Reportagens

Um longo caminho pela frente

Pará inicia processo para erradicar a praga que está na raiz do desmatamento e da violência na Amazônia: o caos fundiário. Serão pelo menos três décadas de trabalho.

Manoel Francisco Brito ·
13 de junho de 2008 · 16 anos atrás

Se tudo correr direitinho, é coisa para levar três décadas. Só o levantamento inicial, destinado a constituir um banco de dados confiável em cima do qual as autoridades possam trabalhar, deve demorar, na melhor das hipóteses, quatro anos. Prazos assim tão dilatados são mais do que compreensíveis. Afinal de contas, a empreitada destina-se a curar uma velha epidemia que aportou no país com a colonização portuguesa e chegou à Amazônia há menos de 50 anos: a ocupação irregular de terras públicas.

Só no Pará, um dos estados da região Norte onde essa praga bateu mais cedo, ela deixou 20 milhões de hectares desmatados, dos quais um terço é puro passivo ambiental reconhecido por lei – áreas de preservação permanente e reservas legais peladas ou degradadas – e um rastro de violência e conflitos sociais. E é justamente lá que vai se aplicar um antídoto há muito conhecido, o reordenamento fundiário, mas raramente aplicado pelos governos.

O processo se institucionalizou no início desse ano, quando o governo paraense enviou ao Legislativo estadual projeto de lei estabelecendo as condições para a regularização fundiária em terras que pertencem ao estado. “Ele determina os critérios para a titulação definitiva”, diz Valmir Ortega, secretário de Meio Ambiente do Pará. “Serão levados em conta o tamanho da propriedade, sua finalidade, capacidade de produção e o registro no cadastro ambiental rural”.

Essa última demanda, na verdade, é a grande novidade do programa no Pará. É a primeira vez que a necessidade do cadastramento, e a conseqüente regularização do passivo ambiental, se transforma em pré-condição para a titulação de uma posse. O Paraná tem um programa semelhante, mas a regularização ambiental não está ligada à obtenção do título definitivo e sim a possibilidade de passar a propriedade adiante como herança.

Partida

A decisão do governo do Pará de começar a encarar o problema fundiário em seu território se consolidou ao longo de 2007, quando o Instituto de Terras do Pará (Iterpa), resolveu atuar em 27 áreas de conflito no estado dando prioridade à organização e a titulação de posses. Descobriu duas coisas que a rigor todo mundo já sabia. “A ação reduziu o índice de violência nessas áreas”, diz José Benatti, presidente do Iterpa. De quebra, ela ajudou também a conter o ímpeto da devastação ambiental.

A certeza de Ortega e Benatti quanto à aprovação do projeto é grande. Ana Julia, a governadora, detém maioria tranqüila na Assembléia. “E o texto simplesmente detalha o que já está na constituição estadual”, garante Ortega. Além disso, ele aposta que as lideranças políticas e empresariais do estado percebem a importância de reduzir o que ele chama de custo Pará. Ortega aponta sobretudo para a questão da imagem do estado, onde a bagunça da ocupação para a percepção de que ele é uma zona sem lei, que tem sérias conseqüências como o desmatamento e a violência.

Diante da expectativa de aprovação do projeto, o Iterpa deu início a levantamentos preliminares sobre a situação fundiária em 8 municípios no Sudeste e Sul do Pará. O órgão tem 10 equipes fazendo a varredura fundiária nessas regiões. Segundo Benatti, essa primeira fase é, na teoria, muito simples. “Estamos indo em cada posse e marcando sua localização com GPS na porteira ou no local de ocupação”, conta ele. Mas estando o Pará no Brasil, as coisas não são assim tão preto no branco. “A demanda de descrição física do terreno sob posse é coisa recente, que não existia até algumas décadas atrás”.

Benatti dá exemplos. “Você esbarra em ocupações que estão registradas no Incra ou no Iterpa sem muitos detalhes. Não é raro você bater num papel que diz que a posse está na margem esquerda do rio Capim, e é só. Ou seja, o cara pode estar em qualquer lugar dessa margem”, diz. Pior é quando o termo diz que a posse está à margem do rio Capim. “Aí pode ser em qualquer canto, a 10, 20 ou 30 quilômetros do rio”. Passada essa primeira fase, vem a segunda, que é a discussão sobre o processo de regularização.

Prioridade

O projeto de lei que está tramitando na Assembléia dá os parâmetros gerais de como isso vai acontecer. Além da exigência do cadastramento ambiental, o texto exige que a ocupação tenha pelo menos 10 anos e que ela tenha gerado uma atividade produtiva. A partir daí, entram no processo de regularização critérios específicos para cada tamanho de posse reclamada. Para áreas até 100 hectares, o projeto prevê a possibilidade de titulação definitiva sem ônus ou a concessão de uso não onerosa. Entre 100 e 500 hectares, há a possibilidade de alienação da terra pública ocupada através da venda sem licitação.

