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Mata Atlântica tem regras de proteção rígidas, mas que são desobedecidas no Paraná

Instituto Água e Terra (IAT), IBAMA e Federação de Agricultura (FAEP) se apoiam no despacho do ministro do Meio Ambiente, já revogado, para tentar anistiar desmatadores

Bruna Bronoski ·
25 de junho de 2021 · 3 anos atrás

Os três órgãos do Paraná brigam na Justiça para não obedecer a Lei federal da Mata Atlântica (11.428/2006), especial e mais protetiva, para seguir o Código Florestal (12.651/2012), lei mais branda e que serve para todos os biomas brasileiros. A disputa, que já chegou à terceira instância na Justiça, pode perdoar os responsáveis por quase 72 mil hectares de floresta derrubada em propriedades privadas do estado, segundo dados do MapBiomas.

Para entender o pedido dos interessados por este perdão, imaginemos o ano 2000. Em alguma propriedade privada da área da Mata Atlântica, passa um rio com mata ciliar dos dois lados. O dono da terra desmata a vegetação de cada margem, sem autorização de órgãos ambientais. Pela lei da Mata Atlântica, ele seria punido, com multa e auto de infração. Ainda deveria responder por crime ambiental e recuperar a área que danificou. Pela lei, o bioma tem proteção desde 1990.

Mas o mesmo proprietário poderia ser livrado de qualquer punição e necessidade de restauração da área se a ele fosse aplicada a lei do Código Florestal. Pelo Código, matas nativas, em Áreas de Preservação Permanente (APPs), como margens de rio, ou reservas legais, e que tenham sido retiradas até 22 de julho de 2008, viram áreas consolidadas. Ou seja, o dono da terra ganha o direito de explorar a área como quiser, sem precisar recuperar o bioma.

Mas hoje, qual legislação vale? Em abril do ano passado, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, assinou um despacho (4.410/2020) que anistiaria 329,7 mil hectares de Mata Atlântica devastados entre 1990 e 2008 no país, ao se aplicar as regras do Código Florestal. Por pressão dos Ministérios Públicos dos 17 estados onde a Mata Atlântica está presente, além do Ministério Público Federal e da sociedade civil, Salles revogou o despacho dois meses depois. Só que os impactos da assinatura reverberam na Justiça até hoje, pois alguns Estados concordam com o conteúdo do despacho.

É o caso do Paraná, onde o Instituto Água e Terra (IAT), órgão ambiental de fiscalização do estado, e o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais (IBAMA), entraram com pedidos de liminar na Justiça para obedecerem ao Código Florestal. A Federação de Agricultura (FAEP) apoia a iniciativa. A justificativa do IAT para preterir a Lei da Mata Atlântica é que isso afetaria Cadastros Ambientais Rurais (CAR) pendentes de análise, uma vez que, segundo o governo do Estado, não há como analisar tecnicamente as declarações da década de 1990 pela falta de imagens de propriedades da época. O governo estadual ainda afirma que haveria prejuízo à economia, baseada na agropecuária, ao ter que exigir de produtores rurais a retirada de lavouras para a recuperação da mata nativa.

Paraná foi o estado que mais desmatou a Mata Atlântica nos últimos 30 anos. Foto: María Malagón/Flickr.

De acordo com o diretor da Fundação SOS Mata Atlântica, Mário Mantovani, o setor agropecuário paranaense vai na contramão das políticas para conter a emergência climática.  “Uma coisa é o Estado não aceitar. Outra coisa é a lei. O Paraná se esquiva do processo das oportunidades de restauração das propriedades com o CAR e o Plano de Recuperação Ambiental. Com isso o estado fica fora do Acordo do Clima. Como é que você não vai reconhecer a lei da Mata Atlântica se hoje tem satélite, informação, universidades? Tem tudo”.

