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Só pega empurrando

O brasileiro tem fama de ser alérgico a rotinas chatas. Mas, no ano do apagão, economizou energia, quando o governo o ameaçou com cortes de eletricidade.

10 de fevereiro de 2005 · 19 anos atrás

Se lembrarmos bem, o que não requer grandes esforços de memória, a última vez em que uma questão ambiental entrou sem pedir licença nos lares urbanos brasileiros foi quando o país se viu ameaçado pela falta de energia elétrica. Bastou um pequeno terrorismo do governo – e o estabelecimento de metas para economizar eletricidade – e começou uma verdadeira corrida em massa rumo à redução do consumo. Todo mundo que não roubava energia diretamente da rua ou não acreditava que garrafas PET cheias d’água enganavam o relógio de luz desligou geladeiras e gastou pequenas fortunas em lâmpadas fluorescentes. Passado o susto, tudo voltou a ser como era antes e a preocupação com o consumo, que nunca foi ambiental, deixou de existir.

A relação que o brasileiro tem hoje com o meio ambiente é muito parecida com a de um fiscal. O que fazemos, de modo geral, para ajudar a conservação é adaptar a nossa inata capacidade de apontar e reclamar as falhas alheias para nos queixarmos aos quatro ventos da sujeira das praias, da poluição visual e do desmatamento provocados pelas favelas. Sem fazer nada de concreto, esperamos que os “responsáveis” o façam. Tirando isso, a questão ambiental fica de fora da vida e das preocupações da maioria dos brasileiros.

Não é necessário dizer que não é assim em todos os lugares do mundo. Existem normas que trazem a preocupação ambiental para o dia-a-dia do cidadão comum. É o caso das leis que limitam a quantidade semanal de lixo domiciliar a que cada residência tem direito. Isso acontece em diversos cantões da Suíça e em muitos estados norte-americanos, por exemplo, onde as pessoas vêm aprendendo não apenas como compactar ao máximo o lixo que produzem, mas a diminuir a sua produção.

Na cidade canadense de Markham, a coleta de lixo domiciliar e comercial é regulada pela by-law 32-95, uma norma municipal que estabelece uma quantidade tão grande de deveres para os habitantes locais, que deve fazer com que estes pensem duas vezes antes de abrir uma lata de atum. Tudo é estritamente regulamentado e cada tipo de lixo tem uma maneira certa de ser colocada na calçada e um tipo de container especial, dentro do qual deve ser colocado.

A lista do que não será coletado é surpreendentemente extensa e detalhada, incluindo desde entulho e medicamentos até animais, vivos ou mortos. Também não podem ser misturados ao lixo quaisquer objetos afiados, tais como cacos de vidro ou porcelana, metais afiados ou qualquer coisa desta natureza. Seringas e agulhas também são inaceitáveis, assim como curativos, tintas, solventes, pilhas e baterias, até peças automotivas. Galhos de árvores só serão aceitos para coleta se tiverem, no máximo, 15 centímetros de diâmetro e separados em pilhas amarradas com fios não-metálicos.

A quantidade de lixo que cada residência joga fora é controlada por etiquetas que o Município distribui e que devem ser colocadas nos sacos e caixas de lixo toda semana, conforme estabelece a norma. Para que os habitantes não achem a lei rigorosa demais, existem alguns poucos dias por ano, durante a primavera e o outono, nos quais as etiquetas não são obrigatórias, deixando as pessoas livres para jogar fora quanto lixo quiserem, desde que esteja organizado como convém e não contenha nenhum material proibido, é claro.

Markham talvez seja um exemplo um tanto exagerado de controle e regulamentação, mas o tipo de norma adotado por lá poderia ser extremamente benéfico como um instrumento de conscientização ambiental. Fazer com que as pessoas tenham preocupações diárias com o problema, mesmo que o façam para evitar uma multa ou para conseguir algum benefício econômico, é um grande passo rumo a uma maior conscientização geral. Limitar a quantidade e o tipo de lixo domiciliar, o consumo individual de água e de energia elétrica não precisam esperar por alguma crise que torne iminente a necessidade de medidas extremas.

Não é preciso o risco de seca ou de apagão para que se ensine as pessoas a poupar água e energia. O problema é que o Brasil – tanto a população quanto o governo – está acostumado a funcionar na base do susto. Para controlarmos a produção de lixo, preferimos esperar que o presidente Lula apareça na TV, ameaçando com um cataclisma caso o consumo de creme de leite ou de refrigerantes não seja reduzido imediatamente, para controlarmos nossa produção de lixo, em vez de encararmos uma rotina meio chata de cuidados diários. E nisso o governo não poderia ser mais parecido conosco.

Os descrentes – como eu – pensarão que esse tipo de norma nunca vai pegar no Brasil. Primeiro, porque não dá voto. Logo, ninguém vai se meter a criá-la. Depois, porque, se vier a ser editada, o jeitinho brasileiro entrará em cena para garantir que ela seja ineficaz, jogando lixo no terreno baldio vizinho ou poupando energia com ajuda do “gato”. Pode ser. Mas existem aquelas pessoas que compraram as lâmpadas fluorescentes, desligaram a geladeira extra e, mesmo reclamando do governo Fernando Henrique e sem pensar em meio ambiente, fizeram o seu papel no ano do apagão. Cada vez que essas pessoas encontravam uma luz acesa e a apagavam, levavam sem saber a questão ambiental para a vida cotidiana.

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