Análises

Teimosia e volta por cima, aprende-se com as embaúbas

Da varanda, vi a obra de um condomínio destruir sem piedade meu fragmento de Mata Atlântica. Mas deixa estar, a mata há de voltar

Lara Norberto Renzeti ·
18 de outubro de 2019 · 4 anos atrás
As embaúbas nunca desistem. Foto: Gisela Person

Na altura da minha varanda, no quarto andar do prédio, está o topo de uma embaúba. As raízes da árvore, emaranhadas entre a terra e as pedras, encontram um pedaço azul de lona, lixo esquecido ali há alguns anos. Para além das embaúbas, que se ajeitam em grupo nos limites do terreno vizinho, há uma estrada de tijolos cinza e vermelhos, que passa por entre as casas e vai até o portão. As casas estão ocas, inacabadas, mas não lhes falta vida, já que plantas se ancoram em seus muros e crescem sem pretensões decorativas no que poderiam ter sido tanto jardins quanto garagens.

Atrás das ruínas, há restos de floresta.

Nem sempre foi assim. Quando vim morar neste prédio, em 2006, o terreno dos fundos era mato. Remanescente do sítio de alguma família dos primórdios de Jacarepaguá, um tímido pedacinho de Mata Atlântica preenchia quase todo o espaço, com exceção do antigo casarão em ruínas. Foi, na verdade, este o motivo pelo qual me mudei: meus pais queriam um apartamento mais tranquilo, de onde se pudesse ver um pouco de natureza. Onde hoje há uma embaúba, naquela época havia uma árvore de folhas e frutos pequenos, que de verão a verão abrigava os mais diversos passarinhos.

O que mais chamava a minha atenção eram os saís-azuis. Eles sempre apareciam na árvore, para fazer um banquete de frutinhos. O macho era azul e preto e a fêmea era verde. Aquelas cores vivas me fascinavam, e eu, com oito anos de idade, ficava feliz por saber que seres tão belos moravam perto, por causa da árvore. Ela crescia e frutificava, e eu contava com ela para me mostrar os pássaros.

“quando menos esperávamos, ouvimos vozes humanas vindas de lá. Vários homens conversavam, apontavam para as coisas, e iam adentrando o pequeno fragmento de floresta”

A vista da varanda era o maior orgulho de nosso apartamento. Por anos, todos os convidados que visitaram minha casa atravessaram meu quarto para conhecer o terreno dos fundos, olhar suas cores, escutar seus sons. Mas, quando menos esperávamos, ouvimos vozes humanas vindas de lá. Vários homens conversavam, apontavam para as coisas e iam adentrando o pequeno fragmento de floresta. Eles continuaram por alguns dias conversando e apontando para as coisas, até que penduraram uma placa com logomarca de imobiliária no portão. A floresta ia virar condomínio.

Na época, não entendia bem como as coisas funcionavam, mas me lembro dos meus pais e dos vizinhos de prédio comentando que a obra era irregular. Que a empresa dava golpes nos compradores. Que não podiam cortar árvores. Que íamos embargar a obra. Mas, já havia marcações em vermelho em algumas árvores. O que era aquilo? Sentença de morte? Todo dia eu procurava aquela tinta, vermelha como sangue, no tronco da minha estimada árvore especial, que resistia como se não fosse vista, no cantinho do terreno. Em pouco tempo, o som de motosserra se misturou com o canto das cigarras. De vez em quando eu sentia a falta de alguma coisa na paisagem: a pequena floresta ia ficando cada vez mais esburacada.

Tudo isso foi muito aos poucos. Não percebi quando começaram a construir. Sei que aterraram a antiga piscina, foram derrubando árvore atrás de árvore, até que surgiu espaço suficiente para mais de dez casas, e eu parei de olhar. Parei de ir à minha própria varanda porque tudo que eu via era aridez e destruição. Eu tinha medo de um dia encontrar a minha árvore cortada, caída no chão, morta. Ela resistiu bravamente. Foi a última. Nunca foi diretamente assassinada, mas se cansou e foi morrendo aos poucos, lentamente, consumida por um solo capinado e sem vida. Nunca descobri seu nome. Nunca mais vi saí-azul.

Ao longo do tempo, a obra foi embargada e retomada. Pelo visto, os avisos dos meus vizinhos eram bem fundamentados: a imobiliária nunca entregou as casas prontas. A floresta foi destruída em vão.

