Análises

O que têm a ver as chuvas de abril, políticas públicas e desigualdade?

A extensão dos danos decorrentes de eventos extremos da natureza depende fortemente da qualidade das políticas públicas, da infraestrutura urbana e da cobertura florestal

André Sant’Anna ·
18 de abril de 2019 · 5 anos atrás
Foto: Tânia Rego/Agência Brasil.

No último dia 9 de abril, a população do município do Rio de Janeiro viveu, e acompanhou em tempo real, as consequências de mais um desastre natural. Convencionou-se chamar assim, desastre natural, porque tem como origem uma força da natureza. No caso do Rio de Janeiro, foi, mais uma vez, um episódio de chuvas extremas. Não que isso seja novo para o cidadão carioca. Como retrata Luiz Antonio Simas, a cidade sofre com intempéries desde a sua fundação. Ainda assim, o episódio mais recente não foi qualquer: segundo o Alerta Rio – serviço meteorológico do Rio de Janeiro – das dez maiores precipitações pluviométricas acumuladas em 24 horas desde 1997, oito são de estações que monitoravam chuvas no dia 9 último. Trata-se, portanto, de um evento climático extremo, sem qualquer dúvida.

Os danos foram dramáticos. Dez pessoas morreram no próprio dia 9. Na sequência da semana, dois prédios caíram na comunidade da Muzema – controlada por milícia na zona oeste do Rio – levando consigo, até agora, 19 vidas (com ao menos 3 desaparecidos). Se contabilizarmos as 6 pessoas mortas nas chuvas de fevereiro, já são pelo menos 35 mortes decorrentes do binômio chuvas extremas x despreparo apenas esse ano. Estaria, portanto, a natureza contra nós? Por mais que seja uma hipótese tentadora, dadas as escolhas recentes dos eleitores, é preciso ir um pouco além.

Quando Lisboa sofreu com seu grande terremoto, em 1755, Voltaire escreveu o Poema sobre o desastre de Lisboa, perguntando-se por que a providência divina teria punido de forma tão devastadora a população lisboeta. Não é nada difícil o leitor imaginar administradores públicos repetindo esse mantra ainda hoje em dia. O filósofo Rousseau, então, respondeu a Voltaire negando a influência divina e lembrando das decisões bem humanas a respeito de políticas de uso do solo, por exemplo. Esse debate teve influências na direção tomada pelo Iluminismo. Embora o momento histórico requeira relembrar os valores iluministas, o que vale aqui é compreender a lição de Rousseau: um desastre nada tem de natural. Alguns eventos são claramente naturais – terremotos, chuvas extremas, tsunamis – mas a extensão de seus danos decorre de decisões de políticas públicas.

Comlurb trabalha na limpeza após 24 horas de chuvas intensas no bairro do Jardim Botânico, zona sul do Rio. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil.

Partindo dessa premissa, resolvi investigar a relação entre desastres naturais, chuvas extremas e provisão de bens públicos no estado do Rio de Janeiro, entre 2005 e 2015. Para isso, em primeiro lugar, foi preciso georreferenciar todos os deslizamentos, enxurradas e alagamentos ocorridos naquele período e para os quais os municípios declararam estado de calamidade pública ou situação de emergência e tiveram suas declarações reconhecidas pelo Ministério da Integração Regional. A Figura 1 apresenta os setores censitários – menor nível de desagregação geográfica publicado pelo IBGE – que sofreram desastres no período 2005-2015. Em seguida, foram utilizados dados de precipitação coletados de estações pluviométricas do INMET e do Alerta Rio.

Para poder mensurar a importância de bens públicos, foram coletadas informações do Censo Demográfico de 2010, onde é possível identificar o nível de infraestrutura urbana de cada setor censitário a partir do grau de cobertura de esgoto adequado, coleta de lixo, drenagem pluvial e pavimentação de ruas. Por fim, o projeto Mapbiomas apresenta dados de cobertura florestal, de modo que foi possível estimar o percentual de área de cada setor censitário coberto por florestas.

Figura 1 – Desastres hidrológicos por setor censitário, no Rio de Janeiro (2005-2015)

Fonte: Sant’Anna (2018).

