67 amostras confirmadas, de modo a sequenciar seus genomas e compará-los com os genomas (disponíveis na internet) dos vírus de surtos pregressos de febre amarela, ocorridos entre 1980 e 2015, no Brasil e países vizinhos.

Assim, foi possível retraçar a origem da linhagem do vírus de febre amarela responsável pela epidemia atual. Os resultados apontaram para a Venezuela e os estados de Roraima e Pará, o que está de acordo com estudos prévios sugerindo que a epidemia de 2016/2017 se disseminou a partir da região Norte, espalhando-se através de um longo ciclo silvestre contínuo de mosquitos e macacos até chegar na região Sudeste.

Bugio morto a tiros em Manhuaçu, Minas Gerais. Confundidos como causadores da febre amarela, muitos primatas são assassinados durante surto de febre amarela. Foto: Portal Caparaó/Facebook.

Os resultados do estudo ajudaram a desvendar uma trajetória evolutiva do vírus de largas proporções tanto temporais quanto espaciais. Em 1980, o vírus da febre amarela era endêmico no Pará. De lá, o vírus começou a se espalhar para outras regiões centrais do país. Em 2000, o vírus atingiu os estados de Mato Grosso do Sul, Goiás e Minas Gerais, e continuou a se espalhar. Em 2004, o vírus havia chegado à Venezuela, e em 2009 na ilha caribenha de Trinidad e Tobago. Em 2010, estava presente em Roraima, no extremo norte do país, e uma cepa foi encontrada no Rio Grande do Sul, no extremo sul. O vírus chegou a São Paulo em 2013.

As análises moleculares de Cunha e colegas mostraram que, em 2017, o vírus da febre amarela se encontrava totalmente disseminado na maioria dos estados brasileiros e também no Suriname.

No momento, estão sendo realizados por outros pesquisadores do Adolfo Lutz estudos semelhantes relativos aos macacos mortos coletados pela vigilância epidemiológica do estado de São Paulo durante a segunda onda da epidemia de febre amarela (julho de 2017 a junho de 2018), e durante a terceira onda, iniciada em julho de 2018, e que terminará com o fim do período das chuvas e a chegada do inverno, quando praticamente cessa a reprodução dos mosquitos.

Depende necessariamente do resultado destes próximos estudos poder determinar se a atual epidemia no estado de São Paulo está chegando ao fim, ou se, apesar da cobertura vacinal maciça da população, o vírus continua se alastrando entre as populações de macacos, o que pode resultar em novos surtos epidêmicos.

“Será que a epidemia de febre amarela está perto do fim ou ainda vai continuar? Esta é a pergunta que todo o mundo quer responder. Ainda não há dados suficientes para concluir nem uma coisa nem outra,” avalia Mariana Sequetin Cunha.

 

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  • Peter Moon

    Peter Moon é um repórter científico, historiador da ciência e pesquisador da história natural da América do Sul

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Comentários 2

  1. Fernando Pires diz:

    Como é que o virus "avança"?