Reportagens

Documentário expõe a devastação do Cerrado

Diretor do filme Ser Tão Velho Cerrado fala sobre o longa que retrata em mais de uma hora e meia a degradação que sofre o segundo maior bioma do país

Sabrina Rodrigues ·
9 de maio de 2019 · 5 anos atrás
Foram necessários três anos para que o filme Ser Tão Velho Cerrado ficasse pronto.

Ao trabalhar com filmes sobre skate, o cineasta André D’Elia, de 32 anos, não imaginava que um dia mergulharia no cinema socioambiental de cabeça. Formado em cinema pela Fundação Armando Alves Penteado (FAAP), André Vilela D’Elia começou como assistente de direção e trabalhou no primeiro documentário sobre skate no Brasil, o Vida sobre Rodas (2010).

Mas a virada de D’Elia para o cinema socioambiental começou por volta de 2009, época dos preparativos do leilão para a concessão da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. O cineasta começou a achar tudo muito estranho. “Tinham as empresas que estavam disputando o leilão que eram Odebrecht, Camargo Correia; as maiores empresas de engenharia do Brasil deixariam de ser empreendedores de um leilão e passariam a ser empreiteiros. Pensei ‘Nossa, esse caso é igual ao assassinato do Tancredo. Todo mundo sabe que está errado, todo mundo está vendo que tem corrupção aqui, que tem problema, mas ninguém está falando’. E aí eu comecei a investigar, e eu fiquei maluco com essa história e queria fazer uma ficção”. André fez as malas e foi para o Xingu pesquisar. A viagem foi decisiva. De lá para cá, nunca mais deixou de trabalhar com questão ambiental.

“Comecei a pesquisar, a conversar com as pessoas e percebi que todo aquele trabalho, aquele esforço para se fazer uma hidrelétrica no rio Xingu teria um impacto ambiental e social gigantesco, só para o governo poder roubar, para poder ter uma desculpa para a corrupção, como hoje foi demonstrado que era para isso mesmo. Com a delação do Palocci, ficou demonstrado que era só para roubar mesmo. Ainda não tem nenhum uso para energia, a ideia sempre foi roubar”, dispara André. A pesquisa resultou no longa Belo Monte, Anúncio de uma Guerra, finalizado em 2012. Depois disso, começou a trabalhar com curtas e campanhas de internet, como o “Demarcação já!”, de 2017, um clipe com 28 artistas em homenagem aos povos indígenas do Brasil.

 

Em 2013, foi convidado para trabalhar no projeto que o tornou um cineasta conhecido no país todo. Seis ONGs ambientais como o ISA, WWF, SOS Mata Atlântica o chamaram para fazer um filme sobre a mudança no Código Florestal. O desafio estava lançado. André D’Elia queria fazer um trabalho que não fosse enfadonho, chato, mas sim, um trabalho que o público pudesse compreender. O resultado veio em 2015, com Lei da Água. “Foi um desafio muito bom, acho que até hoje foi o meu filme mais assistido, foi bem em cinema, em plataformas de filmes sob demanda, passou em escolas, em universidades e em espaços públicos. Mais de 45 mil de público, em mais de 300 cidades do Brasil. Estreamos na França; o filme passou na Espanha e em Portugal.

Ao exibir a Lei da Água no Congresso Nacional, D’Elia conheceu Ane Romero e Bruno Mello, da Fundação Mais Cerrado. Os dois o convidaram para conhecer a situação do bioma. ‘Tá bom, amanhã a gente pega o carro e vê esse Cerrado aí que vocês [Ane e Bruno] estão falando!”. O convite virou viagem, que virou filme.

O Ser Tão Velho Cerrado (2018), documentário de 1h e 36min, está disponível na plataforma de streaming Netflix e retrata a degradação que o Cerrado vem sofrendo. E sobre esse trabalho que o “Três Dedos de Prosa” conversa com André D’Elia.

*

((o))eco: No filme é nítido esse conflito mineradora vs preservação. A população que vive da mineração, o povo quilombola Kalunga que vive da natureza, do que ela consegue do Cerrado para sobreviver. E também tem um “embate” ganância versus preservação, a ideia de que preservar custa caro. O que é preciso para que esses atores passem a andar juntos?

Bom, boa pergunta. Primeiro, eu acho que respondendo a sua pergunta de forma curta e grossa, primeira coisa para mudar isso seria uma política agrícola, uma política agrária diferente. Primeiro, é uma questão de política, que entende esse fator da preservação ambiental, que entende a diversidade e as pessoas como um valor, como um valor econômico. Acho que essa é a forma mais rápida de responder a sua pergunta.

