Análises

O MT Ilegal

Fiscal explica porque o perdão do governo de Mato Grosso a fazendeiros que cometeram crimes fundiários e ambientais é ilegal. Nas mãos do estado, permissões para desmate cresceram 434%.

Adamastor Martins de Oliveira ·
29 de agosto de 2008 · 16 anos atrás

A questão da regularização fundiária em Mato Grosso é grave, o que agrava também a questão da regularização ambiental das propriedades rurais no estado que, em sua grande maioria, foram regularizadas em processos fraudulentos em que colonizadoras e grandes produtores agropecuaristas obtiveram os seus títulos no estado de Mato Grosso, através de projetos de colonização, formados contando com listas de nomes de famílias aliciadas, contratadas e recrutadas como laranjas, no centro sul e sudeste do país (principalmente nos estados do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e São Paulo) e em seguida, com procurações de plenos poderes desses laranjas, o “colonizador” transfere as porções todas, ficando como único proprietário de toda a colônia (milhares de hectares), devolvendo em seguida, todos esses colonos laranjas, para os estados de origem, pois a vinda deles era apenas para possibilitar a assinatura dos documentos em cartório.

Além desse mecanismo, ainda existem as invasões em terras de especial preservação como as unidades de conservação, terras indígenas e outras. Algumas vezes apenas para o furto de produtos florestais, principalmente a madeira, e outras vezes para grilagem mesmo, aproveitando o produto florestal obtido para capitalização e formação das fazendas que após, terão sua situação fundiária regularizada.

São muitas as fraudes na questão fundiária no estado de Mato Grosso e os criminosos ganham muitas vezes, pois iniciam ganhando com a venda do produto florestal, depois ganham com a exploração da terra desmatada, mais tarde ganham com a regularização fundiária que as valoriza e, mais tarde ainda, ganham com valorização da propriedade em função de toda infra-estrutura que o estado leva com dinheiro do contribuinte.

E agora passa a ganhar também com o perdão governamental ilegal que tentam emplacar através da lei estadual n. 8.961/2008 de 18/08/28 e da Lei Complementar N° 327, de 22/08/08 – Programa MT LEGAL que criam o Programa Mato-grossense de Legalização Ambiental Rural – MT LEGAL.

Aspectos desses esquemas fraudulentos têm sido continuamente desvendados e implicam em uma extensa rede de relações com alto grau de complexidade, sempre contando com o apoio governamental, da classe política capitaneada pelos grandes proprietários rurais, que acabam se traduzindo em conseqüências desastrosas para a manutenção da Floresta Amazônica em nosso estado.

E ainda o que deve ser motivo de grande preocupação é o que temos observado, ao longo desses mais de 30 anos de implementação de Planos de Manejo Sustentável na Amazônia, que, esse Planos, têm servido apenas para dar início ao desmatamento à corte raso, pois, se fizermos um inventário de todos os planos de manejo aprovados até aqui, nesses 30 anos, veremos que a imensa maioria, hoje, são áreas totalmente desflorestadas. E se continuarmos essa política de aprovações sem critérios, a prática só tende a aumentar.

E os números do desmatamento não refletem bem o que ocorre em Mato Grosso, pois os criminosos já aprenderam que para não serem detectados pelos sistemas de monitoramento e sensoriamento têm feito apenas a exploração seletiva, destruindo a floresta, por baixo, sem deixar vestígios detectáveis pelos sistemas.

Atualmente no estado de Mato Grosso, licenças são concedidas para exploração dos mais diversos recursos naturais do meio ambiente mato-grossense ao total arrepio dos princípios da precaução e da prevenção, quando não da Lei, principalmente, na construção de usinas hidrelétricas e na significativa expansão da extração de madeira, por meio de autorizações de exploração florestal de dubitável sustentabilidade, conforme demonstra o quadro abaixo:

Créditos florestais autorizados pelo IBAMA no MT entre jan/2003 e dez/2005 (3 anos): 2.619.649 m³

Média anual de créditos autorizados pelo IBAMA no MT: 873.216 m³

Número de operações de transporte autorizadas pelo IBAMA (média anual): 34.929

Créditos florestais autorizados pela SEMA/MT entre jan/2006 e maio/2008 (2,5 anos): 9.464.963 m³

Média anual de créditos autorizados pela SEMA/MT: 3.785.985 m³

Número de operações de transporte autorizadas pela SEMA-MT (média anual): 151.440

Incremento de autorização de créditos florestais pela SEMA/MT (média anual): 434 %

E em análises recentes, foram encontradas muitas e graves irregularidades em praticamente todos os planos de exploração analisados, o que depõe seriamente contra a legitimidade da do estado na condução desses processos.

