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Corações, ideias e braços para proteger o mico-leão preto

Aos 21 anos de Ipê, junto com a maioridade, há o reconhecimento que aprendemos com um mico, que mostrou os passos necessários à conservação.

20 de março de 2013 · 11 anos atrás
  • Suzana Padua

    Doutora em educação ambiental, presidente do IPÊ - Instituto de Pesquisas Ecológicas, fellow da Ashoka, líder Avina e Empreen...

Mico-leão preto. Foto: arquivo IPÊ-Rolex
Mico-leão preto. Foto: arquivo IPÊ-Rolex

O Programa Integrado de Conservação do Mico-leão Preto serviu como uma escola que deu origem ao IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, uma ONG que completa agora em março sua maioridade – 21 anos de existência. São mais de 40 projetos sendo desenvolvidos em diversas regiões do Brasil, mas todos com um gostinho das lições aprendidas com o mico-leão preto.

O primeiro movimento para salvar a espécie da extinção começou com o projeto de doutorado de Claudio Padua, meu marido. Sua ideia era proteger o mico-leão preto através de estudos científicos que levassem à integração das populações que se achavam isoladas em fragmentos florestais, criados pelo desmatamento dos últimos 50 anos no oeste do estado de São Paulo, região conhecida como Pontal do Paranapanema. Claudio pensava que se conhecesse bem a espécie, como vive e se multiplica, cumpriria sua missão. Mas ele acabou indo além: a fragmentação do habitat levou-o a ousar e propor translocações de indivíduos e grupos de micos de um fragmento para outro, de modo a evitar consanguinidade.

O objetivo era manter o fluxo gênico, já que os micos não transitam de uma mata a outra se falta uma conexão. Claudio tentou reintroduzir animais vindos de cativeiro, o que não deu muito certo. Primatas criados em jaulas não têm a malícia de perceber predadores ou de buscar os alimentos disponíveis na natureza.

Logo compreendeu que conservação é um processo difícil e exige uma visão ampla, interdisciplinar. Foi nesse ambiente de tentativas e erros que fui contagiada pela paixão pelo mico e as matas onde habita e, no final dos anos 80, comecei a trabalhar com educação ambiental. O objetivo era difundir, de forma leve, as informações que Claudio coletava na natureza para as comunidades que viviam perto das matas que ainda continham micos.

As escolas foram os primeiros alvos de atenção. Queria alcançar estudantes, professores e, quando possível, seus diretores. No início, os desafios eram grandes, pois havia diretores que viam educação ambiental como um pretexto do professor para sair da sala e não dar aula – um sinônimo de preguiçoso. Levou tempo, mas as coisas mudaram para melhor.

Aprendendo com o mico

Educação ambiental, no caso do mico-leão preto consistia, então, em contar histórias de como o mico vive em família, uns colaborando com os outros. Os filhos mais velhos ajudam na criação dos mais jovens, uma forma de aprenderem a cuidar da prole, conhecimento valioso quando formam suas próprias famílias. Pais e filhos mais velhos carregam os filhotes bebês para poupar mães (eu adoro esta parte) e dar-lhes tranquilidade para amamentar suas crias. Outro ponto que ainda perseguimos é informar sobre a Mata Atlântica de Interior, pois trata-se de um ecossistema tão rico quanto ameaçado, que contém espécies endêmicas (aquelas que só existem num determinado local), como é o caso do próprio mico-leão preto.

De educação em escolas, o programa ampliou sua abrangência e passou a promover atividades para toda a sociedade local. Gincanas, festivais de músicas, exposições de arte e de ciências são algumas das formas de atrair a atenção e repassar os valores da conservação. Há anos que o Pontal do Paranapanema sedia um evento de ciências que conta com a participação de muitos municípios. É um fórum de exposições de projetos feitos por alunos, com direito a premiações e destaques na mídia local.

Maria das Graças de Souza, a Gracinha, e uma equipe incansável organizam por meses a fio o evento, que representa a culminância, no ano letivo, das atividades de educação ambiental. Os diretores de escolas agora aderem de corpo e alma a essas iniciativas. Há anos, antes do início das atividades escolares, eles participam do planejamento das ações de suas escolas para o período letivo.

Trabalhando com os assentamentos

Viveiro comunitário em assentamento rural do Pontal do Paranapanema.
Viveiro comunitário em assentamento rural do Pontal do Paranapanema.

Entretanto, percebeu-se que pesquisa de campo e educação ambiental não eram o bastante para salvar o mico-leão preto e seu habitat. As pressões humanas cresciam e, em meados dos anos de 1990, houve a chegada maciça de famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Como defender o mico e as matas frente a uma questão social tão séria? Após reuniões com as lideranças do MST local, uma das linhas de colaboração possível foi identificada: o reflorestamento.

Junto a parceiros regionais e financiadores, foi assim que o Instituto IPÊ começou a restaurar áreas degradadas e conectar fragmentos de matas. Os dois objetivos principais eram facilitar o fluxo de populações de micos e de todas as demais espécies que não ousam sair das florestas e cruzar entre um pedaço de mata e outro; e melhorar aspectos sociais, ambientais e econômicos da vida das famílias locais.

Ao receberem um pedaço de terra seca e degradada, as chances dos assentados darem certo eram quase nulas. Era preciso pensar em alternativas de renda. Então, passamos a oferecer oficinas de viveiros, que ensinam a plantar árvores desde a coleta de sementes até a cuidadosa transferência para a terra, procurando “copiar” a natureza. Introduzimos também programas como o Café com Floresta, que dá ao pequeno proprietário de terra a chance de plantar árvores e colher, dos pés de café entremeados, um produto orgânico de qualidade para seu consumo ou para venda. Virou um exemplo de como esverdear a paisagem e melhorar as condições humanas de uma região das menos privilegiadas do estado de São Paulo.