Imóveis inacabados podem ter três principais destinos. O primeiro deles é o esquecimento – quando ao longo do tempo e da desvalorização econômica, a natureza toma conta, transformando-os em substrato e abrigo de seres não-humanos. O segundo é o descobrimento, caracterizado pelo abandono inicial e posteriores ocupações, resultantes de uma sociedade que não garante abrigo a todos os humanos. O terceiro é o acabamento, que precisa que as obras continuem.

Os compradores das casas, que sofreram o golpe da imobiliária, provavelmente sabiam dessas possibilidades. Pensando em manter um pouco do que se tornou deles por contrato, não abandonaram o terreno por completo e resolveram por conta própria tocar a obra. De vez em quando, aparecem trabalhadores: pintam uma parede, instalam luz elétrica, terminam um telhado. Por vezes, os próprios donos aparecem para cortar a grama. Isso acontece há uns dez anos, e as casas continuam inacabadas.

“há desvantagens em ser o grande restaurante florestal. Embaúbas sofrem com o consumo de suas folhas, mas subornam com alimento e proteção formigas do gênero Azteca para torná-las suas fiéis escudeiras”

No fundo, queria que essa obra nunca terminasse, presenciar o esquecimento, porque sei que a natureza nunca esquece. Num olhar de relance, o muro das casas estava coberto de plantas trepadeiras. Arrisquei voltar à varanda. Agora que a minha árvore já estava morta mesmo, já não tinha muito a perder, certo?

Errado.

Como se cortinas se abrissem para o segundo ato do terreno, percebi que havia muito mais nele do que aquela única árvore que por tanto tempo amei. Mais uma vez, surgiu vida que era possível ser avistada da varanda e da janela.

Ainda há ao fundo árvores grandes, que estavam lá desde o começo. Outras mais jovens, vi crescer, como um coqueiro que se posiciona estrategicamente na “garagem” de uma das casas de cimento. Resistem insetos, lagartos, aves – e certamente uma variedade de animais bem escondidos. Das manhãs e tardes de admiração e das noites de atenção ao não-silêncio, aprendi os nomes de alguns desses vizinhos.

Todos os dias, em especial no fim da tarde, as andorinhas se exibem ao voar em círculos. Assisto às suas coreografias como se fosse um filme que passa na janela do meu quarto. Algumas vezes, na calmaria aparente da noite, sem luzes, ouço bacuraus e corujas.

Vejo sanhaços, bem-te-vis, sabiás, tucanos, papagaios, urubus, gaviões, gralhas-do-campo e uma porção de aves cujo nome ainda não sei.

Aliás, certa ocasião, um bem-te-vi expulsou uma gralha. Ele voou para cima dela e bicou suas penas até que ela fosse para bem longe de uma árvore. Acabei rindo da falta de sorte da gralha, que é bem maior do que o bem-te-vi, mas e perdeu. Já vi três bem-te-vis fazendo o mesmo com um tucano de bico amarelo, que também é muito maior do que eles.

“A persistência desses pontos verdes no meio da selva de concreto é um grito de guerra. É a memória do que se perdeu e a esperança de que nem tudo está perdido.”

E assisto tudo da minha janela.

Apesar da admiração por seres carismáticos e voadores, o que mais me fascina nesse espetáculo vivo são as embaúbas. Essas árvores de troncos finos e folhas largas e quase não são raras. Ao contrário, árvores do gênero Cecropia, que engloba todas as embaúbas, estão entre as mais abundantes espécies das florestas dos neotrópicos. Podem ser encontradas nas encostas da Grajaú-Jacarepaguá, no meio da Floresta da Tijuca ou do Parque Estadual da Pedra Branca. Se você estiver em um avião, sobrevoando algum fragmento de Mata Atlântica, vai vê-las facilmente lá do alto, porque elas são os pequenos pontos prateados que se destacam dos tons de verde da floresta. 