A ação do desmatamento nesta situação, além da grave ameaça a diversidade de um dos biomas mais ricos do mundo, promovem drásticos desequilíbrios ambientais e climáticos. Não se trata neste caso, somente do interesse individual de quem promove o crime contrariando o interesse coletivo ou o direito constitucional ao meio ambiente equilibrado, mas sim um contexto maior que fere princípios universais.

E é nesse grave contexto que o Governo do estado editou a lei estadual n. 8.961/2008 de 18/08/28 – Programa MT LEGAL que cria o Programa Mato-grossense de Legalização Ambiental Rural – MT LEGAL, disciplina as etapas do Processo de Licenciamento Ambiental de Imóveis Rurais e dá outras providências.

Trata-se de lei totalmente inconstitucional, pois é totalmente incompatível com a legislação federal que trata do tema, mormente a Lei de Crimes Ambientais (9.605/98) e o Código Florestal Brasileiro (4.771/65), e é exemplo claro de legislação em benefício próprio, pois muitos dos que a conceberam, aprovaram a estão assinando serão beneficiários diretos de seus efeitos, já que são proprietários de grandes áreas já totalmente degradadas e quase sem área de reserva legal e com áreas de preservação permanente totalmente destruídas quando não totalmente aterradas para dar lugar ao plantio das grandes monoculturas. Com essa famigerada lei, essas áreas serão regularizadas apenas com aquisição de áreas cujo valor atual é muito menor, levando a pressão imobiliária ainda mais para o interior da Amazônia mato-grossense.

Explicando melhor: na realidade, essa lei irá privilegiar os grandes produtores de grãos e agro-pecuaristas do estado, àqueles mesmos que conseguiram a regularização fundiária em processos fraudulentos e que são proprietários de grandes áreas totalmente degradadas e sem reserva legal e que, por conta da compensação embutida na nova lei, poderão regularizar essas áreas valorizando-as muito mais ainda, pois seriam necessários grandes volumes de recurso para a recuperação dessas reservas legais, o que vem impedindo que essas terras alcancem valores de mercado iguais ou semelhantes aos valores das terras do sudeste e sul do país.

Agora, com essa casuística lei, bastará a adquirir à preço de banana, áreas de floresta amazônica mais ao norte do estado, ou recolher esse mesmo ínfimo valor aos cofres do estado para fazer a regularização, ou seja, isso irá aumentar em muito o valor das atuais áreas já degradadas que só não era maior por causa da necessidade de recuperação da Reserva Legal e Área de Preservação Permanente e ainda, de quebra, levará a pressão imobiliária ainda mais para o interior da Amazônia de Mato Grosso, elevando os valores dessas áreas e pressionando-as para o desmatamento. Mas isso pode ser também um tiro no pé, pois essas irregularidades podem se voltar contra os seus mentores caso a sociedade brasileira e internacional, em represália, resolva boicotar os produtos agropecuários do estado de Mato Grosso.

Ora, a Amazônia mato-grossense é patrimônio nacional e como tal deveria ser tratada, não deveria ser tida como patrimônio daqueles que com muito oportunismo vêm tratando-a como se patrimônio particular fosse. Os efeitos da preservação a floresta amazônica sobre o clima do país e do mundo já estão fartamente demonstrados e o estado de Mato Grosso não pode legislar como se o restante do país não pudesse participar das discussões sobre problemas para os quais todos serão afetados.

