Reportagens

Um rio em transformação

Retificado e canalizado, o Tietê parece ter deixado de ser uma ameaça para São Paulo. Mas continua ignorado pela população da metrópole, atitude que assombra o seu futuro.

Carla di Cologna ·
5 de fevereiro de 2007 · 17 anos atrás

Ele vem manso desde a nascente em Salesópolis, na região metropolitana da capital paulista, no Parque Nascentes do rio Tietê em plena Mata Atlântica, na Serra do Mar, e vai até a foz no rio Paraná, em Itapura, na divisa com o Mato Grosso do Sul. Em seus 1.136 quilômetros de extensão, o rio Tietê passa por 56 municípios, 34 deles na região metropolitana de São Paulo. É nesse trecho da metrópole que, há mais de 60 anos, as águas límpidas do Tietê se transformam em esgoto.

Talvez por isso, pouca gente lhe dá a atenção que merece. A situação de descaso, ainda preocupante, começou a mudar em 1991 quando uma campanha promovida pela rádio Eldorado conseguiu arrecadar 1,2 milhão de assinaturas pela despoluição do Tietê. No ano seguinte, o governo do estado de São Paulo criou o Projeto Tietê, para ampliar a coleta e o tratamento de esgoto da região metropolitana — na verdade, um grande projeto de saneamento básico.

Na primeira etapa, que transcorreu de 1992 a 1998, foi priorizada a construção de Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs) em São Miguel, Parque Novo Mundo e ABC, com capacidade de tratar, juntas, sete mil litros de esgoto por segundo. E ampliou-se a capacidade da ETE de Barueri, de sete para nove mil litros por segundo. Segundo a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), ao final desta etapa constatou-se o aumento de 70% para 80% dos índices de coleta e de 24% para 62% dos índices de tratamento de esgoto do total despejado na região metropolitana de São Paulo.

A Companhia de Tecnologia de Saneamento Básico (Cetesb), em diagnóstico realizado no início da década de 90 sobre as fontes da poluição das águas na bacia do Alto Tietê, trecho que passa por São Paulo e vai até Pirapora do Bom Jesus, constatou a quantidade de 1200 toneladas de carga orgânica e 5 mil toneladas de carga inorgânica por dia, o que a levou a selecionar as 1250 empresas responsáveis por até 90% da poluição na bacia. Destas, ao final de 1995, 1168 atendiam aos padrões legais de emissão de esgoto, o que levou à redução de 5 para 3,5 mil toneladas de carga inorgânica diária.

Para a segunda fase, iniciada em 2002 e ainda em andamento, o objetivo é a expansão das ligações residenciais de esgoto na região metropolitana. As perspectivas da Sabesp são do aumento de 80% para 84% dos índices de coleta e de 62% para 70% dos de tratamento do esgoto. Mesmo assim, segundo o especialista José Luiz Negrão Mucci, do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), o projeto ainda não trouxe os resultados esperados devido às diversas interrupções ocasionadas nos períodos de mudança de governo. “O governo está investindo no mapeamento das águas, mas vejo que seria necessário, por exemplo, a reconstrução de algumas estações de tratamento na região metropolitana”, defende.

Para o historiador Janes Jorge, o projeto é positivo, mas a despoluição do rio vai além das águas. Professor de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autor do livro “Tietê, o rio que a cidade perdeu”, Jorge explica que, como a poluição é difusa, não está só na água, mas também no ar e no lixo jogado nas ruas.O especialista Mucci, nesse mesmo sentido, afirma que o que falta não é educação ambiental, mas básica, aquela que ensina a guardar o papel no bolso ou segurar a lata de refrigerante até achar um cesto de lixo.

“Existe muita informação, o que falta é a população assimilar essa informação e reconhecer seu papel na despoluição do rio”, diz. Mucci cita o Tâmisa, em Londres, e o Sena, em Paris, rios de grandes cidades européias que fazem parte da vida das cidades e têm o mesmo grau de importância de museus, sendo usufruídos como fonte de lazer. Um exemplo de tal relação, em São Paulo, pode ser visto no Parque do Ibirapuera, área de lazer pública da qual o paulistano se apropriou, criou o sentimento de posse, o que o leva a reclamar se o lago ou o parque estiverem sujos. Infelizmente, não há essa relação com o rio.

Transformações

O Tietê continua fazendo juz à sua história e sendo palco de muitas transformações. Índios da etnia tupi-guarani ocuparam suas várzeas, canoeiros se sustentaram da pesca em suas águas, imigrantes portugueses e italianos extraíam de seu solo areia e argila para a construção de casas nas então colinas paulistanas. “No decorrer dos anos houve um impacto da degradação do rio na cidade, que começou na década de 20, com a busca pela modernização”, explica o historiador Jorge. Na segunda metade do século XIX obras de urbanização já vinham sendo discutidas e em 1890 foram colocadas em prática, mas apenas em 1940 veio a retificação do rio, antes pleno de curvas.

