Reportagens

Pai de todos

Nascido por uma vontade despretensiosa de Dom João, Jardim Botânico do Rio chega aos 200 anos com fôlego de jovem. Instituto deu apoio fundamental aos jardins brasileiros.

Bernardo Camara ·
19 de março de 2008 · 16 anos atrás

Mal esticou as pernas em solo carioca e Dom João já tinha um bocado de compromissos para cumprir, no tão falado ano de 1808. Entre burburinhos oficiais sobre abertura de portos, criação da imprensa e instalação de um banco nacional, o então príncipe regente de Portugal tratou de arranjar um tempo na conturbada agenda para tratar de outro assunto, que não estava na pauta da corte: encontrar um canto para abrigar e adaptar as mudas e sementes asiáticas e européias trazidas na bagagem.

Foi assim, por uma vontade despretensiosa de aclimatar plantas estrangeiras, que a zona sul do Rio de Janeiro concebeu o Jardim de Aclimação, numa cidade em que as atividades rurais ainda dividiam espaço com as praias. Hoje, 200 anos após receber os primeiros exemplares de espécies como canela e noz-moscada, o espaço ganhou pompa na estrutura e no nome. Dom João ia gostar de ver como seu modesto horto cresceu e se transformou no Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

Completando o bicentenário no próximo dia 13 de junho, o pai dos jardins botânicos brasileiros está se preparando para a festa. Seus 137 hectares – dos quais 55 constituem o arboreto – adentram 2008 revitalizados, e com uma lista robusta de projetos estruturados ao longo dos anos. “Além da Escola Nacional de Botânica Tropical e da biblioteca, temos hoje programas em muitas áreas, como Mata Atlântica, Zona Costeira, taxonomia, conservação. E ainda nossa coleção de herbário, xiloteca, coleção viva”, vai enumerando Liszt Vieira, presidente do instituto.

Por trás das conhecidas palmeiras-imperiais que chamam atenção na rua Jardim Botânico – no bairro homônimo –, muita coisa passa despercebida pelas 400 mil pessoas que pisam no parque a cada ano. “Hoje, trabalhamos com uma visão multidimensional, com cinco vertentes: científica, educacional, ambiental, cultural e social”, define Vieira, explicando que o objetivo é criar um diálogo entre a conservação do meio ambiente e cada uma dessas áreas.

Para tirar as atividades da sombra das árvores, a idéia é incentivar cada vez mais as pessoas a conhecerem com detalhes tudo o que é oferecido ali dentro. “Pretendemos fazer uma exposição sobre o próprio Jardim Botânico, como uma vitrine. As pessoas não sabem que aqui tem pesquisa, escola, centro cultural. Queremos mostrar o que é o Jardim Botânico para o visitante”.

Como gente grande

Enquanto Vieira fala, de sua mesa, sobre os vôos do JB, lá fora o entra e sai não cessa. E não são apenas famílias, fotógrafos ou casais de namorados que aparecem para respirar ar puro. As idas e vindas incluem pesquisadores internacionais que sabem muito bem das potencialidades do instituto. “Existe uma relação de parceria muito freqüente com importantes jardins botânicos do mundo, como o de Londres, Nova York, Paris”, relata o coordenador de pesquisas, Fábio Scarano.

O especialista explica que o intercâmbio entre os países é impulsionado por dois motivos principais: a existência de um acervo riquíssimo, que não se limita em nada à flora brasileira, e a tecnologia, que atende com folga à demanda científica. “Estamos muito bem servidos em termos estruturais”, diz, enquanto se prepara para receber nos próximos dias uma delegação chinesa que vem ver de perto os trabalhos botânicos.

A mais recente conquista atraída pela boa forma do aniversariante é a criação do Centro de Conservação da Flora Brasileira. Com dinheiro do Banco Mundial (Bird), o centro vai dar um generoso empurrão na identificação de espécies nacionais ameaçadas. O objetivo é chegar a 2010 com 60% destas espécies conservadas, em bancos de germoplasma, DNA ou coleções vivas.

“Vamos liderar essa ação em âmbito nacional, e pelo conhecimento, vamos gerar subsídios para tirar estas espécies da lista de ameaçadas”, anseia Scarano. Para iniciar os trabalhos, só falta o projeto driblar as burocracias internas do Bird. “Estamos enfrentando galhardamente essa selva burocrática, e vamos criar o centro ainda esse ano”, assegura Liszt Vieira,. “A função científica aqui dentro está se desenvolvendo muito”.

Troca de figurinhas

Se lá fora as pesquisas do JB do Rio fazem eco, no Brasil o instituto completa dois séculos como patriarca dos 34 jardins botânicos estruturados. Seu vasto banco de dados e a experiência em estudos de vegetais deram base para que os posteriores ganhassem corpo. “Pelo papel histórico que desempenhou e desempenha e sua relevância científica, o JB do Rio continua sendo a referência onde todo mundo vai buscar informações”, atesta Dácio Roberto Matheus, presidente da Rede Brasileira de Jardins Botânicos (RBJB) e diretor do JB de São Paulo, que completa oito décadas este ano.

