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De piratas a biopiratas

Papagaios de pirata tomaram conta da preparação da Convenção sobre Biodiversidade e deturparam o conceito de biopirataria. Os verdadeiros ladrões se safaram.

19 de novembro de 2004 · 19 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Quando, há mais de vinte anos, cientistas e especialistas em recursos naturais e meio ambiente se engajaram na promoção do valor econômico da biodiversidade, como estratégia para defendê-la, nunca imaginaram que o tema evoluiria para onde está hoje.

Com efeito, a idéia dos pioneiros foi simplesmente demonstrar que a natureza é algo mais que um pacote de raridades a quem os humanos devem reverência ética e adoração estética. Propuseram um tratado internacional para protegê-la e fizeram um ótimo trabalho. Por isso, rapidamente, diplomatas e advogados e o que é muito pior, os políticos, entraram no assunto e transformaram uma idéia simples em um pesadelo.

Assim, a prolongada preparação da Convenção sobre a Biodiversidade, apresentada à sociedade em 1992, da qual cientistas e outros mentores originais tinham sido desembarcados, ao invés de servir para obter mais recursos para conservar e aproveitar a diversidade de forma sustentável, converteu-se num monstrengo que contribui para qualquer coisa, menos para isso.

Um de seus subprodutos menos esperado é a “biopirataria”. Na generosa mente dos precursores da Convenção, a biodiversidade deveria ser salva para o bem de toda a humanidade, sem limitações, nem restrições. Os burocratas de cada país, que finalmente encontraram algo novo para justificar seus salários, abonar suas promoções e financiar suas viagens e os bons hotéis e restaurantes que freqüentam, transformaram a nobre idéia num acúmulo de regras nacionalistas, egoístas e perversas. A única coisa que até agora não resultou de tanta tinta e de tanta saliva é uma maior atenção para a conservação da afamada biodiversidade.

E é assim que, em toda América Latina, cientistas famosos, cientistas menos famosos, estudantes universitários, colecionadores amadoristas de borboletas e orquídeas, ou apenas curiosos inadvertidos, se converteram em temíveis “piratas da biodiversidade” que, como os antigos piratas e corsários, são considerados inimigos mortais da civilização e merecem ser espionados por semanas pela polícia nacional, arrastados para escuras masmorras e serem marcados para sempre como criminosos. Nem os cientistas nacionais conseguem trabalhar em paz, no seu próprio país, devido às suspeitas de que, no fundo, estejam roubando o patrimônio nacional. Uma verdadeira caça às bruxas.

Tudo isso acontece porque ainda não foi compreendido, pelas autoridades, o verdadeiro caráter dos recursos de biodiversidade. Madeira, macacos ou aranhas vivos ou mortos, ou frutas de cupuaçu ou camu-camu são expressões da biodiversidade. Porém, não são os materiais que, nas mãos de um cidadão, podem ser considerados atos de biopirataria.

O conceito implícito é muito mais complexo e envolve, dentre outros elementos, os investimentos para conhecer seus usos ou aplicações e, também, o registro ou patente desses usos. Dito em termos simples, aproveitar a biodiversidade passa por conhecê-la e conservá-la. Esses dois preceitos são os que determinam que uma nação e não outra possa reclamar propriedade, inclusive intelectual, sobre um elemento da diversidade biológica. Deve-se levar em conta que a biodiversidade da Amazônia é comum a nove países. Inclusive à França, berço de piratas famosos.

A Costa Rica, pequena como é, possui muitas das mesmas espécies que existem em grande parte da América do Sul. E esse país é o único que tem dado um exemplo consistente, além dos discursos, estudos e planos que nunca se cumprem, do que significa a biodiversidade. Costa Rica criou o Instituto Nacional da Biodiversidade (Inbio) que precisamente faz isso: coletar, identificar, estudar, analisar, registrar e, inclusive, vender. Para isso tem investido milhões de dólares. Também criou um importante sistema de unidades de conservação bem manejadas para conservar o recurso. E não anda caçando cientistas, nem colecionadores amadoristas.

Não é que a lei não deva ser cumprida, nem que os cientistas e coletores de plantas e animais não devam ser controlados. Mas deveria preocupar muito aos juízes a falta de equidade de um tratado que permite qualificar de biopirata um coletor de plantas, nacional ou estrangeiro, e que não faz o mesmo com os extratores ilegais de mogno, uma espécie rara que figura na lista das espécies ameaçadas de outra convenção internacional.

Se a proibição do amadorismo, por exemplo, no que se refere às plantas e insetos, tivesse existido no último século, o Fabre e centenas de outros grandes personagens das descobertas científicas do mundo natural, teriam sido presos, julgados e condenados. Hoje nem os estudantes de entomologia podem fazer uma coleção de insetos para seus cursos sem passar pela via crucis de intermináveis processos burocráticos, e ainda assim correm um grande risco.

É preciso perceber o absurdo de deter e maltratar um colecionador de borboletas, gastando dinheiro para perseguí-lo, encarcerá-lo e julgá-lo, quando as dezenas ou centenas de insetos que coletou não significam quase nada para o patrimônio biológico do país. Menos ainda num continente como a América do Sul, onde são eliminados milhões de hectares de floresta a cada ano e queimados, até a raiz, milhões de hectares a mais. São possivelmente milhares de espécies endêmicas, potencialmente valiosas, que se extinguem a cada ano nesses lugares desmatados ou queimados.

Os verdadeiros biopiratas são, por exemplo, os cultivadores de soja quando usam terras proibidas, violando a legislação. Também são biopiratas os legisladores que nunca votam um orçamento, sequer minimamente razoável, para as unidades de conservação, onde mal sobrevive a essência da biodiversidade nacional. Biopiratas, enfim, são os governos que promovem a eliminação das unidades de conservação, como parece ser o mais recente hobby do atual governo do estado do Mato Grosso. Eles são os que devem ser vilipendiados e cobrados por seus atos irracionais.

Um bom propósito, como foi a Convenção sobre a Biodiversidade, tem se convertido essencialmente numa nova complicação burocrática internacional, onde as boas intenções de uns se afogam na futilidade da maioria que, obviamente, não dedica um minuto a pensar na diversidade da vida que desaparece dia-a-dia.

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Comentários 1

  1. Maria Lídia diz:

    Tudo isso é verdade temos que defender a nossa biodiversidade