Reportagens

Muito além dos 2797 m

Esquecido durante 45 anos, o Maciço Alcalino de Passa Quatro foi redescoberto. Resultado: a travessia de Serra Fina já demonstra sinais de degradação.

Luiz Henrique Ligabue Silva ·
4 de março de 2005 · 19 anos atrás

Foi a partir do planalto de Itatiaia que o alemão Henning Bobrik avistou pela primeira vez o Maciço Alcalino de Passa Quatro — formação montanhosa da Serra da Mantiqueira localizada entre os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Motivado pelo ímpeto comum aos homens que, por alguma razão inexplicável, gostam de estar nas montanhas, ele organizou a primeira expedição ao maciço. Junto a um grupo de amigos também imigrantes, bateram os contrafortes da serra até delinearem a melhor rota para sua exploração. O proprietário da fazenda escolhida como ponto de partida da caminhada, José Dias, gostou da idéia, chamou mateiros da região e assim definiram o grupo que sairia para a aventura. Durante quatro dias, o facão brandiu mato acima. Dia 8 de julho de 1955, treze homens e o carismático vira-lata Bilú estavam expostos ao frio, ao vento, à chuva fina e à neblina tão comuns ao topo da Pedra da Mina. Era o ponto culminante dessa cadeia de montanhas. Mas isso só seria oficializado, com ajuda do GPS, meio século depois.

Do retorno da expedição, passaram-se quase 20 anos sem que houvesse registro de outros visitantes. Apenas na década de 70, montanhistas do Clube Alpino Paulista começaram a freqüentar as vertentes do maciço e deram início ao processo de consolidação da trilha que corta o conjunto de montanhas no sentido leste-oeste. Porém, a dificuldade encontrada por esses homens reduzia o número de aventureiros no local.

Por décadas a travessia da Serra Fina – nome dado pelos montanhistas para a trilha – foi considera uma das mais difíceis do país. Em 2000, o então estudante de geografia Lorenzo Bagini coordenou um projeto de revisão altimétrica, constatando que a Pedra da Mina possui 2797 metros de altitude. O resultado conferiu a ela o pomposo título de ponto culminante da Serra da Mantiqueira, e ainda a alçou ao posto de quarta maior montanha do Brasil. Pela pesquisa, a montanha supera em oito metros o vizinho Itatiaiaçu — Pico Agulhas Negras — que tem 2789 m de altitude.

Recentemente, numa parceria, o IBGE e o Exército saíram a campo para rever as altitudes das montanhas brasileiras. Como o instituto não pode aceitar números de outras pesquisas que não as suas, refez o procedimento adotado pelo geógrafo, mas utilizou outros parâmetros de georeferenciamento, o que estabeleceu as seguintes altitudes: Pedra da Mina 2798m e Itatiaiaçu 2791m de altitude.

Mas a importância ambiental dessas montanhas vai muito além de sua altitude. Localizada nas vizinhanças do Parque Nacional do Itatiaia, a Serra Fina tem algumas singularidades desse primo famoso. A formação geológica de ambos os maciços é de uma constituição magmática rara, de rochas alcalinas, que são associadas ao processo de fraturamento continental responsável pela separação dos continentes sul-americano e africano, ocorrido há cerca de 65 milhões de anos. A composição de suas rochas, mais duras e mais resistentes a processos erosivos, fez com que essas montanhas se destacassem no relevo como grandes marcos naturais, embora o padrão de desgaste ocorra de maneira diferente nos dois maciços. Itatiaia, com as caneluras que se tornaram a marca consagrada do Pico Agulhas Negras, se contrapõe ao padrão de esfoliamento esferoidal — fenômeno físico, ocasionado pela diferença na dilatação de cada mineral presente em uma rocha, que provocou o desprendimento, em camadas, de placas de uma matriz rochosa — que vem decompondo acentuadamente as rochas da Serra Fina e contribuindo para a esculturação de formas mais arredondadas e repletas de fissuras.

Nos dois maciços é possível encontrar espécies outrora caracterizadas como endêmicas de Itatiaia, caso do simpático sapinho de barriga vermelha Melanophryniscus moreirae. Ambas as montanhas são prova viva da exuberante vegetação de altitude brasileira, onde uma série de afiados capins-elefante, bambus, bromélias, turfeiras, bonsais com forma de pequenos arbustos retorcidos e outras infinidades de espécies compõem a cobertura multicolorida de suas encostas e cristas.