Embaúbas não são muito exigentes. Quando há um distúrbio na floresta, quando o vento ou as pessoas derrubam árvores, formando clareiras, as sementes de Cecropia, que estavam no solo em dormência, germinam com a luz do sol. Nesses ambientes abertos, degradados, inóspitos, as embaúbas se instalam e crescem avidamente. Até parece que têm pressa. Logo ficam altas, suas folhas se desenvolvem, mas duram pouco e morrem rápido, caindo enrugadas e marrons no chão, decompondo-se e devolvendo nutrientes para a terra. Despertadas pelos vazios de vida na paisagem, embaúbas são espécies pioneiras que aos poucos alteram seus arredores e facilitam a novas espécies vegetais prosperarem em seu entorno. 

Não satisfeitas, elas ainda são atraentes para animais. Suas flores, apesar de polinizadas pelo vento, também podem ser polinizadas por insetos como besouros. Suas infrutescências alongadas servem como fonte de alimento para uma diversidade de frugívoros, como aves, gambás, macacos e até peixes, que se alimentam dos frutos que caem em rios. Depois que comem os frutos e se deslocam para longe, esses animais dispersam as sementes de embaúba. E assim elas chegam a quase todos os lugares. Preguiças e bugios também são grandes apreciadores de suas folhas, passam horas abraçados a seus galhos, comendo e descansando, enquanto tomam sol. 

Claro, também há desvantagens em ser o grande restaurante florestal. Embaúbas sofrem com o consumo de suas folhas, mas subornam com alimento e proteção formigas do gênero Azteca para torná-las suas fiéis escudeiras. Essas formigas agressivas vivem em colônias dentro do tronco oco da embaúba. Para defender sua casa, atacam os herbívoros que vêm para comer as folhas. 

Embaúbas são acervos de interações e símbolos de resistência da natureza.

É por isso que elas tomaram o terreno vizinho. Elas estão lá contando uma história. Mais do que a história de um terreno específico e especial para poucas pessoas atentas, essa é a história de muitos dos remanescentes florestais em centros urbanos. 

Em uma cidade como o Rio de Janeiro, onde novos prédios sobem às custas da retirada das árvores, há um valor inestimável nos seres que insistem em existir. A persistência desses pontos verdes no meio da selva de concreto é um grito de guerra. É a memória do que se perdeu e a esperança de que nem tudo está perdido. Ainda há vida para preservar e proteger, para ver renascer dos escombros.

Hoje, existem ações de reflorestamento acontecendo em áreas urbanas, como o projeto Revive Jacarepaguá, na minha vizinhança, cujo objetivo é repovoar as margens do rio Anil com espécies vegetais nativas da Mata Atlântica. Iniciativas como essa podem estar em seus primórdios, mas são um exemplo de que é possível escrever uma história melhor para a natureza em escala local.

Humanos têm a capacidade de entender o que significam os retalhos de verde no cotidiano urbano. Apesar do nosso potencial arrebatador de destruição, também somos a voz da nossa própria consciência e podemos frear os nossos erros. 

Tudo começa quando prestamos atenção na vida que ainda se exibe aos nossos olhos. Quando queremos ser as embaúbas na frente da minha varanda, teimosas, que insistem em fincar raízes e crescer na terra marcada por uma história de devastação.

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  • Lara Norberto Renzeti

    Graduanda em biologia (UFRJ), conservacionista e apreciadora dos seres que enchem o planeta de vida.

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Comentários 7

  1. Ana Cláudia Ferreira Pinto diz:

    Puxa Lara,seu texto prende a gente..seu modo de escrever ,indo ao passado com tantos detalhes ricos em sua descrição desses fatos que são tristes e infelizmente reais..


  2. Gustavo Gomes diz:

    Que belo texto! Uma alma linda, a que escreveu, amante da natureza e das coisas sensíveis.


  3. Wagner da cunha dos santos diz:

    🌱🙏 parabéns,,,, faço reflorestamento voluntário,, aqui em Valparaíso sp , ,( é uma luta diária,,, tem um criador de gado qui solta u gado eles entram na área ,, arrebentando tudo ,,, ( i u dono não tem consciência,,,!


  4. Luisa Marins diz:

    Excelente texto, parabéns Lara!


  5. Realista diz:

    Provavelmente onde é o prédio da nobre autora também tinga aroeira…


  6. Marcio diz:

    Lara, você conseguiu me transportar para sua varanda. Parabéns pelo texto!


  7. Fernando Fernandez diz:

    Segunda coluna, ainda como estudante de graduação, e segunda excelente coluna, com muito a dizer. Seja bem vinda Lara!