Reportagens

Águas que não se vêem – com Aldo da Cunha Rebouças

O geólogo Aldo da Cunha Rebouças fala da riqueza das águas subterrâneas brasileiras, exploradas sem controle pela iniciativa privada e desprezadas pelo governo.

Roselena Nicolau ·
17 de setembro de 2004 · 20 anos atrás

Foto: Raimundo Gadelha

Pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP, o geólogo e professor Aldo da Cunha Rebouças, 68 anos, adotou, como uma espécie de missão, a bandeira pela proteção das águas subterrâneas brasileiras. “Invisíveis”, estas águas – de importância vital para a sobrevivência dos rios e uma alternativa garantida para o consumo humano – estão sendo ameaçadas pela absoluta falta de controle de sua exploração no país. Desprezadas como solução para o consumo público em quase todo o país, as águas subterrâneas são um achado econômico para as indústrias, hotéis de luxo, condomínios e mesmo hospitais particulares, que fazem poços artesianos privados e assim não pagam pelo consumo da água. Já os governos, segundo ele, não se interessam por uma solução que não é fotogênica, ou seja, não rende inaugurações pomposas. Nesta entrevista, realizada durante o seminário “Saneamento Ambiental: Demandas e Intervenções Necessárias”, promovido pela Assembléia Legislativa de Minas Gerais, Rebouças esclarece sua posição em defesa das águas subterrâneas, fala da transposição do São Francisco e aponta os interesses, e a falta deles, que estão por trás do “esquecimento” desta riqueza escondida.

Qual é o uso potencial da água subterrânea no Brasil?

Rebouças – É um potencial muito grande. As águas subterrâneas somam um volume muito maior do que as águas de superfície. A exploração de apenas 25% das recargas anuais dessas águas poderia aumentar o montante de água disponível em quase 4 mil metros cúbicos/ano por habitante. Os rios do Brasil não secam e isso é sinal de que têm muita recarga, pois a água subterrânea é o alimentador do rio, mesmo quando não chove na bacia. O potencial da água subterrânea é enorme, mas precisamos estabelecer uma legislação que controle o seu uso, sob pena de se prejudicar rios, secar pantanais, nascentes, fontes. A exploração desordenada das águas subterrâneas coloca em risco os lençóis freáticos. É necessário um controle.

Não existe qualquer tipo de controle legal?

Rebouças – No Brasil, a água subterrânea é utilizada de forma extremamente livre, sobretudo pelas indústrias. Para se ter uma idéia do que estou falando, basta lembrar que 95% das indústrias de São Paulo possuem poços artesianos, como forma de fugir da falta freqüente de água ofertada pelas companhias de água e também de fugir dos preços, das taxas que estas companhias cobram pelo uso da água. A água subterrânea tem sido captada sem qualquer controle por estas indústrias, que se livram também de pagar os esgotos. A população é quem paga pelo esgoto deles ou, pelo menos, pelo transporte desse esgoto.

O senhor afirma que mais de 95% das indústrias utilizam essa água. Essa estatística foi produzida por qual órgão?

Rebouças – São dados do Serviço de Abastecimento de Água de São Paulo e do Diagnóstico Zero – uma avaliação de toda a bacia do Tietê realizada pela Escola Politécnica da USP e coordenada pela professora Mônica Porto.

Essa realidade de São Paulo se repete pelo país?

Rebouças – Se repete. Em todo lugar é a mesma coisa, porque existe o mito de que, se São Paulo faz, é bom.

E a legislação brasileira? A lei 9.433, de 1997, que trata do uso da água no país, não faz nenhuma diferença nessa área?

Rebouças – Não existe nenhuma legislação específica para as águas subterrâneas. Em 1976, apresentamos, em Brasília, um projeto sobre o assunto, mas até hoje este projeto não deu em nada. Não há interesse.

Por que o Estado não se interessa em explorar a água subterrânea?

Rebouças – Existe muito mais água subterrânea do que de superfície, então é um disparate não existir esse interesse. Mas essa água não é fotogênica. Ela não exige obras muito grandes. Nos rios, se constroem barragens, com vazões muito grandes, com dinheiro público. Para se obter vazões equivalentes de água subterrânea, é necessário fazer muitos poços, mas esses poços não são fotogênicos, não dão voto. Um poço de mil metros de profundidade, que vai abastecer uma população de 200 mil a 300 mil habitantes, só vai aparecer como obra em 30 centímetros do solo. Então, se você chama o governador para inaugurar este tipo de obra, ele reclama. Ou, quando inaugura, depois deixa abandonado. No Nordeste, um inventário dos poços perfurados demonstra que cerca de 30 mil deles nunca receberam os equipamentos de extração da água para abastecimento público.

Em região de seca, os rios ficam muito baixos, mas isso não significa que não existe água. Não seria mais fácil captar essa água subterrânea do que fazer projetos de transposição, como o que se planeja com o rio São Francisco?

Rebouças – O nordeste semi-árido, em todas as áreas com mais de 800 metros de altitude, tem rios perenes, que nunca secam, por causa da água subterrânea. Quando chega a seca verde, a explosão do verde da caatinga em plena seca, significa que houve infiltração de água no próprio solo. Então, por que não se utiliza essa água? Dizem que ela é salgada. Salgada, uma vírgula. Tecnologia alemã mostrou que se forem feitos furos direcionais nas fraturas dos rios, você capta água na qualidade que quiser e no volume que quiser. Só é necessário estabelecer a profundidade da retirada para ter água sempre boa.