Mas tem também outra forma que é o ponto pessoal de cada um. Esses lugares, principalmente na Chapada, na região de MATOPIBA, são municípios pequenos, lugares onde todo mundo se conhece. E é até interessante porque o Ser Tão Velho Cerrado tem a questão do cinedebate que alcançou mais de 10 mil pessoas e a partir do momento em que a gente faz essa discussão para o público, as pessoas começam a questionar o ponto de vista local. ‘Como que a agricultura industrial se insere aqui? A agricultura industrial geral emprego? Não. A agricultura industrial produz alimentos importantes para a comunidade? Não. A gente gosta dos agricultores industriais? Não, a gente não gosta.’ Então, o próprio grande agricultor percebeu que ele não era querido na comunidade e que ele não trazia benefício para ela.

No caso da Chapada foi muito interessante porque depois do filme, alguns desses agricultores converteram parte das suas áreas para comida orgânica. Teve um cursinho sustentável promovido pela Fundação Mais Cerrado, para esses grandes proprietários, que também não são muitos, geralmente são vinte pessoas. Foi muito legal, trouxe uma conscientização boa sobre manejo, solo, controle biológico de pragas e melhor controle do uso de agrotóxicos. Então, teve um resultado muito bom nesse sentido.

O que acontece nesses locais é que ninguém mais quer ser o bandido, ninguém bate no peito e diz ‘eu sou o destruidor, desmato’, é muito raro esse tipo de atitude. A não ser no sul do Pará, mas ali é criminoso mesmo, [coisa de] gângster.

No Cerrado, de modo geral, são pessoas querendo produzir. Muita gente que ganhou muito dinheiro com a soja, ela dá muito dinheiro. Então, tipo, eu já fiquei rico então agora, eu vou fazer uma coisa orgânica. Então, é muito legal isso porque a gente para de separar o ambientalista do ruralista, o agricultor industrial, do agricultor familiar. Não, a gente vive em comunidade, tem que dialogar, precisa aproximar mais. Nós precisamos entender que todo mundo vive no mesmo ambiente. Esses grandes proprietários de terra lá de Goiás, quando eles moram na terra, muitos deles não moram, moram em São Paulo, no Rio e tem lá alguém que administra. Ele mesmo não pisa no lugar, mas quando ele vai, vê que o ambiente não está gostoso, não está agradável. Ninguém quer morar num lugar seco, onde a cachoeira secou, um lugar desagradável. Eles querem morar num lugar mais agradável, justamente pelo fator ambiental, se o cara está ali, ele está vendo que o ambiente não está legal. Isso é uma mudança muito bacana que ilustra para a região, por que o ruralista é uma pessoa que fala o que ele pensa, e é apoiado por muitas pessoas do setor da soja. Essa ideia de que deve plantar soja no Cerrado, eles falam isso abertamente. Muita gente deve ter assistido e falado ‘Nossa, não acredito que ele falou isso’. Mas quando a gente tem o diálogo, ‘Nossa, você pensa assim? E a biodiversidade? E a sua água? o seu Cerrado?’ E aí a coisa vai mudando.

Em relação à mineração, eu já acho mais complicado. Na mineração, a gente conversa com um cara que é garimpeiro, ele tem a bomba dele, o carro. Ele vai e minera uma pequena área de sustento dele. Isso não é a regra no Brasil. Aqui temos a mineração na Amazônia, mais pulverizada, que causa um grande impacto ambiental. Mas o problema da mineração no Brasil é a industrial, que por via de regra é feita em larga escala. Paralelo ao Ser Tão Velho Cerrado, eu já estava trabalhando sobre mineração, vou lançar em breve, com foco em Minas Gerais, o filme chama-se “O Amigo do Rei”. Saiu na Folha de São Paulo, uma reportagem de capa inteira.

A mineração já tem esse problema de ser em larga escala, não tem sujeição, esse é o grande problema. Você não consegue conversar com o indivíduo e explicar, porque ele não faz parte da comunidade. É muito pior do que a agricultura neste sentido, porque você não tem diálogo. Então, você não consegue sujeição, não consegue falar com alguém que possa decidir. É um sistema econômico, político, empresarial, que faz com que a mineração atue de forma tão predatória e lambona, desleixada, amadora. A mineração no Brasil é amadora. Largam o minério em qualquer lugar, sem plano de segurança, de emergência, não tem nada. Mineração no Brasil é feita nas coxas, tem sido assim há mais de quatro séculos. Eu dividi a sua pergunta,  porque são coisas diferentes.