O promotor de Justiça do MP-PR, Alexandro Gaio, responsável pela Ação Civil Pública que tenta barrar o pedido do IAT, afirma que as justificativas do governo do Estado não são aceitáveis. Primeiro porque há imagens de satélite e aéreas disponíveis de três fontes diferentes: do MapBiomas desde 1985, do Google Earth desde a década de 1990 e do próprio governo pelo Instituto de Terras, Cartografia e Geologia do Paraná (ITCG) desde antes de 1990.  “O que existe é uma ausência de vontade do órgão ambiental de fazer o seu trabalho. É muito simples, é só ver no CAR [Cadastro Ambiental Rural] o proprietário que declarou área consolidada de APP: é nessa propriedade que o órgão tem que buscar a informação. Existem instrumentos hábeis e plenamente factíveis para que o Estado do Paraná possa realizar essa verificação”, ressalta o promotor do Ministério Público.

O MP ganhou na segunda instância em favor da Lei da Mata Atlântica, mas perdeu na terceira, com decisão favorável ao IAT no Superior Tribunal de Justiça. A decisão foi assinada monocraticamente pelo ministro do STJ Humberto Martins. Ainda cabe recurso. Sobre a crise econômica mencionada pelo IAT, Gaio pondera que o tamanho da área desmatada é importante para o bioma, mas pouco expressivo para a economia: “O que mais me chama a atenção é o Estado do Paraná recorrer ao STJ com pedido de suspensão de liminar alegando grave risco à ordem econômica com base no 0,4% do território [desmatado] em benefício de médios e grandes proprietários infratores”. O promotor se refere aos dados do MapBiomas divulgados em 2020. A área a ser recuperada equivale a menos de 1% do território no estado. A maior parte dos infratores são donos de áreas com mais de quatro módulos fiscais.

O IAT ainda afirma, nos pedidos à Justiça, que aplicar a Lei da Mata Atlântica afetaria o andamento dos Cadastros Ambientais Rurais (CAR) que estão pendentes. Este cadastro é obrigatório para donos de imóveis rurais que, depois da análise pelo governo, têm as áreas da propriedade definidas para uso produtivo ou preservação natural. Pelos dados do Climate Policy Initiative de 2020, o CAR não está adiantado no Paraná: são 452 mil imóveis rurais inscritos no sistema e apenas 2,3% desse total foram analisados. As análises foram interrompidas depois das ações na Justiça. 

A Mata Atlântica tem uma lei especial pela sua importância. Só restam 7% da sua área original no país. O bioma é responsável pela regulação do clima no sudeste e sul do Brasil, além de ser abrigo para uma vasta biodiversidade única no mundo e ameaçada de extinção. Mantovani lembra da importância de se manter a floresta em pé: “Não tem fábrica de água. A água vem da floresta, ponto. Se não tiver cobertura florestal, não vai ter água, e o Paraná tem um sinal de alerta muito maior do que o da legislação do Paraná ou da lei da Mata Atlântica que é a crise hídrica e a crise climática”.

  • Bruna Bronoski

    Jornalista ambiental do Observatório de Justiça e Conservação (OJC). Publica sobre temas socioambientais e sobre Mata Atlântica e Florestas de Araucária. Estuda Sociologia Ambiental na Unicamp.

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Comentários 2

  1. Paulo diz:

    E os TRIBUNAIS (aqueles TJD, TRFs, etc,etc.etc..) , dizem o quê/


  2. Odilo Neto Luna Coelho diz:

    No caso dis empreendimentos de agricultores familiares, que devem constituir a maior parte das demandas junto às OEMAS, a excessiva burocracia, custos etc. afastam esses empreendedores do SNLA ao invés de atrai-los, forma uma grande oposição, inviabiliza qualquer ganho ambiental. A Oema usa a lei para tentar se impor, obter receitas, esquecendo- se dos aspectos sócio ambientais do diálogo, do processo participativo. Assim não dá, estão atirando no próprio pé.