Colunas

A floresta na ponta da língua

O périplo de Adam Gollner pelos pomares e mercados do mundo vale a leitura de Os Caçadores de Frutas. E o que ele extrai desses sabores sobre conservação é imperdível.

27 de fevereiro de 2009 · 15 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Os Caçadores de Frutas, do canadense Adam Leith Gollner, lembra uma loja de frutas, no esplendor do verão carioca. Farto, variado e saboroso. É, além disso, um livro repleto de gostos exóticos. E chegou tão depressa à efdição brasileira, poucos meses depois de seu lançamento em inglês, que parecia fora da estação quando apareceu este mês, já em português, nas livrarias do Rio de Janeiro.

Geralmente, essas coisas demoram a aparecer por aqui. E às vezes, quando vêm, estão meio passadas. Gollner conseguiu acelerar o transplante, creditando ao Brasil o desabrochar de sua obsessão, que o levou a viajar pelo mundo atrás de pomares, selvas, feiras-livres, aldeias, metrópoles e mercados onde pudesse abrir cascas, morder polpas e violar o segredo dos óleos essenciais de perfumes comestíveis. “Desde que estive no Brasil, sei que as frutas me tornam feliz, embora ainda esteja tentando entender por que”, ele avisa, logo na introdução.

Jardim Botânico

Diga-se de passagem que, na primeira frase do primeiro capítulo, contando a vinda ao Rio que o embriagaria para sempre de “abacaxi, açaí, ameixa, cupuaçu, graviola, maracujá, taperebá, uva, umbu”, ele visita o Jardim Botânico “pelas colunas jônicas da entrada”. Se fosse um livro sobre arquitetura, daria para fechá-lo ali mesmo – pois, fora as palmeiras imperiais, a fuste mais parecida com uma coluna jônica fica no fundo do arboreto, onde foi parar a fachada da antiga Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro joanino, um prédio do arquiteto Grandjean de Montigny desterrado pela febre de demolições que atacou o centro da cidade no século 20.

Pode-se também implicar com o zelo do tradutor que, na página 288, enxertou num parágrafo sobre frutas fotografadas com “Tri-X” uma nota de pé de página supérflua e equivocada, esclarecendo que “XXX” é o “código americano de classificação de filmes que contêm cenas de violência ou pornografia exageradas”. Ora, até as peras clicadas nas ruas do México pela Leica de Henri Cartier-Bresson devem lembrar  que Tri-X era a marca de filme em preto e branco fabricado pelo Kodak, que dominou o fotojornalismo antes da era digital.

Mas o resto do livro é pura festa. E esses detalhes não impedem que Gollner seja meio hipnótico, quando trata de seu tema com zelo de fanático. Fruta, para ele, é assunto que não acaba mais, pesquisado com voracidade insaciável e descrito com sensualidade quase lúbrica. Ele foi ao Havaí para conhecer a brasileiríssima jabuticaba, e tirou da experiência um parágrafo de dar água na boca: “Elas se parecem com uvas gigantes de cor púrpura escura. Como a fruta cresce diretamente do tronco da árvore, como alguma espécie de fungo doce, o melhor modo de comer uma é o ‘beijo da jabuticaba’. No Brasil, a garotada entra nos quintais de outras pessoas e as beija das árvores. O escritor Monteiro Lobato descreve o som de um beijo de jabuticaba como ploc, pluf, pituí”.

Ele consegue tornar verossímeis seus mais delirantes exageros, e não há maior elogio que se possa fazer a um autor. Com duas ou três citações, sugere que na origem genética da inteligência humana estaria a busca dos macacos por frutas, no labirinto das florestas ancestrais. “As frutas ajudaram-nos a evoluir”, Gollner garante.

As involuções da história humana também passam por elas: “As tribos nômades que saquearam Rona não viram necessidade de agricultura, e arrancaram as árvores. A esterilidade baixou sobre a Europa”. E, com ela, o atraso milenar, que “não terminaria antes de quarenta gerações de europeus terem sofrido, gravado seus destinos patéticos e desaparecido”, segundo o historiador William Manchester, que Gollner chamou para reforçar suas hostes.

Ritmo de aventura

Os Caçadores de Frutas é, ao mesmo tempo, enciclopédico como um tratado, rápido como uma grande reportagem internacional, prático como um manual de nutricionismo e divertido como um almanaque. Aprende-se com ele, por exemplo, que depois de Colombo ser recepcionado “com abacaxis em Guadalupe, em 1493, o abacaxi se tornou um símbolo da hospitalidade em postos de fronteira e torreões das casas na Europa, por causa da tradição aborígene de colocar abacaxis nas entradas para receber visitantes e proclamar hospitalidade”.

Não parece, mas essa informação melhora automaticamente o dia de quem mora na Gávea, no Rio de Janeiro, e passa a caminho de casa pelos portões de um chalé do século 19, coroados por acabaxis de cimento. Para quem prefere notícias amargas, não deve fazer mal nenhum descobrir que, segundo os exportadores entrevistados por Gollner, a maioria das frutas que brilha demais nos supermercados foi encerada com goma de laca ou de carnaúba.

Não faltam nos caminhos investigaivos de Gollner encontros com bilionários excêntricos, agricultores lunáticos, marqueteiros charlatães, fruteiros mafiosos e devotos sinceros, como o imperador Deocleciano, “que abdicou do reino para se dedicar a suas amadas árvores”, ou botânicos heróicos, como Alexey Fogel, que em 1993, aos 83 anos de idade, quando desabou de vez o império soviético, atravessou “as montanhas do Cáucaso com 226 amostras de frutas subtropicais”.

Ele nunca perde de vista que suas verdeiras protagonistas são as frutas, algumas tão raras que, para conhecê-las, Gollner se arrisca a violar regulamentos locais do outro lado da terra e a burlar a alfândega na volta para casa. “Nós morremos por elas, fazemos amor com elas e as usamos para contatar o divino”, diz ele. Mas estamos empurrando para as últimas do planeta as florestas, campos naturais e até desertos que geraram, desde tempos imemoriais, a infinita variedade de cheiros, cores e texturas.

E isso transforma Os Caçadores de Frutas num manifesto ambiental com açúcar, que desce macio pela goela de qualquer leitor, mas deixa o travo das perdas irremediáveis. Gollner vive atormentado pelos sabores inéditos que desaparecem nas florestas tropicais diariamente, antes que ele chegue a sequer prová-los. No fundo, é o que todo brasileiro precisava ouvir sobre as queimadas na Amazônia, que sempre lhes chegam como tragédias abstratas e distantes.

O remédio pode estar na loja de sucos da esquina, pela receita que deu certo com Golnner. É só pegar um extrato de Amazônia no copo e deixá-lo escorrer pela língua.

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