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Desafetação virou moda

Projetos de Lei em São Paulo querem transformar trechos de áreas de proteção integral em APAs. Trata-se de grave ameaça à preservação da Mata Atlântica.

22 de outubro de 2004 · 20 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

A exemplo de outros estados, capitaneados por Mato Grosso, a “desafetação” de áreas de Parques Estaduais virou moda e chegou à Mata Atlântica do estado de São Paulo. Dois Projetos de Lei tramitam na Assembléia Legislativa para a alteração dos limites do Parque Estadual de Jacupiranga e da Estação Ecológica de Juréia Itatins.

O Projeto de Lei nº 984, assinado pelo deputado Hamilton Pereira (PT), propõe, em seu artigo 1°, a exclusão de várias áreas do Parque Estadual. Elas são conhecidas por sua denominação local, mas não têm suas extensões precisamente delimitadas e mensuradas. No artigo 2°, diz que as partes suprimidas serão transformadas em Áreas de Proteção Ambiental (APA), de posse e domínio particulares, saindo do âmbito de controle absoluto do Estado. Em parte alguma do projeto está definido o total da área a ser excluída, mas seguramente ela é de milhares de hectares. O artigo 4° propõe, como compensação, a inclusão no Parque de uma área de mil hectares.

Localizado no sul do estado de São Paulo, o Parque Estadual de Jacupiranga foi criado em 1969 com 150 mil hectares. Ele faz parte de um continuum de áreas protegidas que abrange os Parques Estaduais Carlos Botelho, Intervales, Petar e Ilha do Cardoso, no estado de São Paulo, o Parque Nacional de Superagui e o Parque Estadual das Lauráceas, no Paraná, além de três APAs que as circundam e a Estação Ecológica de Juréia Itatins, a mesma para a qual há outra proposta de exclusão de áreas, feita pelo Projeto de Lei nº 613 de 2004. Toda essa região constitui a maior área de Mata Atlântica remanescente protegida do país.

O Parque Estadual de Jacupiranga apresenta ineditismos biológicos ao abranger desde florestas de baixas altitudes, na encosta da Serra do Mar, até formações mistas com araucárias. Devido a estas características, abriga várias espécies ameaçadas de extinção, muitas delas endêmicas da Mata Atlântica, como a canela-preta, o palmito-juçara, a araucária, a onça-pintada, a jaguatirica, o mico-leão da cara preta (recentemente descoberto pela ciência), o mono-carvoeiro, a jacutinga, o sabiá-cica, a harpia, a maria-leque, o papagaio-de-cara-roxa e as maiores populações do papagaio-de-peito-roxo conhecidas. No Parque de Jacupiranga possivelmente há também a ocorrência do caneleirinho-de-chapéu-preto, globalmente considerado ameaçado de extinção.

Este Parque, como quase todos do Brasil, vem sofrendo sérias ameaças, principalmente porque a rodovia BR-116 expôs a zona núcleo a inúmeras atividades degradadoras. As outras entradas permitem a extração ilegal de palmito e madeira, bem como a caça e a ocupação ilegais. Tudo isso propicia a fragmentação e a degradação dos remanescentes florestais da unidade de conservação, já que as invasões concentram-se às margens das rodovias e das estradas vicinais.

O Projeto de Lei que propõe o aborto desta área protegida é impreciso e superficial em vários aspectos. O mais flagrante é o fato de não mencionar um dado sequer sobre o montante da área a ser excluída. Mais: a informação sobre a densidade populacional é igualmente imprecisa e colocada com o único propósito de impressionar os deputados. Não se menciona ou releva que os municípios abrangidos pelo Parque Estadual de Jacupiranga são beneficiados com o ICMS ecológico e que, portanto, esta unidade de conservação já privilegia a área social e a coletividade. Tampouco são mencionados o benefício do turismo sustentável e do ecoturismo na região e o fato de que há um projeto de cerca de 10 milhões de dólares aprovado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) exatamente para a área do Vale do Ribeira, que facultará um desenvolvimento regional focado nas unidades de conservação, em especial nos Parques Estaduais, com o objetivo de aumentar o turismo, incluindo a adequada infra-estrutura e treinamento dos recursos humanos.

Considero a também ameaçada Estação Ecológica de Juréia Itatins a área protegida mais bela e impressionante do Brasil. Cortá-la ou diminui-la para dar lugar ao plantio de banana é dilapidar um patrimônio mundial. A única mudança admissível seria transformá-la em um Parque Estadual para facultar a visitação pública com maior facilidade.

Para garantir a proteção destas jóias, faz-se urgente a regularização fundiária e a compra por valores justos das propriedades particulares inseridas em seus limites. Mas jogar fora o pouco que resta de Mata Atlântica protegida é um crime de lesa-pátria.

Os participantes do IV Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, de onde escrevo este texto, assinaram uma Moção sobre o assunto no dia 21 de outubro de 2004. Ela pede o veto do governador aos projetos, caso eles sejam aprovados na Assembléia Legislativa. Oxalá seja uma data histórica para marcar a luta, que será vencida, pela a manutenção da integridade do Parque Estadual de Jacupiranga e da Estação Ecológica de Juréia Itatins, em plena Mata Atlântica, sabidamente o bioma mais ameaçado e em processo de extinção do país, e sua porção no estado de São Paulo, o mais rico de todos.

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