Acima de 2 mil metros o clima pode surpreender entusiastas de primeira viagem: durante os meses de inverno (alta temporada para os transeuntes) não é raro deparar com placas de gelo grudadas em rochas, encobrindo plantas e tapando poças e espelhos d’água em todas as partes altas do maciço. As nuvens vindas do vale do Paraíba cruzam constantemente a serra para se esparramar pelo “mar de morros” — como o geógrafo Aziz Ab’Sáber denominou a sucessão de morrotes de baixa altitude localizados no lado mineiro — e trazem umidade para as partes altas da montanha. Juntamente com a baixa temperatura (há registro de incidência de –13,5 Co) e ventos constantes, são responsáveis pela ocorrência de gelo nesses campos de altitude. Esse processo, além de edificar as belas formas congeladas, traz para o excursionista dois dos maiores problemas que podem afligir a trupe das montanhas: hipotermia (perda de calor corpóreo) e white-out (perda de visibilidade). Ambos os problemas têm sérias conseqüências para visitantes inexperientes.

A divulgação dos novos dados relativos à altitude da Pedra da Mina e o honroso posto alcançado por ela na hierarquia das montanhas brasileiras trouxe sérias repercussões para o ecossistema da região. Somada ao recente boom nos esportes de aventura, a notícia gerou notoriedade para a até então desconhecida serra. O número de visitantes cresceu vertiginosamente nos últimos cinco anos, e com ele os problemas ambientais resultantes dos esportes praticados ao ar livre. As dificuldades apresentadas pelo terreno — como o desnível, no mínimo digno do adjetivo “poderoso” — fazem com que o tempo de caminhada seja longo e sua progressão em metros, lenta. Outro fator que contribui muito para o sofrimento do visitante é a sobrecarga da mochila com água, uma vez que a trilha se mantém nas cristas, e longe das nascentes. Por isso, muitas vezes, os exauridos visitantes não conseguem chegar às áreas de camping já abertas, e destroem a vegetação para providenciar um “merecido local de descanso”. Ao fazer isso, acabam quebrando arbustos, pisoteando a vegetação e inserindo elementos exógenos em um ambiente susceptível a pequenas alterações.

Os resultados desse novo fluxo já se fazem presentes, principalmente na alta estação. No feriado de Corpus Christi de 2002 foram registradas 144 pessoas no cume da Pedra da Mina; em anos não tão remotos, o número de visitantes durante um ano todo se restringia a pouco mais de uma dezena de pessoas. Nesse processo, novas áreas de camping foram abertas “espontaneamente” e a trilha foi consolidada pelo pisoteio dos transeuntes, assim como vários caminhos “alternativos” que dão em lugar algum.

Para tentar administrar e consolidar um plano de ações sobre o maciço, uma vez que essa área não tem status de Parque Nacional, o mesmo jovem geógrafo responsável pela divulgação dos resultados de sua pesquisa fundou uma sociedade civil de direito privado chamada Associação Pró Serra Fina. Nela, membros de todas as esferas envolvidas com o uso do lugar — montanhistas, proprietários das fazendas onde se localiza o maciço e a comunidade local — foram chamados para participar e colaborar com os anseios que motivaram a sua criação: nortear ações que ajudem a “conservar o patrimônio natural e o desenvolvimento social da região”.

Vale lembrar que o maciço se encontra dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) da Mantiqueira, mas o grau de proteção oferecido por tal “título” não a protege das constantes perdas que vem sofrendo. Nos pés da encosta sul, voltada para o Vale do Paraíba, há uma enorme mancha ocre que sangra a paisagem: uma exploração de bauxita com suas cavas, que não param de crescer, a céu aberto. A paisagem também vem perdendo cada vez mais verde: a silvicultura de eucaliptos está em plena safra de colheita, o que vem podando as partes baixas do complexo montanhoso. Como se vê, em alguns casos estamos melhor sem certos títulos, pois eles acabam legalizando situações que na prática não são dignas da denominação à qual se referem.

Atualmente, a associação vem desenvolvendo projetos de conscientização dos visitantes através dos princípios de mínimo impacto — sugestão de conduta ética em ambientes naturais que reduzem os impactos gerados pela visitação. Em uma de suas ações, a associação instalou, na entrada das trilhas, placas de orientação com estimativas do tempo de deslocamento, pontos de água, locais de camping e princípios de mínimo impacto, esperando auxiliar os visitantes no planejamento de seus dias de caminhada e evitando que novas áreas de acampamento surjam pela falta de informação. A associação também realiza fóruns anuais nos quais projetos, problemas e idéias são apresentados e discutidos. Dessa forma encontraram, talvez, uma maneira de contribuir — dentro das limitações de uma instituição sem fins lucrativos, e recursos — para a preservação do frágil sistema de altitude, assim como criaram um ambiente para o bom amante do montanhismo e do esporte ao ar livre: aquele que é, sobretudo, consciente.

PS: Para aqueles que ficaram interessados em conhecer os encantos da Serra Fina, não custa lembrar: o façam de forma planejada, e consultem o site da Associação Pró Serra Fina, que contém uma série de informações úteis para o planejamento da trilha. Aos inexperientes, recomenda-se a contratação de um guia local. Está ainda previsto para julho de 2005, o lançamento do documentário “A serra esquecida”; essa é mais uma possibilidade para se conhecer os mistérios e as belezas do local.

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