A água subterrânea é sempre potável?

Rebouças – É potável e boa para consumo humano, tendo em vista os processos de depuração biogeoquímicos intensos. Para outros fins, deveria haver uma política de reuso da água, mas as empresas de água sempre olham a água potável e nunca pensam nesse reuso. Não existe um só parágrafo na legislação brasileira sobre reuso de água, que é essencial. Reuso de água significa injetá-la novamente no subsolo para, com processos biogeoquímicos intensos, se gerar a auto-depuração, para que se possa captar novamente água limpa ou controle da interface marinha.

Reuso de água é diferente de tratamento de água?

Rebouças – É diferente, sobretudo porque você utiliza o solo como o mentor de reuso. Esse mecanismo consiste em injetar água tratada de enchentes ou de esgoto no subsolo para realizar os métodos de tratamento da qualidade até para consumo humano.

E esse mecanismo é mais barato do que tratar a água na superfície?

Rebouças – É mais barato, em torno de 70% dos custos. Todos os países desenvolvidos estão hoje fazendo o reuso, porque é um processo mais barato e também mais inteligente.

O senhor se referiu a “países desenvolvidos”. Então, esse barateamento depende de muita tecnologia?

Rebouças – Depende de tecnologia e também de mentalidade, cuca. Nos países pobres como o Brasil, as obras fotogênicas são mais interessantes.

O governo do presidente Lula e da ministra do Meio Ambiente Marina Silva não fez nenhuma diferença para a questão das águas subterrâneas?

Rebouças – Nada, o que existe é muita arrogância, muita pretensão e nenhuma ação.

O que o senhor acha da questão da transposição do rio São Francisco?

Rebouças – Acho que é mais um capítulo da famigerada história da seca. Não é necessário, mas, de Minas Gerais para cima, é praticamente proibido se falar em Comitê de Bacia, porque o Comitê é contra a exploração da seca, contra os carros-pipas, contra o coronelismo e toda a estrutura de exploração da seca. Transpor água é como levá-la para evaporar.

O Comitê do São Francisco é contra a transposição?

Rebouças – O Comitê da Bacia do rio São Francisco foi criado por indução do Governo Federal. Quando o presidente Fernando Henrique Cardoso levantou a idéia da transposição, foi detectado que, por lei, quem definia sobre o assunto era o Comitê. Aí ele criou o Comitê, mas o comitê é contra a transposição.

O argumento da não fotogenia não explica completamente o desinteresse dos governos em explorar a água subterrânea. Existe algo mais que possa sustentar essa posição dos governos?

Rebouças – Existe o grande interesse das empresas de saneamento em manipular verbas públicas ou empréstimos a juros privilegiados.

Como assim? Estas empresas não poderiam se encarregar da exploração dessas águas?

Rebouças – Poderiam se lhes fosse dado espaço político e econômico necessário.

Que tipo de atitude o governo e as próprias companhias poderiam tomar?

Rebouças – Na Califórnia, por exemplo, as calçadas são largas e as casas possuem grandes gramados na frente. É tudo indução de reinfiltração de água no solo, para diminuir o custo das obras de drenagem. A água infiltra, vai correndo pela rua abaixo e ao invés de se aumentar a boca de lobo por onde ela passa, esta boca é menor. Evidentemente, a obra de engenharia necessária é mais barata. As pessoas que têm casa com grande área de infiltração recebem um bônus da prefeitura e pagam menor imposto.

Então, por trás da questão das águas existe também a força das grandes construtoras e empreiteiras?

Rebouças – Exatamente. Estas empresas também manipulam o problema e têm grande interesse em executar grandes obras de engenharia, como barragens, ao invés de pequenos poços, ou reuso da água.

As grandes indústrias nas cidades já descobriram o potencial da água subterrânea. E o agronegócio?

Rebouças – O agronegócio, que começa a ser despertado no Brasil, também começa a sofrer uma grande influência da indústria. Devia ser proibido o uso da água subterrânea para o agronegócio, porque ela deve ser destinada fundamentalmente ao abastecimento público. Mas o agronegócio, como a indústria, vai querer utilizar essa água, porque é mais barato. No Brasil, este processo está por ser despertado, mas lá fora já existe uma grande intensidade de negócio.

Mas no exterior, o uso dessa água subterrânea não é controlado? É possível utilizá-la na indústria ou no agronegócio?

Rebouças – É controlado, e muito sistematizado, mais até do que a água do rio, na medida em que tem alcance social e econômico cada vez mais reconhecido.

O tema da água tomou um tom catastrófico nos últimos anos, tanto quando se fala em preservação do bem e, conseqüentemente, da espécie humana, quanto do valor econômico deste bem. O senhor acredita em grandes guerras por causa da água?

Rebouças – A Palestina perdeu terras para Israel por causa da água. Mas eu não acho que haverá guerras por causa da água. As empresas de água têm interesse em que se fale dessa crise para dela tirar proveito. O Brasil não precisa sofrer dessa crise, porque o país tem muita água tanto nos rios quanto no subsolo e só precisa usá-la com mais eficiência.

  • Roselena Nicolau

    Roselena Nicolau é mineira de Belo Horizonte e jornalista. Foi repórter do Jornal do Brasil por 12 anos é correspondente ...

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