E em recentes estudos divulgados por especialistas reunidos em Libreville para uma conferência interministerial sobre a saúde e o meio ambiente na África a mudança climática pode provocar a morte de milhões de pessoas nos próximos 20 anos em razão de seus efeitos sobre a nutrição e as doenças. O estranho de tudo isso é que o governo do estado alega dificuldade no registro e licenciamento das áreas, mas essa mesma dificuldade no registro e licenciamento não existe quando se trata de automóvel, por exemplo. Imaginemos que se 90% dos que detém veículos no estado estivessem com seu registro e licenciamento irregular, o que faria o governo? Todos sabemos: intensificaria a fiscalização, colocaria mais agentes públicos nas ruas e começaria a autuar e apreender todos veículos irregulares. É simples.

Mas por que quando se trata do imóvel, algo que, como o próprio nome já diz é imóvel, portanto muito mais fácil de fiscalizar, a coisa é diferente? Os que são signatários dessa malfadada lei estadual n. 8.961/2008 de 18/08/28 – Programa MT LEGAL sabem muito bem a resposta, pois tratam-se, nesse caso, dos interesses do poder econômico daqueles que sempre detiveram o poder político no estado.

No caso dos automóveis, por exemplo, a grande maioria não tem força econômica e, portanto, não têm força política para responder aos abusos e quando eles ocorrem os seus pobres proprietários não têm outra saída a não ser recorrer ao poder judiciário para garantir os seus direitos, e é o que tentamos fazer neste ato com as pequenas forças que ainda nos resta.

A análise do conflito existente entre lei estadual n. 8.961/2008 de 18/08/28 – Programa MT LEGAL à luz do que dispõe o §4º do art. 24 da Constituição Federal e a lei federal dos crimes ambientais 9.605/98, repito, nos termos da Carta Magna, a competência para legislar sobre questões ambientais é concorrente, cabendo a União traçar as normas gerais e aos Estados dispor de forma suplementar, sendo que, toda vez que o Estado legislar em desacordo com a lei nacional, esta suspende a eficácia daquela no que lhe for contrário.

A nossa Constituição quando trata da competência legislativa, atribui competência concorrente destacando que a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais, sem prejuízo da competência suplementar dos Estados, conforme art. 24, e seus §§ da Constituição.

Desta forma, na legislação concorrente, ocorre prevalência da União no que tange a regulação do interesse nacional, estabelecendo normas gerais visando todo o território nacional, as quais, como é ululante, não podem ser contrariadas por normas estaduais ou municipais.

Entende-se, portanto, que na legislação concorrente ocorre prevalência da União no que concerne a regulação de aspectos de interesse nacional, com o estabelecimento de normas gerais endereçadas a todo o território nacional, as quais, como é óbvio, não podem ser contrariadas por normas estaduais ou municipais.

Assim, afirma-se que a competência legislativa em matéria ambiental estará sempre privilegiando a maior e mais efetiva preservação do meio ambiente, independente do ente político que a realize.

Não há mais espaço para o retrocesso na questão ambiental em Mato Grosso ou no mundo, ou avançamos ou nossos filhos ficarão sem lugar para viver. Não há mais tempo a perder, quando percebemos que já perdemos quase toda nossa Floresta Amazônica em Mato Grosso por conta de políticas e políticos gananciosos que teimam e tratar a questão ambiental em Mato Grosso como uma questão meramente local.

Não há que se fazer comparações teratológicas como a que fez o atual Secretário da Casa Civil de Mato Grosso que comparou o MT LEGAL à atual campanha contra o desarmamento do Governo Federal. Essas comparações, além de estapafúrdias, tentam confundir a opinião pública camuflando as reais razões que estão por trás do MT LEGAL!

Como comparar o hipotético e abstrato perigo para a sociedade que representa o porte de uma arma em casa, o que, em tese, configuraria porte ilegal, anistiado várias vezes desde a primeira edição do chamado Estatuto do Desarmamento (N. 10.826/2003), com o real e concreto dano ambiental provocado pelos desmatamentos ilegais em áreas de Preservação Permanente e de Reserva Legal na nossa Amazônia?

Essa comparação só cabe mesmo na cabeça daqueles que avistam no lucro a todo custo uma saída para o desenvolvimento do Brasil.

Adamastor Martins de Oliveira
Analista Ambiental – Agente Federal de Fiscalização
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA

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