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Termômetro vegetal

Durante “aula ao ar livre” no parque Ibirapuera, professor Paulo Saldiva mostrou como as plantas reagem à poluição do ar. A medição é simples e eficaz

Aline Ribeiro ·
23 de novembro de 2005 · 18 anos atrás
O médico patologista Paulo Saldiva, em aula ao ar livre no Parque Ibirapuera. Foto: Aline Ribeiro.

Basta observar com certo cuidado as características de uma árvore para conhecer um pouco da sua história. É isso mesmo. Por mais estranho que possa parecer, as plantas têm uma espécie de arquivo pessoal. Difícil de compreender? O médico patologista Paulo Saldiva, mais conhecido como professor Pepino entre seus colegas e alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), explica. “Por meio do tronco, é possível medir a poluição que a árvore recebeu ao longo dos anos. Dá para saber se os resíduos são de carros, da indústria ou de outras fontes de dispersão”, afirma. Durante um passeio pelo Parque Ibirapuera no início deste mês, o professor ensinou à equipe de reportagem do O Eco como identificar o grau de poluição ao redor, apenas observando a reação da vegetação.

Saldiva explica que não é um “abraçador de árvores”, mas que o interesse por elas veio do seu trabalho com os efeitos da poluição sobre a saúde dos seres humanos. Os estudos epidemiológicos, que usam técnicas estatísticas para determinar causas da morte em grandes números de pessoas, são bons para identificar os casos agudos, mas não os crônicos.

Os troncos das árvores têm memória, e mostram esses efeitos. Além disso, as doenças das árvores não são tão diferentes das nossas. Não é tão fácil ver os nossos pulmões por dentro, mas ao examinar as folhas dá para ter uma idéia do que está acontecendo. E sem os equipamentos caros de medição que no Brasil só São Paulo tem.

Quanto mais próximas as árvores estão das vias de tráfego, mais fácil é enxergar os efeitos da poluição sobre suas folhas e tronco. Durante a “aula ao ar livre”, Saldiva tomou como exemplo uma Sibipiruna localizada a cerca de 10 metros de uma avenida próxima ao Ibirapuera. A parte da árvore que está voltada para o parque apresenta grande quantidade de liquens, uma associação entre algas e fungos (foto acima). Do outro lado da mesma planta, na área virada para a avenida, a ausência desses seres vivos é nítida. “Os liquens só sobrevivem em locais menos poluídos, porque são muito sensíveis. É como se eles se escondessem”, diz o professor. Espécies como briófitas também preferem lugares mais limpinhos para morar (foto abaixo).

Foto: Aline Ribeiro.

Ao adentrar o parque, em local um pouco afastado da avenida, Saldiva escolheu um pé de Hibisco para mais uma lição. “Goiabeiras e hibiscos são mártires da ação oxidante”, brinca, ao contar que as duas espécies são muito suscetíveis aos efeitos da poluição. O professor utilizou uma folha da árvore para mostrar as conseqüências da exposição ao ozônio. “Podemos estabelecer uma nota para cada folha, de acordo com suas lesões. As descoloradas receberiam sete. As que apresentam necrose (morte de parte das células) ganhariam oito. Se a folha estiver morta, tem nota máxima”, classifica. A ocorrência de lesões foliares aumenta à medida que se vai para o interior do Ibirapuera, onde a concentração de ozônio é maior. Ao mesmo tempo, quanto mais longe das vias de tráfegos, mais liquens são avistados nos troncos das árvores.

E como saber se os prejuízos das folhas são mesmo causados pela concentração de gases poluidores e não por pragas, por exemplo? Saldiva tem a resposta na ponta da língua. “Pegue uma folha e a coloque contra a luz, para observar melhor onde estão as lesões. Se estiverem entre um canal vascular e outro, significa que foram provocadas pela poluição. Caso fossem causados por bichos, os machucados estariam nos próprios canais, que é onde eles se instalam para retirar alimentos”, explica. Assim como os troncos, o arquivo da folha permite que se saiba por quais elementos químicos esta vem sendo contaminada. “Apesar de ter memória mais curta, dá para saber. É só levá-la para um laboratório, passar um algodão em sua superfície e submeter o material à análise.”

Outros indícios

Árvore no Ibirapuera: testemunhas da poluição. Foto: Aline Ribeiro.

Assim como os troncos apresentam ou não liquens de acordo com o posicionamento diante das vias de tráfego, a quantidade de folhas dos galhos varia conforme o seu grau de exposição aos gases poluentes. Quanto mais perto das avenidas, menos folhas os galhos terão. “Grandes quantidades de poluição podem ocasionar até mesmo a morte das árvores”, lamenta Saldiva. A direção dos ventos é outro fator determinante para a disposição dos seres vivos na planta. “Onde o vento bate dificilmente tem briófitas, liquens e grande quantidade de folhas”, afirma.

As soluções simples e eficazes que o professor Pepino encontrou para medir os níveis de poluição do ar vêm sendo disseminadas em outras salas de aula. Em Cubatão, estudantes da rede pública estão aprendendo a técnica de biomonitoramento com a ajuda dos alunos de Saldiva. As idéias também foram aproveitadas em Santo André e São José dos Campos, cujas prefeituras instalaram floreiras em diversos pontos da cidade.

O professor lembra que o exercício de analisar a quantidade de material particulado por meio das plantas pode ser feito em qualquer grande centro. “Muitos acham que somente São Paulo tem altas taxas de poluição. Isso não é verdade. Outras cidades possuem índices elevados, mas não dispõem de aparelhos que quantifique isso. Quando não é possível descobrir por meio de medidores especializados, a vegetação é um ótimo instrumento”, ressalta. Ele lembra que algumas espécies, como eucaliptos e palmeiras, não servem como base para a realização de pesquisas, pois possuem cascas ácidas que impedem a sobrevivência dos liquens.

Os ensinamentos de Saldiva sobre como medir a poluição por meio da natureza refletem apenas parte de sua personalidade. Apaixonado pelas plantas e muito preocupado em preservar o meio ambiente, Pepino dá exemplos não somente enquanto trabalha, mas durante atos triviais. Andar de carro, por exemplo, só se houver muita necessidade. Sua bicicleta Caloi vermelha é mais que suficiente para os quilômetros que percorre diariamente entre sua casa, no bairro Itaim Bibi, até o trabalho, na avenida Doutor Arnaldo. “Sempre carrego uma troca de roupas na mochila para o caso de me molhar com a chuva.”

Especializado em Patologia, Saldiva pode ter herdado do pai pediatra a vocação para a medicina. Entrou no curso com apenas 16 anos e teve seu primeiro contato com a pesquisa sobre qualidade do ar nas aulas do húngaro Gyorgy Miklos Bohm, há cerca de 30 anos. Depois disso, nunca mais parou. Hoje luta para que São Paulo (cidade pela qual é apaixonado e que, inclusive, deu origem a seu nome) seja um lugar melhor para se viver. Se você quiser colaborar para isto, a dica está dada. É só olhar para o lado e ver o que a vegetação está dizendo.

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