Reportagens

Largada polêmica

O DOF, novo sistema que vai acompanhar o fluxo de produção e comercialização da madeira no país, entra em vigor sob crítica de Ongs e aplauso cauteloso dos madeireiros.

Andreia Fanzeres · Manoel Francisco Brito ·
31 de agosto de 2006 · 18 anos atrás

Marina Silva aproveitou sua ida à reunião do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) em São Paulo para lançar oficialmente o Documento de Origem Florestal (DOF), que a partir das 9 horas da manhã desta sexta-feira, 1º de setembro, passa a reger o transporte e comercialização de madeira extraída em solo brasileiro. O documento será gerado eletronicamente, pela internet, e por trás dele há todo um sistema informatizado que (pelo menos essa é a esperança) vai permitir maior controle e dar mais transparência à atividade madeireira. O DOF vai substituir as famigeradas Autorizações para Transporte de Produto Florestal (ATPF), um documento fácil de fraudar e cuja credibilidade estava tão em baixa que até mesmo madeireiros ilegais desconfiavam dele.

O novo sistema começou a ser gestado há quase três anos e seu lançamento foi anunciado em sete ocasiões diferentes, para ser adiado cada vez que a data se aproximava. E justo agora, quando ele foi finalmente oficializado e posto para funcionar, um dos grupos que mais lutou pela sua adoção – o das Ongs ambientalistas – saiu em campo defendendo que a estréia do DOF deveria ser mais uma vez retardada. “Nada contra a DOF. Somos absolutamente a favor do sistema”, diz Marcelo Marquesini, da campanha Amazônia do Greenpeace (confira nota oficial). “Mas a sua implantação está sendo feita às pressas, de maneira desorganizada, e isso pode comprometer seu futuro”. Paulo Barreto, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), embora não condene a entrada em operação do DOF, reconhece que as chances de confusão com a entrada no ar do DOF são grandes.

“O governo está mudando o sistema de controle em meio a um processo de descentralização, no qual os estados vão assumir a sua gestão florestal”, diz ele. “E há um claro descompasso nisso tudo. A maioria dos estados não se preparou para suas novas funções e tampouco sabem como integrar seus sistemas com o do governo federal”. Marquesini lembra que além da questão da integração dos sistemas, o treinamento dado ao pessoal que vai operá-los, principalmente nos estados, foi deficiente. Mas o que mais o incomoda é a capacidade de controle dos governos logo nessa partida do DOF. “O sistema, por ser todo eletrônico, é mais difícil de ser burlado. Mas nenhum sistema desses, por mais perfeito que seja, funciona sem fiscalização mais afiada. Principalmente no começo”, afirma Marquesini.

Os fiscais que existem são ainda poucos para a tarefa e nem todos foram treinados para analisar a documentação que segue com o caminhão, atestando a origem da madeira. Ele teme, por exemplo, que agora ao longo de setembro, quando os madeireiros terão trinta dias para registrar seus créditos em ATPFs no sistema do DOF, que a coisa fique sujeita à fraude. Um madeireiro pode muito bem super avaliar o seu estoque no pátio, para ter margem para esquentar toras cortadas ilegalmente, ou seguir no caminho contrário, declarando menos do que tem para fazer uma espécie de caixa dois de madeira. Muitos estados reclamaram do esquema de implantação da DOF. Mas o único que oficializou sua posição contrária à entrada em vigor do novo documento foi São Paulo. Seu secretário de Meio Ambiente, José Goldemberg, disse pessoalmente à ministra Marina Silva que seu estado está despreparado para a novidade.

Padrão mínimo

Ele reclamou da falta de informações sobre o funcionamento do sistema do Ibama, especialmente no que se refere ao compartilhamento de dados entre os estados que não vão adotar o DOF. A secretaria de meio ambiente de São Paulo disse, em nota, que é imprescindível conhecer os detalhes do DOF antes de sua implementação, algo que não foi feito até a véspera de seu lançamento. Goldemberg foi claro em sua conversa com a ministra. Vai adotar o novo sistema porque é uma determinação federal, mas até que todos os estados conheçam o DOF e integrem-se a ele, a fiscalização em território paulista não estará apta a operar.