Plantar árvores nativas passou a ser prioridade, e, em certos casos, não nativas também, como é o caso do programa Abraço Verde. A ideia é plantar uma faixa de proteção à volta dos fragmentos de matas originais, evitando o que se chama de efeito de borda. Nesse caso, eucaliptos juntamente com espécies nativas servem de escudo protetor para evitar sol demais, o calor do fogo no caso da plantação de cana-de-açúcar ou outros males das atividades realizadas ao redor. Além de proteger as matas, essas espécies representam uma fonte de renda ou de uso para as famílias de assentados que aderem à iniciativa.

Os corredores de matas exigiram e exigem empenho, dedicação e apoio de diversas fontes, em geral, difíceis de conquistar. Laury Cullen Jr. mostrou ter essas qualidades de sobra. Ele e uma turma dedicada e persistente conseguiram implementar o maior corredor de mata restaurada que se tem notícia: a ligação do Parque Estadual do Morro do Diabo a fragmentos de matas que abrigam micos-leões pretos, antas, onças e tantos outros animais que precisam dessas passagens para sobreviverem a longo prazo. Para apoiar o projeto, Laury primeiro conseguiu apoio do Programa Petrobras Ambiental (de 2004 a 2008), mais recentemente da Duke Energy e de proprietários de fazendas locais, além do BNDES – esses últimos ainda em vigor.

Para as mulheres assentadas da região passamos a oferecer oficinas de viveiros e de artesanato que retrata a natureza local. Camisetas, sacolas e outros itens fazem parte da produção, geram renda extra e motivam a conhecer e valorizar a natureza.

Camisetas retratando o mico-leão preto feitas pelas mulheres de assentamentos locais (designer: Mirian Ikeda)

A parte do governo

O programa Integrado de Conservação do Mico-leão Preto não estaria completo se não incluísse políticas públicas. Foi o caso da criação da Estação Ecológica Mico-Leão Preto, área protegida pelo ICMBio. Levou anos de tramitação pelos bastidores políticos até que José Pedro de Oliveira Costa, secretário de Biodiversidade e Florestas na época, acreditasse na causa, levando à frente a solicitação do IPÊ. A Estação Ecológica Mico-Leão Preto foi decretada em 2002. Ela é composta por quatro fragmentos, todos com micos habitando suas matas ou potencial para receber grupos novos para aumentar a população e melhorar as chances de sobrevivência da espécie.

Corredor de mata plantado. Pontal do Paranapanema. Foto: Laury Cullen Jr./Arquivo IPÊ
Corredor de mata plantado. Pontal do Paranapanema. Foto: Laury Cullen Jr./Arquivo IPÊ

Os programas contínuos de educação ambiental deram tão certo que acabaram se tornando política pública regional. Houve a adesão de professores e coordenadores, capacitação de docentes e gestores de ensino e a inclusão, pela Diretoria de Ensino Regional de Mirante do Paranapanema, da educação ambiental no conteúdo programático. Mara Ginez, por mais de 10 anos supervisora Regional de Ensino de Mirante do Paranapanema, abraçou a causa e nos ajudou a fazer da educação ambiental algo palpável. A educação ambiental ajuda a abrir portas e integrar segmentos sociais para questões socioambientais e de sustentabilidade. Por exemplo, hoje, em Teodoro Sampaio, entre as prioridades do planejamento municipal, inclui-se a educação ambiental.

As Eco-Negociações constituem outra forma do IPÊ envolver diferentes segmentos sociais na conservação. São fóruns participativos nos quais todos opinam de maneira igualitária sobre os problemas, potenciais e estratégias de resolvermos questões ao nosso alcance. Os próprios locais desenvolveram iniciativas inovadoras, passaram a se organizar e a colocar a mão na massa para transformar sonhos compartilhados em realidade.

Outra iniciativa de política pública é o que chamamos de “Mapa dos Sonhos”. Trata-se de um planejamento territorial que prevê a reconstrução das áreas a serem reflorestadas de uma maneira a favorecer gente e natureza. Os corredores de matas, ou as faixas de proteção que “abraçam” os fragmentos existentes ajudam a compor o cenário ideal. Na época em que foi criado, o Mapa dos Sonhos do Pontal do Paranapanema foi desenhado e aceito por lideranças e tomadores de decisão, inclusive o Ministério Público, com total apoio do promotor Nelson Bugalho.

Realizações

Quais as lições que a gente tira do Programa Integrado de Conservação do Mico-leão Preto? Primeiro, que não se deve desistir, mesmo que as marés e correntezas persistentes estejam contra nós. Segundo, como nós, há gente maluca, desejosa de mudar o mundo. No entanto, isso requer treinamento e capacitação de uma equipe. Por exemplo, Laury e Gracinha, citados acima, ou Cristiana Martins, mencionada no artigo anterior, ingressaram no programa como estagiários e hoje são profissionais com doutorados e mestrados. Agora, dão chance a recém-formados de também trilharem caminhos de excelência. Terceiro, levantar fundos para todas essas frentes é uma saga dura de seguir, mas fácil de abandonar. Porém, quem persiste acaba conseguindo e, hoje, os profissionais do IPÊ são mestres em obter recursos para seus projetos, pois conseguem mensurar o impacto social, ambiental e educacional do que fazem. Demonstram para os apoiadores resultados palpáveis. Quarto, o envolvimento e a participação ativa das comunidades locais são fundamentais para garantir que a conservação e questões socioambientais se tornem prioridades nas decisões.

Passados 21 anos, para nós, o mico ainda é um símbolo. É uma espécie que esperamos que continue a existir na natureza e que terá sempre o total apoio do IPÊ para que isso aconteça.

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