Essa mineradora Zeus estava desativada quando eu fui. Agora, ela está a todo vapor e o grande problema é que não tinha transporte e agora eles estão tirando manganês com caminhão. Muito provavelmente, eles não estão nem tendo lucro, estão gastando muito dinheiro para tirar o manganês de lá, que é quase na fronteira com Tocantins, é lá em cima, em Goiás. A questão ali, é que eles querem fazer hidrelétrica, ferrovia e viabilizar um projeto de mineração. Então, a mineração vai vir acompanhada de outros projetos com muito impacto na região.

A gente tem que estar atento porque, hoje, as hidrelétricas, na Chapada dos Veadeiros, estão aprovadas. São 6 hidrelétricas, eram 22, depois passou para 14 e agora são 6. A empresa dos parentes do Ronaldo Caiado está avançando. É do irmão do governador de Goiás que é o Ronaldo Caiado, que tem um interesse econômico na região, tem autorização para fazer isso, então fica difícil a gente parar esse processo. Mas a gente vai conseguir porque: primeiro, por causa do pato-mergulhão. É o único lugar do planeta onde tem o pato-mergulhão. Os únicos lugares que têm pato-mergulhão são Chapada dos Veadeiros, Serra da Canastra e Jalapão, em mais nenhum lugar do planeta. Existem  entre 250 a 300 indivíduos, são poucos patos. Então, fazer essas hidrelétricas é decretar a morte do pato-mergulhão. A questão do turismo, você vai fazer uma hidrelétrica que vai beneficiar um fazendeiro e os outros milhões de reais que entram de dinheiro de turista? Isso prejudica toda uma cadeia produtiva que é grande na Chapada, são muitos visitantes. Brasília inteira vai para lá, a praia dos brasilienses é a Chapada dos Veadeiros e Pirenópolis. Você vai perder todo esse potencial econômico para fazer uma hidrelétrica? Para fazer uma mineração? Não faz o menor sentido. A gente tem que lutar contra esses projetos de mineração, de hidrelétricas na Chapada dos Veadeiros, a todo custo, em benefício da população.

O filme foi finalizado no governo Michel Temer, com o Sarney Filho como ministro do Meio Ambiente. Estamos há três meses do governo Bolsonaro, o que você acha que poderá mudar ou não, quanto à política ambiental em relação ao Cerrado no atual governo?

O filme foi realizado no governo Dilma que foi a grande responsável pela destruição do Cerrado. Como a Kátia Abreu era ministra dela [ministra da Agricultura – Jan/2015 a Maio/2016] e as duas tiveram essa grande ideia de criar a macrorregião do MATOPIBA [região territorial que incorpora todo o Cerrado dentro dos limites do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. O nome é a junção das siglas dos estados] e inventar uma política pública que beneficiasse produtores que topassem ir para a região desmatar. Se você for pensar quem foi mais prejudicial para o Cerrado até hoje, com certeza foi a Dilma. A Dilma e a Kátia Abreu, as duas.

A política agrária e agrícola voltada ao Cerrado já era péssima no governo Dilma. Pouco mudou durante o governo Michel Temer e acredito que não há muito espaço para piorar no governo Bolsonaro, porque a questão do Cerrado é referente às terras privadas. A maior parte do Cerrado não é em áreas públicas como é na Amazônia. O fazendeiro precisa cumprir a legislação ambiental, o Código Florestal. De qualquer forma o Código Florestal deixa o Cerrado desprotegido.

Penso que existem dois pontos sobre o governo Bolsonaro, um favorável e outro desfavorável. O ponto favorável em relação ao Bolsonaro no poder é que ele é muito mal visto na comunidade internacional. Ele é visto como fascista, como uma pessoa ignorante, o que de fato é; uma pessoa despreparada, de modo que a cadeia produtiva da soja tem buscado se desvincular da imagem do Bolsonaro. O próprio Blairo Maggi colocou, é até engraçado te falar isso, mas o Blairo Maggi, o nosso motossera de ouro, está parecendo um ambientalista perto do Bolsonaro. Porque eles estão com medo de que os compradores pensem ‘Peraí, eu não vou comprar soja de um lugar onde você está expulsando o povo quilombola’. Eu acho que para o Cerrado isso pode até ser visto como um ponto positivo.

