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As Dimensões Humanas da atual crise climática

A vulnerabilidade, a oportunidade, a qualidade de vida, o acesso ao conhecimento, as múltiplas liberdades são variáveis importantes das Dimensões Humanas das Mudanças Climáticas

29 de setembro de 2021 · 2 anos atrás
  • DHN

    Grupo de Estudos e Pesquisa em Dimensões Humanas da Natureza

  • Ana C. Pont

    Bióloga, educadora socioambiental e estudante de Dimensões Humanas da Natureza.

  • Ana Pérola Drulla Brandão

    Médica-veterinária, epidemiologista, pesquisadora na Faculdade de Medicina da USP, consultora técnica do Ministério da Saúde ...

  • Claudia S. G. Martins

    Engenheira agrônoma e ecóloga. Pesquisadora nas temáticas desertificação em áreas rurais e vulnerabilidade aos conflitos humanos-fauna silvestre, no semiárido brasileiro.

  • Flávia de Campos Martins

    Bióloga, ecóloga e educadora, interessada nas Dimensões Humanas das relações com as aves do semiárido e com ecossistemas aquá...

  • Francine Schulz

    Bióloga, especialista em Perícia Auditoria e Gestão Ambiental, mestre em Engenharia Civil - Gestão de Resíduos.

  • Mônica Engel

    Bióloga e Geógrafa. Doutora em Dimensões Humanas do Manejo e Conservação dos Recursos Naturais, é Chefe de Pesquisa na Bath and Associates Consulting Firm (Canadá), e membro dos Grupos Translocação para Conservação, e Rewilding, da União Internacional para Conservação da Natureza (UICN).

  • Thais Moya

    Socióloga, feminista, educadora. Devir decolonial no corpo, subjetividade, relações e pesquisas. Pesquisadora das ações afirmativas no Brasil, e da educação das questões de gênero, étnico-raciais, sexualidade, classe e meio ambiente. Doutora em Sociologia (UFSCar) e Pós-doutora em Ciências Sociais (Unicamp). Professora Adjunta da Universidade de Pernambuco.

  • Wezddy Del Toro-Orozco

    Bióloga, Doutoranda na University of Georgia, Pesquisadora associada do Instituto Mamirauá, Bolsista da Wildlife Conservation Society (WCS), pesquisadora das dimensões humanas dos conflitos e coexistência com felinos na Amazônia.

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) – órgão científico que avalia as mudanças climáticas e discute suas implicações, potenciais riscos e possíveis mitigações – publicou no mês de agosto de 2021 seu relatório mais atual sobre a situação climática do planeta Terra: não há dúvidas que o mundo passa por um processo acelerado de mudança climática nunca visto antes, e este é comprovadamente fruto da atividade humana.

A atual emergência climática, como tem sido tratada por cientistas e até líderes políticos, é tema de um debate cada vez mais crescente e urgente. Durante a mais recente reunião das Nações Unidas, por exemplo, António Guterres (Secretário Geral da ONU) declarou que precisamos nos unir para evitarmos uma catástrofe ambiental (!). O chamado feito por Guterres chega poucos meses antes da próxima Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas (COP 26), onde serão discutidos os próximos passos para se atingir os objetivos estabelecidos pelo Acordo de Paris. Este é um alerta global que não pode mais ser negligenciado.  

Diferente dos ciclos naturais de mudanças de temperatura no planeta (períodos glaciais e interglaciais, por exemplo), agora, as alterações são em ciclos muito mais curtos, de poucas décadas, com mudanças de temperatura e aumento de eventos climáticos extremos como queimadas, secas e tempestades. Isso coloca em risco a biodiversidade, incluindo a sobrevivência da nossa própria espécie. Esses eventos, somados a outras evidências, apontam a sociedade moderna como agente responsável pela atual mudança climática do planeta. 

Bem-vindos ao Antropoceno! Esse novo período proposto, ou época geológica (ainda não há um consenso científico sobre a declaração dessa época, embora traga uma reflexão interessante), considera o ser humano como o agente modificador mais ativo dos sistemas naturais da Terra, capaz de deixar impressas as consequências de suas ações. Os efeitos de nossas ações ao longo da história são vistos, por exemplo, no aumento exponencial da liberação de gases de efeito estufa na atmosfera, no consumo de água e energia, nos processos de erosão e acidificação, nas transformações de paisagens naturais em grandes campos agrícolas, na perda de biodiversidade, e nas modificações significativas das temperaturas que se fazem visíveis principalmente depois de 1950.

Figura: Ana C. Pont.