A conclusão? Embora bastante óbvia aos ouvidos de quem conhece a realidade fluminense, os resultados do estudo mostram estatisticamente que:

(i) episódios de chuvas extremas têm maior probabilidade de causar desastres naturais;

(ii) esses efeitos são amortecidos quando há infraestrutura urbana de qualidade; e

(iii) cobertura florestal também atua como proteção em casos de grandes chuvas.

Esses efeitos estimados são bastante significativos. Senão vejamos: uma chuva como a do dia 9 de abril está associada a uma probabilidade de ocorrer um desastre de 8,1%, caso ocorra em um setor censitário com cobertura adequada de esgoto. Se a mesma chuva ocorrer em um setor censitário onde todos os domicílios têm seus esgotos jogados a céu aberto, essa probabilidade passa para 22,5%. Ou seja, a inadequação na infraestrutura de esgoto aumenta a probabilidade de desastre quando ocorre uma chuva acima de 300mm/dia em 2,77 vezes!

O Instituto Trata Brasil estimou os custos e benefícios associados a uma expansão do saneamento no estado do Rio de Janeiro. De acordo com esse estudo, a universalização da cobertura adequada de esgoto, com coleta e tratamento, teria um custo de cerca de R$ 26 bilhões em 20 anos, ou R$ 1,3 bilhão/ano entre 2015 e 2035. Embora a quantia seja alta, a conta por habitante do estado é bastante diminuta. Considerando que temos cerca de 4 milhões de habitantes no estado sem esgoto adequado, o valor por habitante beneficiado é de R$ 6.300 para todo o período, ou apenas R$ 320/ano.

Como mostra o Instituto Trata Brasil, os benefícios associados a melhorias de saúde, produtividade do trabalho e valorização imobiliária já seriam suficientes para pagar o custo da universalização. Porém, como vimos, ainda há o benefício adicional de nos ajudar a preparar para adaptação a mudanças climáticas, uma vez que eventos climáticos extremos tendem a ser mais recorrentes e mais fortes.

“Dos resultados desse estudo, é importante ter em mente que desastres nada têm de naturais, como nos ensinou Rousseau. A extensão dos danos decorrentes de eventos extremos da natureza depende fortemente da qualidade das políticas públicas.”

Os efeitos da existência de cobertura florestal também não são nada desprezíveis. Em uma chuva de magnitude similar à recente, um setor censitário sem florestas teria uma probabilidade de 9,3% de sofrer com deslizamentos, enxurradas ou alagamentos. Em comparação, um setor censitário com cobertura florestal de 20% de sua área teria probabilidade de 7,4% de sofrer um desastre hidrológico. Em suma, o setor censitário desmatado teria uma probabilidade 1,26 vezes maior de sofrer um desastre. Infraestrutura verde, pois, também é uma forma efetiva de adaptação a mudanças climáticas (prefeitos, atenção ao potencial do ICMS Ecológico!).

Dos resultados desse estudo, é importante ter em mente que desastres nada têm de naturais, como nos ensinou Rousseau. A extensão dos danos decorrentes de eventos extremos da natureza depende fortemente da qualidade das políticas públicas. Outro ponto a destacar: a ocorrência de desastres é extremamente desigual. Em um contexto de mudanças climáticas, o cenário é desalentador: pouco tem sido feito para a construção de cidades mais resilientes e, ao mesmo tempo, mais justas para seus cidadãos.

Um recado final, portanto, aos nossos governantes. Conservar o meio-ambiente (i) reduz o risco associados a eventos climáticos extremos, que serão cada vez mais frequentes; (ii) ajuda a combater a desigualdade, na medida em que populações mais pobres são mais vulneráveis; e (iii) é uma forma de oposição ao crime organizado, pois a presença de infraestrutura pública depende da presença do Estado. Em diversas dimensões, não há nenhuma contradição entre desenvolvimento e preservação do meio ambiente.

As opiniões e informações publicadas na área de colunas de ((o))eco são de responsabilidade de seus autores, e não do site. O espaço dos colunistas de ((o))eco busca garantir um debate diverso sobre conservação ambiental.

 

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