Ortega diz que esse será o corte prioritário para a ação do governo estadual, dando preferência à concessão ao invés da alienação por conta de uma dupla razão. “Os pequenos e médios posseiros respondem por 70% do total de posses irregulares”, diz Benatti. E a opção pela concessão tem o objetivo de evitar que, uma vez legalizadas, a maioria dessas posses caiam no mercado de terras estadual, favorecendo a concentração e especulação fundiária.

Os maiores posseiros, que reclamam áreas acima de 500 hectares, são responsáveis por 80% das terras com ocupação irregular. O projeto de lei diz que nessa categoria, quem tiver reclamação sobre até 1500 hectares e cumprir as demandas previstas, inclusive a regularização ambiental, poderá comprar diretamente do estado, com base em preço de mercado, a terra que ocupa. A partir daí e até 2500 hectares, a alienação será feita apenas através de licitação pública. Quem der mais, e claro, cumprir as obrigações legais, leva. Quem quiser reclamar mais de 2500 hectares pode tirar o cavalo da chuva.

A constituição estadual proíbe a alienação de terras públicas acima dessa extensão. “Ao fim do processo, quem estiver reclamando mais de 2500 hectares terá que, no mínimo, desocupar a área excedente e devolvê-la ao estado”, diz Ortega, explicando que o programa de reordenamento fundiário do Pará mistura sanções legais com estímulos para incentivar a adesão dos posseiros. “Repressão só não adianta, até porque a capacidade do Estado nessa área é reduzida”. Ortega acha que a adesão dos pequenos posseiros tem potencial para ser grande, porque com a instabilidade fundiária são eles que mais sofrem com o processo de grilagem de terras.

Valores

Benatti, antigo estudioso dos conflitos fundiários no estado acredita que de 10% a 15% dos posseiros não resistirão ao programa, porque a regularização definitiva melhora as suas chances para obter financiamento e vender sua produção. “A maioria vai ficar olhando para esses, para ver no que a coisa vai dar e testando a capacidade do governo de reclamar suas terras de volta”, diz, lembrando que a titulação em si já é um incentivo poderoso, porque ela faz o valor da terra saltar.

Hoje, segundo ele, um hectare de terra com título de propriedade no Pará, dependendo da região, custa entre 400 reais e 1200 reais. “Sem o título, esse valor cai para entre 200 reais e 300 reais”, conta. De todo o modo, Benatti estima que do total de posseiros no estado, uns 10% deverão resistir pesado ao programa de regularização, ou porque querem manter controle sobre mais de 2500 hectares ou porque estão de tal modo integrados à economia ilegal que não conseguem enxergar os benefícios da regularização.

Ortega diz que a obrigatoriedade do cadastro ambiental envolverá necessidade de custos extras para os posseiros que queiram se regularizar. Mas não está preocupado com a possibilidade de que isso se transforme num obstáculo. “O programa prevê que a regularização ambiental ocorrerá sem ônus para os pequenos posseiros. Para o resto, haverá assistência técnica, financiamento e a possibilidade de exploração econômica das reservas reconstituídas”, explica.

A tarefa que o governo do Pará se propõe é hercúlea, e não apenas porque ele pretende encarar um problema que afeta o país há 500 anos. O volume de terras envolvidas no processo é imenso. O estado tem 124 milhões de hectares de extensão. Mais da metade disso é terra que já tem destinação como Unidades de Conservação estaduais e federais, zonas militares e Terras Indígenas. Do resto, onde está definitivamente o problema da estabilidade jurídica fundiária, há as Áreas de Proteção Ambiental (APAs), cerca de 10 milhões de hectares, e terras devolutas do estado, em torno de 20 milhões de hectares, e da União, quase 30 milhões de hectares.

Participação federal

“A área a ser trabalhada envolve 49% do território”, diz Benatti, explicando que o levantamento inicial, caso houvesse mais equipes do Iterpa, poderia ser acelerado. No momento, há dez equipes trabalhando no estado. “Se ampliarmos esse número para 25, em no máximo 4 anos teremos finalizado o processo de mapeamento inicial e a conciliação de nosso banco de dados”, continua. “Eu acredito que se o comprometimento do governo estadual continuar no longo prazo, em 15 anos já se terá um mínimo de segurança jurídica. Em trinta anos, o processo deve estar concluído”.

Isso, fique desde já entendido, se o governo federal fizer parte do processo, já que ele é o grande latifundiário de terras juridicamente instáveis no Pará. “Nós estamos provocando o governo federal, no bom sentido, para se juntar a nós nessa empreitada”, conta Ortega. Em três municípios onde os levantamentos iniciais já foram feitos, o Iterpa trabalho em parceria com o Incra. Mas ele sabe que esse tipo de parceria não basta. É preciso mudar a mentalidade do órgão.

“Há muito tempo a agenda do Incra é 100% dedicada à reforma agrária e portanto à distribuição de terras. Regularização fundiária ainda é coisa distante do seu horizonte”, diz Ortega. No ministério do Meio Ambiente (MMA), o programa paraense é visto com expectativa otimista e o desejo de adesão ao que ele propõe é grande. Mas entre a vontade e a realidade, ainda existe um abismo. Se ele será transposto, só o futuro dirá.

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