 Mesmo diante dos fatos e dados exaustivamente apresentados pela ciência, muitas pessoas ainda negam a existência das mudanças climáticas, o que tem custado muitas vidas humanas e não-humanas. É importante ressaltar, no entanto, que não se tratam apenas de negações a nível individual, ou pessoal. O negacionismo é fruto de  um movimento político de viés reacionário que articula instituições midiáticas, religiosas e até educacionais, dentre outras, com intuito de fomentar dúvidas acerca das intenções da ciência. Porém, é fato que se quisermos que as próximas gerações tenham acesso à água limpa, ar de qualidade, alimentos saudáveis e que possam contemplar as belezas naturais de hoje, as ações para diminuir e equalizar as emissões de gases do efeito estufa devem ser imediatas e globais.

Não podemos falar sobre mudanças climáticas, no entanto, sem falar das Dimensões Humanas relacionadas a este tema. Embora 92% dos brasileiros considerem real a existência das mudanças climáticas, e 77% atribuam as mesmas a causas humanas, seguimos com modelos de produção e consumo como se as mudanças climáticas fossem um evento distante de nós. Algumas pessoas se dizem conscientes e preocupadas com a questão, mas seguem praticando comportamentos prejudiciais ao meio ambiente. Outras adotam comportamentos ditos ‘ecologicamente corretos’, porém não abrem mão do conforto de alguns comportamentos que acabam sendo ainda mais impactantes. Ainda há aquelas que tratam esta realidade como se fosse um pequeno fato, algo que só é real quando lhe chamam atenção, e que depois de um tempo já se é esquecido. 

Hoje já somos quase 8 bilhões de pessoas no planeta, com um consumo cada vez maior de recursos naturais, alimentos, transporte, roupas, bens e serviços. É nítido que nossas escolhas e comportamentos impactam o ambiente, tanto de forma positiva quanto negativa. Chamar a atenção para as ações individuais é muito importante do ponto de vista pedagógico e normativo, pois trabalha valores que podem reforçar a percepção individual do impacto de cada um sobre determinadas coisas, lugares e pessoas, além de contribuir no processo de conscientização de quem observa. Se optarmos por deixar o carro em casa e usarmos o transporte público ou bicicleta, por exemplo, esta escolha individual possivelmente irá refletir de forma local. Não somente pela diminuição da poluição atmosférica local com menos carros nas ruas, mas também servindo de exemplo para outros, o que pode gerar engajamento de pessoas que talvez nunca haviam pensado em mudar suas atitudes. Esta e outras pequenas ações como tomar banhos curtos, reciclar e consumir menos produtos industrializados e importados são atitudes e comportamentos que refletem um propósito maior de responsabilidade, que é despertar o olhar para onde realmente as mudanças devem ocorrer.

Vejam que estas atitudes podem ser arbitrárias ou possíveis conforme o contexto socioeconômico e institucional em que nos inserimos. Por exemplo, um trabalhador mal remunerado que anda de bicicleta debaixo do sol escaldante não tem as mesmas opções que o seu patrão tem acesso – o primeiro usa bicicleta por ser mais rápido do que caminhar e mais barato do que transporte próprio ou coletivo, o segundo opta por “pedalar” porque tem uma ducha agradável aguardando-o no escritório, o que satisfaz (alivia) sua consciência cívica por escolher um transporte não poluente. 

A vulnerabilidade, a oportunidade, a qualidade de vida, o acesso ao conhecimento, as múltiplas liberdades são variáveis importantes das Dimensões Humanas das Mudanças Climáticas. Amartya Sen (1990) – co-inventor do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – escreveu que tais variáveis, associadas ao desenvolvimento humano, determinam nossas relações com os recursos naturais e correspondentes impactos. Tão importantes são esses pontos que o Índice de Vulnerabilidade das Mudanças Climáticas mostra o quão desproporcionais são os impactos sociais e ambientais em diferentes regiões no globo. 

Ao olharmos na direção da justiça ambiental e climática reconhecemos que as mudanças climáticas atingem, com diferentes intensidades, os diferentes grupos da sociedade. Reconhecer essas diferenças no que tange à vulnerabilidade e à mitigação é o primeiro passo na busca de políticas públicas que visem o bem estar de todos, para então, disputar valores e ações institucionais que promovam melhor distribuição de renda, acesso à moradia segura, saneamento básico e educação. Trata-se, portanto, de um processo de transformação social que deve andar de mãos dadas com tecnologias competentes na diminuição do aquecimento acelerado das temperaturas.

