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Onça-Pintada: 3 décadas de publicações científicas

O número expressivo e crescente de profissionais dedicados à pesquisa sobre onças no país mostra a liderança do Brasil na conservação da espécie

21 de dezembro de 2010 · 13 anos atrás
  • Silvio Marchini

    Doutor em Conservação da Vida Silvestre, Empreendedor da Conservação (E-Cons), fundador da Escola da Amazônia e membro do Ins...

A onça Índia, imagem capturada por armadilha fotográfica dentro do Parque Nacional do Iguaçu. Foto: Projeto Parques do Iguaçu.

A onça ocupa uma posição excepcional nas mais diversas formas de registro feitas pelo homem, de pinturas rupestres à nossa cédula de 50 reais. Na literatura científica, porém, ela tem tido uma presença relativamente pouco expressiva. Somente nas últimas três décadas é que cientistas têm descrito os hábitos das onças na natureza. O zoólogo George Schaller fundou a literatura ecológica sobre a espécie e atualmente seu legado está mais presente no Brasil do que em qualquer outro país.

Em 1978, George Schaller e José Manuel Vasconcelos publicaram o artigo Jaguar Predation on Capybara (“Predação de Capivara por Onças”). O nome do periódico em que publicaram o artigo é quase impronunciável para a maioria dos brasileiros – Zeitschrift für Säugetierkunde – mas a publicação era resultado de pesquisas realizadas no Brasil, mais precisamente no Pantanal do Mato Grosso do Sul. Com o artigo, Schaller e Vasconcelos fundaram a era moderna da literatura ecológica sobre onças, tanto no Brasil quanto internacionalmente.

Não que as onças não tivessem atraído a atenção de estudiosos até então. Pelo contrário, o maior e mais fascinante predador terrestre do nosso país sempre teve destaque nas crônicas dos exploradores e naturalistas que se aventuravam pelo interior do Brasil. O primeiro relato sobre onças no país data de 1557 e foi feito pelo marinheiro alemão Hans Staden. Em seu livro Duas Viagens ao Brasil, Staden relata que “há também muitos tigres naquela terra, que estraçalham homens e causam muitos danos”. A obra de Staden e de outros exploradores do século XVI definiram a tônica do que viria a ser escrito sobre onças nos séculos seguintes: seus hábitos predatórios, principalmente quando percebidos como ameaça ao homem e seus animais domésticos, e sua perseguição por caçadores e fazendeiros. Entre os naturalistas dos séculos XVIII e XIX, notavelmente Rodrigues Ferreira, Spix, Wallace e Bates, a ecologia alimentar da onça também foi tema recorrente, embora descrições de caçadas à onça merecessem espaço significativo em suas crônicas.

“Foram justamente relatos de caçadas no Brasil, mais especificamente no Pantanal, que dominaram a literatura sobre onças nos primeiros três quartos do século XX.”

Foram justamente relatos de caçadas no Brasil, mais especificamente no Pantanal, que dominaram a literatura sobre onças nos primeiros três quartos do século XX. O primeiro e talvez mais influente autor desse período foi Theodore Roosevelt. Em 1913, o caçador e ex-presidente dos Estados Unidos se juntou a Cândido Rondon em uma expedição para desbravar o “selvagem oeste brasileiro”. Em sua passagem pelo Pantanal, Roosevelt participou de caçadas à onça, as quais descreveu no ano seguinte em seu livro Nas Selvas do Brasil. Outro aventureiro lendário que deixou um registro detalhado de suas caçadas foi Sasha Siemel. Nascido na Letônia, Siemel passou parte de sua vida no Pantanal, onde ganhou notoriedade como o único homem branco capaz de caçar onças com zagaia (a zagaia é uma lança comprida que deve ser segurada com firmeza pelo caçador de modo que a onça, ao se lançar sobre ele, seja empalada). Em 1953, Siemel publicou suas memórias de empalador de onças no livro Tigreiro!. Finalmente, em 1976, Toni de Almeida publicou o livro Jaguar Hunting in the Mato Grosso and Bolivia. Almeida era caçador e guia de safáris de caça para estrangeiros, mas tinha o hábito de anotar o peso, o tamanho e o conteúdo estomacal das onças que matava. Foi o primeiro a fazer isso. Como resultado, seu livro forneceu a mais completa informação sobre biologia e ecologia de onças no Pantanal antes de Schaller.

Não é de se surpreender, portanto, que Schaller tenha escolhido o Pantanal para realizar o primeiro estudo científico sobre onças. Schaller veio ao Brasil em 1977 para estudar a ecologia da onça e suas presas, em um projeto conjunto entre a New York Zoological Society (hoje Wildlife Conservation Society – WCS) e o IBDF (hoje Ibama). Em 1978, o brasileiro Peter Crawshaw se tornou a contrapartida nacional no projeto. Juntos, eles foram os primeiros a usar colares com transmissores de rádio para investigar o movimento de onças. Em 1980, publicaram o artigo Movement Patterns of Jaguar. No mesmo ano, Schaller se mudou do país, deixando em seu lugar o americano Howard Quigley. Crawshaw e Quigley passaram a trabalhar em uma fazenda em Miranda e juntos publicaram, entre 1984 e 1992, vários artigos sobre a onça pantaneira. Crawshaw continuou seu trabalho sobre onças e responde hoje por mais publicações sobre ecologia e conservação da espécie do que qualquer outro pesquisador.

Foi somente em 1986 que pesquisas sobre onças conduzidas em outros países começaram a ser publicadas. Naquele ano, o americano Alan Rabinowitz publicou dois artigos sobre ecologia e problemas de predação do gado doméstico em Belize, além do livro Jaguar, no qual descreve seu esforço para criar naquele país a primeira reserva dedicada à conservação das onças. Rabinowitz, que começou seu trabalho em Belize em 1983 a convite de Schaller, estabeleceu as bases para um programa duradouro de pesquisa, que hoje responde por boa parte das pesquisas em andamento. Também em 1986, o veterinário Rafael Hoogesteijn publicou seu primeiro artigo sobre a situação das onças na Venezuela. Hoogesteijn foi autor de várias publicações influentes nas duas décadas seguintes, entre elas o Manual sobre os Problemas de Predação Causados por Onças em Gado de Corte. Junto com outros pesquisadores também dedicados ao estudo da ecologia e conservação das onças em grandes fazendas de gado nos Lhanos venezuelanos, Hoogesteijn fez da Venezuela um dos países que mais contribuíram para a literatura científica sobre onças.

A partir de meados dos anos 90, México, Argentina, Bolívia e Estados Unidos passaram a fazer contribuições importantes. Outros países que também produziram publicações são Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Panamá, Paraguai e Perú. Em 1999, a WCS e a Universidade Nacional Autônoma do México reuniram naquele país 30 especialistas em onças, representando 10 países, entre eles o Brasil, para apresentarem informação atualizada em diversas linhas de conhecimento sobre a espécie. Os resultados foram publicados em 2002 no livro El Jaguar en el Nuevo Milenio, a maior compilação de artigos sobre onças em um só volume já publicada. Não obstante, o Brasil, berço da pesquisa sobre onças, continua sendo o país com maior número de publicações sobre a espécie. O número expressivo e crescente de profissionais dedicados à pesquisa sobre onças no país e o apoio de instituições nacionais e internacionais influentes tais como Pró-Carnívoros, Instituto Onça-Pintada, WCS e Panthera, sugerem que a liderança do Brasil na pesquisa, conservação e, consequentemente, literatura científica sobre onças vai continuar nos próximos anos. Trinta anos depois, o legado de George Schaller continua mais presente no Brasil do que em qualquer outro país.

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