“Essa integração é fundamental”, explica Barreto. “Sem um padrão mínimo, vai ser muito difícil para um guarda em São Paulo, mesmo que ele conheça o DOF, aceitar a entrada no estado de um caminhão com documentação emitida por Mato Grosso”. O governo federal está atento à questão e já preparou uma minuta de acordo para ser discutida com os estados para facilitar a padronização dos sistemas de controle da madeira que circula pelo país. Marquesini diz que boa parte desses problemas poderia ter sido evitado se o DOF tivesse sido lançado em apenas um estado, que serviria de laboratório para corrigir eventuais problemas antes que fosse estendido para o resto do Brasil. “É uma pena que eles tenham escolhido colocar a coisa de pé assim meio na marra”.

Na Amazônia, à exceção do próprio Mato Grosso, que tem um sistema próprio de gestão florestal que funciona há algum tempo, não há mais nenhum estado plenamente apto a operar dentro dos parâmetros exigidos pelo DOF. No Pará, o novo sistema será conduzido pelo próprio Ibama ao longo de setembro. Depois, ele será assumido pelo governo estadual, que já abriu licitação para montar um esquema de controle semelhante ao mato-grossense. “Na mesma safra de madeira, o Pará vai ter seu fluxo controlado por três sistemas diferentes”, diz Marquesini. “O potencial para problemas vai ser grande”.

No Amazonas, a impressão é que o governo local está perdido. Não há previsão orçamentária para comprar equipamento e treinar pessoal e os funcionários encarregados de acompanhar desde 2004, com ATPFs geradas pelo Ibama, a atividade madeireira no estado. O Acre vai adotar o DOF. Mas vai manter em operação seu atual sistema de controle da atividade madeireira – um claro sinal de que não está muito confiante nessa estréia do DOF. O Amapá só vai assumir a parte que lhe cabe nessa história no ano que vem. O diretor de Florestas do Ibama, Antônio Carlos Hummel, contesta a informação de que o treinamento foi inadequado e diz que nenhum estado foi esquecido, inclusive Acre e Amazonas. “O pior dos mundos eram as ATPFs”, afirma. “Atrasar mais e deixá-las em circulação iria causar muito mais transtorno”.

Corrida à fraude

Desde que o DOF foi anunciado, quem faz fraude com madeira meteu-se numa corrida para conseguir ATPFs a qualquer custo e a qualquer preço, para tentar esquentar seus estoques no novo sistema. Hummel conta que em dois meses aconteceram cinco furtos a unidades do Ibama para roubo das autorizações, um inclusive com morte, em Imperatriz, no Maranhão. Mas a questão é de que forma o DOF vai ser implantado. O superintendente do Ibama em Rondônia, Osvaldo Silva, resumiu, em poucas palavras, o que está para acontecer no resto do país. “A gente vai aprender fazendo”. No final do primeiro semestre, dois servidores do órgão no estado participaram, em Brasília, da capacitação para o DOF. E, daqui para frente, eles serão os responsáveis por orientar os demais servidores e a população sobre o funcionamento do novo sistema. Ele não parece muito preocupado com possíveis problemas de adaptação nessa fase de transição.

Os madeireiros, principais interessados nessa questão, têm posição bastante semelhante aos funcionários do governo federal. Acham que a implementação do DOF está sendo feita dando muita margem para problemas, mas acreditam que ficar livres logo das ATPFs compensa o grau de tensão que provavelmente irão enfrentar pelos próximos meses. “É uma pena que o governo tenha passado três anos discutindo o DOF e não tenha planejado melhor a sua implantação”, diz Justiniano Neto, vice-presidente da Associação das Indústrias Madeireiras Exportadoras do Pará (AIMEX), que congrega as principais empresas do ramo no estado. “Mas apesar desses percalços, o DOF traz benefícios imediatos para os madeireiros porque desburocratiza muito a atividade, reduz o custo de obtenção de documentos e vai gerar informações sobre a nossa atividade que nunca tivemos antes, como o número de empresas, o volume e as espécies que estão sendo cortadas”.