As indústrias, o setor de mineração e o agronegócio consomem água e luz em escalas muito maiores que os cidadãos individualmente, mas rotineiramente a mídia pede incoerente e convenientemente para a população desligar suas lâmpadas. Já está mais do que na hora de percebermos que não adianta só plantar árvores em borda de rio perene que já secou. Ou seja, os diferentes setores da indústria devem rever suas formas de produção, buscando processos que realmente diminuam o impacto negativo nos índices de emissões atmosféricas, ao invés de somente realizar campanhas de preservação para mascararem seu descaso, terceirizando assim a responsabilidade da remediação do dano causado ao ambiente.

A educação para enxergar estes vieses é importante. Uma sociedade que valoriza o ambiente por seu valor intrínseco, e com consciência em relação às mudanças climáticas irá (muito provavelmente) perceber e saber reconhecer produtos e serviços que apresentem um real engajamento e um menor impacto ambiental. Mas nossas atitudes e comportamentos podem ir além do consumo consciente: podemos manifestar nossos valores dentro da esfera política, participando de conselhos municipais de tomada de decisão, coletivos e associações populares, assim como votar em pessoas que tenham em sua agenda o compromisso com a diminuição do aquecimento do planeta e, principalmente, acompanhar criticamente o mandato dos eleitos.

Figura: Ana C. Pont.

Além de barreiras estruturais e financeiras, existem diversas barreiras psicológicas que impedem as pessoas de agirem com responsabilidade ambiental, variando entre os indivíduos de acordo com seus valores, visão de mundo, percepção e normas sociais. Entender os obstáculos que impedem o comportamento pró ambiental e fortalecer atitudes positivas é um grande desafio, e também a chave para uma sociedade comprometida com o bem coletivo. 

Após estudar as barreiras psicológicas que impedem as pessoas de aceitarem o fato de que estamos diante de uma crise climática e de adotarem comportamentos mais responsáveis ambientalmente, o psicólogo Per Espen (2015) propõe cinco estratégias de comunicação sobre o clima, a fim de aproximar as pessoas do tema e das práticas ao invés de afastá-las. Abaixo listamos estas estratégias e formas de aplicá-las:

  • Estratégia Social: Aproximar o assunto das mudanças climáticas à realidade das pessoas através de redes sociais existentes. Por exemplo, identificar grupos (movimentos de jovens, clubes, condomínios) e pessoas influentes e confiáveis da comunidade para trabalhar essas questões, esclarecer dúvidas e discutir soluções viáveis. A pressão social (as normas sociais) é uma forma de aumentar o engajamento, afinal de contas, temos a tendência de fazer o que fazem à nossa volta.
  • Estratégia de Concepção Solidária: Ao falar sobre o clima devemos salientar a ligação que ele tem com o ambiente e com a saúde humana e animal, mostrando que ao adotar atitudes positivas e encarar a crise como uma realidade, fazemos um investimento para o futuro. Ao invés de enfatizar a devastadora consequência das mudanças climáticas, o foco deveria ser de como a saúde, segurança e bem estar das famílias pode melhorar se medidas forem tomadas. Para cada ameaça, três soluções com efeitos positivos.
  • Estratégia da Simplicidade: Oferecer ações simples. Diminuir barreiras estruturais e tornar simples o engajamento da comunidade. Transformar o “sustentável” no padrão comum.
  • Estratégia da Comunicação: Evitar narrativas apocalípticas, usando histórias de sucesso que apresentaram resultados positivos na busca pela justiça climática, resiliência e melhoras na condição de vida de todos os seres.
  • Estratégia de Indicadores: Ao invés de focar em dados globais de emissões de gases de efeito estufa, apresentar indicadores de melhor compreensão mostrando que mudanças positivas estão ocorrendo; índices que sejam fáceis de cada um perceber, que sejam próximos à realidade local, ao invés de usar dados científicos complexos.

Temos que repensar nossas atitudes, reforçar a aprendizagem social, adotar práticas educativas cada vez mais transdisciplinares, reivindicar políticas públicas que acatem os compromissos com um futuro climático otimista, de baixas emissões. Pensar que tipo de planeta queremos hoje e no futuro está sob a responsabilidade, principalmente, do poder público que deve criar as condições necessárias para que a responsabilidade possa também ser de todos nós. A justiça ambiental e climática só será atingida com gestão pública internacionalmente integrada, democrática, crítica ao modo de produção e consumo, transparente e responsável. Justiça se faz com alicerces sólidos, sem privilégios, com clareza de deveres e direitos, no tribunal da vida e do clima.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

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