Naquele ano, a poluição no Tietê já era visível depois da confluência com o rio Tamanduateí, que recebia dejetos lançados pelas indústrias do ABC paulista. Palafitas que o beiravam deram origem a favelas como a do Canindé, hoje extinta. A famosa travessia a nado que acontecia no rio desde 1924, da ponte da Vila Maria à ponte Grande, foi encerrada em 1944, quando a poluição passou a prejudicar os participantes da prova, provocando-lhes doenças como o tifo.

São Paulo perdeu o Tietê como espaço para ser frequentado pelo público. A poluição aumentou, assim como a distância entre o cidadão e a referência do rio como patrimônio natural. Mas nem por isso ele deixou de ser um importante ecossistema para a região, como afirma o especialista Mucci. “Além de cortar todo o estado, continua a ser um ambiente aquático, onde acontece a manutenção da fauna e da flora”, diz. A manutenção de um ecossistema, neste caso, ocorre por meio do ciclo da cadeia alimentar, composta por organismos produtores, como as plantas das margens e algas, e consumidores, constituídos por pequenos animais flutuantes, peixes e aves, além dos decompositores formados por fungos e bactérias.

No trecho que corta a cidade, segundo dados da Sabesp, são despejados 35 mil litros de esgoto por segundo. O rio, fluxo de água que recebe o despejo de matéria orgânica e inorgânica em toda sua extensão, tem nos organismos decompositores a capacidade de diluir esse material. “Na região metropolitana a quantidade de material recebida é muito maior do que aquela que estes organismos podem depurar, o que resulta na poluição degradante do ambiente aquático”, diz Mucci.

Intervenção

Foi no intuito não só de homenagem, mas também de protesto pela despoluição do Tietê que o artista plástico Marcos Reis Peixoto, o Marepe, acompanhado por convidados, lançou pérolas cultivadas de água doce ao Tietê no dia do 453º aniversário da cidade. “A idéia foi devolver a beleza ao rio, de forma simbólica, como um presente a Oxum, a mãe das águas doces”, diz, em referência à entidade religiosa da cultura afro. Marepe, baiano, foi convidado para a intervenção artística pela curadora Cacilda Teixeira da Costa, da Escola São Paulo, e aceitou o desafio por considerar o Tietê um símbolo do descaso nacional, assim como acontece com o rio São Francisco, por exemplo.

A educadora de museus Vera Barros, presente no evento, diz que um dos principais problemas para a despoluição do Tietê é a forma de o governo lidar com os bens públicos, e afirma que “o desprezo dos governantes educa o desprezo da população”. Para a museóloga Marilúcia Bottallo, como cidadãos, hoje, temos deveres, mas não temos direitos. “Como reivindicar então?”. Vera acrescenta: “Se os governantes e a população se importassem um pouco mais haveria mais mobilizações”. Mas será que só assim a população interviria? Para Jorge, um projeto de educação ambiental voltado para os córregos de cada região, presentes diariamente na vida da população, surtiria mais efeitos.

O local escolhido para a intervenção foi a Ponte das Bandeiras, situada entre os clubes Espéria e Tietê, que nos idos dos anos 40 eram concorrentes nas provas de remo naquele trecho do rio, na zona Norte de São Paulo. O compositor Carlos Lélio Leite França, nascido, segundo ele, “na beira do rio”, pescava e nadava no Tietê quando criança, em Itapuí, onde suas águas ainda são limpas. Na prainha de Itapuí famílias organizam churrascos, nadam e passeiam de barco. Lélio, que se mudou para São Paulo quando jovem, remava sob a ponte. Sua paixão pelo rio o levou a compor a canção “Meu nome é Tietê” – dentre outras a ele destinadas –, na qual Lélio personifica o rio contando sua história, em primeira pessoa. Na última estrofe, após clamar por socorro, o rio diz: “(…) Para o meu grande desgosto / Fizeram de mim um esgoto / Agora sou eu quem pede água / Para uma ingrata população”.

Do outro lado da ponte, sobre o rio, estava Mario Roberto dos Santos, “nordestino criado em São Paulo” para quem o rio não passa de “esgoto a céu aberto”. Há 16 anos protesta naquele mesmo local pescando lixo com sua vara de madeira em dias como o do Meio Ambiente, do rio Tietê e do aniversário da cidade. Enquanto a beleza era devolvida de um lado, pelas pérolas de água doce, o lixo era retirado do outro. Sinal de que a recuperação do mais paulistano dos rios ainda é possível.

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