Mas tem um lado que chega a ser péssimo que é a questão territorial do povo indígena, do povo quilombola, principalmente, o povo quilombola do Maranhão. O Bolsonaro não vai fazer nada para demarcar e de fato terminar esse processo de demarcar os territórios quilombolas do Maranhão localizado em áreas do Cerrado. E isso me preocupa bastante, porque são áreas que a partir do momento que o Bolsonaro ganhou, o pessoal está invadindo. O grande problema do Bolsonaro não é a política, é o simbólico. Quando ele fala que pode invadir, que quilombola não vale o que pesa, comparando-o a gado, a animal, ele está dando um recado simbólico para a população de que tudo bem invadir, tudo bem ocupar e desmatar essas áreas. Inclusive em vários quilombos onde eu trabalho tem gente simpatizante do Bolsonaro que vai com adesivo dele e faz ameaça e já incendiaram casas. Pessoas que gostam dele, fazendeiros que vão com camiseta, caminhonete com adesivo dele. Ele representa o desrespeito aos povos indígenas e quilombolas e as falas dele durante a campanha eleitoral alimentaram uma cultura de descumprimento da legislação ambiental federal, da lei. O que o Bolsonaro prega é o descumprimento da lei.

A Fundação Palmares foi para um lugar que não é dela, a Funai também. Desvincularam do ministério da Justiça e todo um aparato técnico para homologação e demarcação dessas áreas. O presidente era do Exército, um capitão, um militar, e jogou no lixo anos, décadas de trabalho feito pelo Exército Brasileiro de marcação de pontos estratégicos e estudos para poder demarcar essas áreas. Ele está jogando isso fora, então falou que vai ter que refazer isso, um trabalho primoroso do Exército Brasileiro, é totalmente incompreensível isso, é totalmente irracional. A minha única resposta é: ele é burro, ele não sabe o que está fazendo, ele faz as coisas sem pensar, como ficou claro com essas postagens malucas do carnaval. Ele não está aberto ao diálogo porque ele acredita que sabe tudo, que é muito esperto. Acho que esse é um fenômeno da internet, o Bolsonaro acabou absorvendo essa característica da internet que são as verdades prontas, então, ele tem total certeza do que está falando. Ele tem certeza absoluta que arma vai resolver o problema do Brasil, de que o índio é um entrave para o desenvolvimento do país. Então, ele está errado, mas ele não dá nenhum espaço para diálogo, e acredita fielmente nesse absurdo.

Eu acho que sempre teve o autoritarismo no Brasil, menos durante o governo FHC, mas durante o governo Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro, a gente teve muito autoritarismo, principalmente na questão fundiária. O governo Dilma foi o que mais teve concentração de terra, onde o latifúndio mais cresceu, os sem-terra ficaram mais desamparados. Engraçado que era um governo que se dizia de esquerda. O caso de Belo Monte é o caso mais recente, mais clássico de autoritarismo, num governo de esquerda. Foi utilizada uma ferramenta da ditadura militar, que é a suspensão de segurança, e é o que o Bolsonaro quer fazer agora, o mesmo instrumento criado pela ditadura militar que é dizer que esse empreendimento é de segurança nacional. Foi com esse argumento jurídico que a Dilma conseguiu implementar Belo Monte. Então, o autoritarismo no Brasil não é novo. Bolsonaro não é o primeiro. Espero que seja o último, porque ele tem essa figura nefasta que facilita o combate, com a Dilma era difícil falar que ela estava sendo autoritária,  porque ‘ah, mas ela é de esquerda!’ Hoje a luta por justiça talvez fique mais evidente, o inimigo tem cara de inimigo.

Se você tivesse que fazer o “Ser Tão Velho Cerrado 2”, qual seria o foco?

O foco com certeza seriam as comunidades tradicionais, o povo quilombola. Eu comecei a pesquisar e achei que eles mereciam um filme só deles. Achei que seria injusto colocá-los nessa sopa porque Ser Tão Velho Cerrado é um filme multidisciplinar. Com certeza eu faria um filme focado nessas populações tradicionais, a forma deles de ocupação, as injustiças que eles sofreram e ainda sofrem, do ponto de vista territorial, e como eles levantam a bola do Cerrado também. Mostrar o Cerrado como um lugar de grande movimento social, econômico, farmacológico, turístico, cultural e isso a gente está perdendo.

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  • Sabrina Rodrigues

    Repórter especializada na cobertura diária de política ambiental. Escreveu para o site ((o)) eco de 2015 a 2020.

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