Reportagens

Lições da história

Ninguém precisa esperar o aquecimento global para perceber o tamanho do desastre que se avizinha. Basta olhar para trás e ver como o clima produz tragédias para a humanidade.

Manoel Francisco Brito ·
2 de fevereiro de 2007 · 17 anos atrás

Inseguro quanto à sua capacidade de imaginar que o planeta, graças às consequências do aquecimento global, será um lugar muito diferente do que é hoje, provavelmente bem mais inóspito, talvez já na metade do século XXI? Não fique aflito. Há uma maneira muito fácil de ter noção do que o futuro pode reservar à humanidade. Basta olhar para trás. Nem é preciso ir muito longe. É suficiente, por exemplo, prestar atenção ao que aconteceu por volta de 2100 a.C. para perceber que uma mudança climática é coisa muito séria.

Por essa época, uma alteração no regime de chuvas na região onde hoje é a Turquia provocou uma seca global que quase destruiu a civilização egípcia e acabou para sempre com a certeza dos gregos que sua nação seria eternamente uma potência mundial. Ambos tiveram mais sorte do que Acádia, um império com população de meio milhão de pessoas, que escorava sua força em técnicas agrícolas avançadas, baseada na coleta da água de chuva e sua distribuição por canais de irrigação. Os acadianos se estabeleceram na Mesopotâmia em 2300 a.C.. Duzentos anos depois, tinham sido varridos do mapa.

Os registros arqueológicos mostram que por volta de 2170 a.C., houve um êxodo em massa do Norte de seu império em direção ao Sul, que com o súbito aumento de população, aliado à escassez de água, logo entrou em colapso. Escavações nas aldeias abandonadas revelaram grossas camadas de pó sem nehum sinal de civilização, como ferramentas. É um indício de que os acadianos saíram da área às pressas. Pesquisas com sedimentos extraídos das profundezas do Golfo de Omã indicam que a única coisa que a região produziu ao longo de 300 anos foi pó e areia, depositados em camadas distintas no fundo do mar pelo vento.

Tempos modernos

Não é necessário, entretanto, apelar tão somente à arqueologia – ou à paleoclimatologia, a ciência que extrai informações sobre a evolução do clima examinando camadas profundas de gelo na Groenlândia – para ter certeza que o clima é instável o suficiente para afetar de modo radical qualquer criatura que viva sobre a face da Terra. O americano Mike Davis empregou registros pluviométricos, relatos oficiais, jornalísticos e individuais e planilhas de empresas de exportação de produtos agrícolas para produzir um livro monumental, Late Victorian Holocausts, El Niño, famines and the making of the Third World, que retrata um evento climático que marcou o quarto final do século XIX.

Seu motor foi um velho conhecido dos humanos modernos, o El Niño, fenômeno climático periódico produzido pelo aquecimento do Oceano Pacífico aliado à uma oscilação da massa de ar que corre sobre ele próxima do Equador. Quando ele ocorre, o resultado é um aumento de temperatura no cinturão tropical do planeta que não raro chega até às suas zonas temperadas. Às vezes suas consequências são devastadoras, como mostra o livro de Davis. A partir de 1875, ele apareceu em três ocasiões distintas, num ciclo que se encerrou em 1902.

Nesses 27 anos, o El Niño trouxe secas extremas que se estenderam de Java até o Nordeste brasileiro, passando pelas Filipinas, Índia, China e África, com consequências climáticas que se fizeram sentir na Irlanda e na fronteira dos Estados Unidos com o Canadá. Elas provocaram fome, epidemias e serviram de palco para conflitos sociais como a Guerra dos Boxers, na China, e Canudos, no Brasil. Depois que os sucessivos períodos de grandes secas passaram, entre 30 milhões e 60 milhões de pessoas – entre as quais dois milhões de brasileiros – estavam mortas e um cinturão de pobreza firmemente estabelecido nos trópicos.

Em 1926, a região amazônica também padeceu por conta dos efeitos do El Niño e viveu a maior crise climática desde que, em fins do século XIX, começou-se a coleta de dados como índices pluviométricos e de vazão de seus rios. Foi uma seca monumental, que em seus primeiros momentos chegou a provocar algum grau de euforia entre os locais. Na Venezuela, à medida que os rios baixavam, deixavam veios de pedras e metais preciosos à mostra, prontamente extraídos pelas populações ribeirinhas. Mas a alegria durou pouco. A estiagem secou além da conta os rios e a floresta, esturricada pelo sol, começou a arder com intensidade até então jamais vista.

Vai piorar

“A população rural ficou extremamente vulnerável”, diz o ecologista Irving Foster Brown, pesquisador do Woods Hole Institute e professor da Universidade Federal do Acre. “Muitas pessoas que trabalhavam com o extrativismo foram cercadas pelos incêndios florestais e morreram. Foi um evento tão extremo que mesmo depois do retorno da chuvas o rio Amazonas permaneceu com a vazão abaixo de suas médias históricas”. Como as secas de fins do século XIX, a que varreu a Amazônia em 1926 ocorreu em plena era da Revolução Industrial, período em que o homem aumentou sensivelmente a produção de gases estufa e deu a partida no processo de sua interferência no clima.

A tentação, portanto, de ver nesses exemplos de eventos extremos sinais da mão humana são grandes. “Isso, no que diz respeito a eventos passados, é por enquanto especulação”, diz Brown. “O fato é que a natureza por si só já é capaz de distribuir pancadas fortes em si mesmo e na humanidade. Ela não precisa de nossa ajuda para agravar essa sua capacidade de criar eventos extremos”. O pesquisador lembra que a seca que aconteceu há 81 anos deu-se numa Amazônia com sua cobertura original praticamente intacta e esparsamente populada. Se ela se repetisse agora, já desmatada e com milhões de habitantes, provavelmente seus efeitos seriam apocalípticos.

E a tendência é que no futuro, graças à nossa contribuição de quase dois séculos para o efeito estufa, a intensidade e frequência de eventos climáticos devastadores aumente. E isso não é uma especulação, mas uma certeza que, infelizmente, também já tem história. Furacões, por exemplo, ao longo dos últimos 150 anos foram ficando não apenas mais frequentes, mas com poder de devastação superlativo. O Katrina, e seu rastro de prejuízos de mais de 200 bilhões de dólares, ainda está fresco na memória. Mas quem se lembra do Mitch? Em 1998, ele matou 10 mil pessoas na América Central.

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Comentários 1

  1. Fernando B. Albuquerque diz:

    Mas foi aquecimento ou esfriamento que causou o evento que estinguiu o povo acadiano? Pelo que consta foi esfriamento e não aquecimento. Erupções vulcânicas podem mudar rapidamente o clima e o o curso da história. Santorine, Krakatau e Laki são algum exemplos disso