Roberto Matheus conta que na época que o instituto paulista engatinhava, o apoio do colega pioneiro, que já chegava aos seus 120 anos, foi fundamental. “A relação é histórica. Essa troca de material botânico, de informações que acontece hoje é tradicional. O JB do Rio é como o velho ancião, que sempre se tem uma reverência”, completa, sem esquecer de dizer que atualmente os integrantes da RBJB já caminham com as próprias pernas. “Do ponto de vista científico, já tem vários que se equiparam. Superar, nenhum”.

Com o Museu Emílio Goeldi, no Pará, a experiência foi semelhante. Ainda que tenha surgido para lá dos anos 1860 e hoje seja referência em estudos da Amazônia, o instituto paraense também se alimentou em ninho carioca. “O JB do Rio de Janeiro formou muitos pesquisadores do Museu Goeldi. São instituições que têm afinidades, o intercâmbio foi constante ao longo do tempo”, diz Nelson Sanjad, coordenador de comunicação e extensão do museu.

Já crescidos e em pé de igualdade, hoje os institutos de pesquisas botânicas brasileiros não deixam de trocar figurinhas. Pelo contrário. “Com o passar do tempo, cada um foi se estruturando e apresentando suas importâncias, suas especialidades. A gente se organiza através da rede e há um intercâmbio intenso entre todos os jardins. Isso ocorre com troca de informações, consultas a bancos de dados, experiências em educação ambiental, conservação”, lista o presidente da RBJB.

No passado

Somente no fim do século 19, quando as plantas de dom João VI já haviam passado pela administração de treze diretores, é que o Jardim Botânico começou a ganhar seu atual caráter científico, com João Barbosa Rodrigues à frente. Ao assumir o cargo, em 1890, o pesquisador resolveu botar ordem na casa, pois considerava “tudo muito agradável à vista , mas cientificamente em estado deplorável”, contam arquivos da época.

Foi ele o responsável por ordenar os exemplares em famílias botânicas e fincar placas de identificação de cada espécie. “Para ser um Jardim Botânico não basta ter um aglomerado de plantas. É preciso haver pesquisa científica, educação ambiental. O Barbosa Rodrigues é o marco. A partir dele foram criados instrumentos para que o local se tornasse de fato um instituto de pesquisa”, recorda o atual presidente.

No futuro

Menina dos olhos do Ministério do Meio Ambiente, hoje o Jardim Botânico do Rio de Janeiro é considerado “o órgão de pesquisas do ministério”. Fábio Scarano tem consciência do prestígio, e afirma que daqui para frente os mais de 40 pesquisadores que coordena deverão ter um foco mais abrangente nos estudos: “O salto que precisamos dar é direcionar ações num âmbito mais nacional”, conclui, explicando que a ênfase hoje ainda é muito em cima dos biomas e ecossistemas próximos.

Liszt Vieira confirma a intenção de buscar novos horizontes. Além de elaborar um projeto que visa a continuar incentivando o crescimento de outros jardins botânicos pelo Brasil, o JB carioca não pretende ficar estagnado em suas atividades. “Ainda há muita coisa a ser feita. Na área de pesquisa muitos projetos podem ser desenvolvidos. Na escola podemos abrir muitos cursos de extensão em área de gestão de meio ambiente. E vamos expandir o espaço do Centro Cultural. A idéia é ciência e cultura conversarem e buscar coisas em comum”.

Os planos, no entanto, esbarram no velho problema do orçamento. Mesmo com o aumento de R$ 4,5 milhões de 2003 para cá, os R$ 9 milhões separados para 2008 não pagam tantas aspirações. “Esse dinheiro vai para questões administrativas, gastos imediatos. Não consegue bancar os grandes projetos”, lamenta Vieira. Segundo ele, a vitalidade do instituto não seria possível sem o apoio da iniciativa privada e de recursos adquiridos por emendas parlamentares. Estas são as duas fontes que essencialmente movem os trabalhos.

Mesmo com o empecilho financeiro, não é todo dia que se completam 200 anos. Portanto, a programação para celebrar a data é extensa, e entre os convidados está o presidente Lula, que deve meter a mão na terra para plantar uma palmeira-imperial. Um livro institucional com ilustrações históricas e a cronologia do antigo Jardim de Aclimação também será lançado. E um antigo prédio vai ser reinaugurado para abrigar o primeiro Museu do Meio Ambiente do mundo.

Ainda sem patrocínio, a exposição principal vai abordar o meio ambiente desde os primórdios do planeta, passando pelo povoamento dos humanos, os problemas que chegam com a urbanização e a crise atual, com direito a mudanças climáticas e aquecimento global. Mas Vieira adianta que a mostra não terá nada de batida: “Vai ser um pouco high-tech, com tecnologia de ponta. Não valeria a pena fazer algo apenas com objetos colocados um do lado do outro. Esse é o nosso desafio”, diz, dando a tônica do velho, porém inovador instituto: “Idéia não nos falta”.

  • Bernardo Camara

    Bernardo Camara é jornalista formado pela PUC-Rio. Desde 2007 dedica-se a temas ambientais e de direitos humanos. Viveu por 4...

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