Neto acha que seus associados vão se adaptar rápido. Ele teme mais pelos pequenos madeireiros, que operam longe dos grandes centros da Amazônia, sem qualquer infra-estrutura para conectar um computador à internet, único meio pelo qual se poderá obter o DOF. “Essa falta de ferramentas vai obrigá-las a mexer na sua operação, adiantando o pedido de documentação antes de meter a carga em cima do caminhão”, diz Vagner Kronbauer, que dirige a União das Indústrias Madeireiras do Pará (Uniflor), que reúne vários sindicatos da categoria. A Uniflor está fazendo gestões junto à Embratel para saber quanto seus associados teriam que pagar por uma conexão de internet dentro do mato, mas já sabe que será impossível resolver esta questão no curto prazo.

“Eu entendo a posição das Ongs porque elas não querem que o novo sistema fique comprometido”, diz Kronbauer. “Mas manter a ATPF viva seria estender algo que virou um suplício para nós. Enfrentávamos uma burocracia terrível para obtê-las e mesmo fazendo tudo direito, não estávamos livres de nos ver envolvidos em falcatruas. Era muito comum uma serraria comprar madeira toda em ordem para perceber só depois que o Ibama aparecia que as ATPFs evolvidas na transação eram fraudadas”. Silva, superintendente do Ibama em Rondônia faz coro. “Difícil é trabalhar com ATPF, e isso felizmente acabou”. Segundo ele, a passagem para o DOF tem acontecido aos poucos. Na quinta-feira, inclusive, uma equipe foi ao município de Nova Mamoré para uma reunião com o setor empresarial para ensiná-lo a se cadastrar no DOF pela internet.

Fiscalização

A partir desse cadastramento, as empresas vão declarar quanto têm de madeira em seus planos de manejo e no pátio e, depois de uma avaliação do Ibama, elas poderão obter autorização para o transporte. Mas devido às restrições de fiscalização, não é garantida que a vistoria em campo preceda ao aval eletrônico. Apesar disso, Hummel está seguro de que, se houver falcatrua, ela vai ser pega. “O sistema vai registrar tudo, é como uma declaração de imposto de renda”, compara. “Eu posso multar na hora em que identificar a fraude”, diz. Ele explica ainda que, a partir do que for declarado, o Ibama vai elaborar estratégias para fazer as vistorias nas empresas, de modo que sejam cada vez mais eficientes. Hummel assegura que o Ibama tem informações prévias sobre as empresas que devem se cadastrar e pode bloquear o saldo de créditos e não liberar o DOF, se for o caso.

Além disso, o DOF só vai permitir o registro de empresas que já fizerem parte do Cadastro Técnico Federal, para garantir que o Ibama lide apenas com as que são ativas e legalizadas perante o fisco.

Os estados que já têm sistemas próprios de monitoramento florestal aguardam o acesso ao sistema do Ibama para poderem colaborar em trabalhos de fiscalização. Esse é o caso de Minas Gerais, que desde 1991 deixou de trabalhar com as ATPFs e permite o transporte de produtos florestais a partir de uma Guia de Controle Ambiental. Segundo Clécia Cavalcanti, assessora da diretoria de controle e fiscalização do Instituto Estadual de Florestas, o sistema mineiro é eletrônico e muito parecido com o que vai lançar o governo federal, portanto, a comunicação entre os dois será imediata. “Nós tivemos uma apresentação do novo sistema do Ibama, mas não treinamento”, informa. No entanto, ela mesma acredita que não haverá problemas de operação no DOF, se o que for lançado for mesmo fiel à demonstração a qual teve acesso.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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