Reportagens

Urucu queima gás no meio da Amazônia

Monitoramento indica que é alto o volume de desperdício nos campos da Petrobras, operação reconhecida por causar pouco impacto na mata.

Daniel Santini · Fabíola Ortiz ·
28 de fevereiro de 2014 · 10 anos atrás

Foto: Divulgação/Governo Federal
Foto: Divulgação/Governo Federal

Uma clareira em meio à densa floresta evidencia a atividade industrial no município de Coari (AM), a cerca de 650 km a sudoeste de Manaus. Visto do céu, o rombo na Floresta Amazônica se interliga a ramificações, como se numa constelação.Trata-se da província de Urucu, a maior unidade produtora terrestre de gás natural do Brasil e a terceira maior em produção de barris de petróleo. Não há estradas que ligam Urucu a nenhuma cidade, nem mesmo à Coari, a mais próxima, situada a 250 km. A construção do pólo de extração na mata na década de 1980 foi por si só uma epopéia.

Além dos impactos decorrentes da derrubada da mata para construção e manutenção das unidades e da perfuração de poços no meio da Amazônia, um novo aspecto tem preocupado ambientalistas no Brasil e no exterior: a queima de gás natural, processo conhecido como flaring. Pouco discutido no país, o flaring representa desperdício de energia e libera CO2 (dióxido de carbono) na atmosfera, gás cuja acumulação agrava o efeito estufa. Só em 2013, o Brasil queimou 1,3 bilhão de m3 (4,6% do total) dos 28,2 bilhões de metros cúbicos (m3) de gás natural produzidos, conforme dados da ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis). A maior parte deste desperdício acontece nas plataformas de petróleo no mar, mas há um volume considerável de gás sendo queimado bem no meio da Amazônia.

A Petrobras tem adotado programas para reduzir as queimas e apresenta números que indicam melhora, mas a regularidade com que se queima gás na floresta ainda chama a atenção. O problema foi detectado em levantamento inédito feito pela organização não-governamental americana Skytruth, com base em monitoramento via satélite. De olho em pontos brilhantes provocados pelo flaring, os pesquisadores da Skytruth mapearam mais de 140 ocorrências de queimas no primeiro semestre de 2013, conforme é possível observar no mapa abaixo.

Pontos de flaring detectados pela Skytruth no Brasil no primeiro semestre de 2013. Após assistir ao vídeo, navegue pelo mapa utilizando os comandos. (É necessário plugin do Google Earth para visualizar – caso não tenha, clique aqui para instalar)



O flaring é constante na Amazônia e seu impacto no meio da floresta não tem sido tema de discussão ou estudos. Fontes ouvidas pela reportagem, inclusive um funcionário que já trabalhou em Urucu, afirmam que a queima acontece a uma distância razoável da floresta para que os impactos sejam minimizados. Porém, o calor da chama pode matar aves e insetos que cruzem o caminho.

Segundo o geólogo Cleveland M. Jones, professor da Faculdade de Geologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, as instalações em Urucu são projetadas para uma produção estimada, “o que exceder, se joga fora” pela dificuldade de absorver. “Queima-se caso a produção não seja regular e, como existem variações, é mais fácil queimar do que armazenar e comprimir”, afirmou. O excedente de produção é uma das razões para o flare. Outros motivos, segundo Jones, são a falta de interligação dos poços e as chamadas fugas, vazamentos das instalações.

“Isso depende da boa vontade da Petrobras. Tem como se controlar as fugas. Em uma instalação, se há 5% de fuga em vazamentos, não é de se estranhar. É comum, mas não é correto. Se as instalações são bem feitas e com boa manutenção, reduz-se ao mínimo as fugas”, disse Jones ao argumentar que o problema da fuga de gás tem um efeito ainda mais prejudicial que o flaring, pois existe metano em sua composição – mais nocivo que o gás carbônico produzido pela queima. “O flaring reduz em 22 vezes o efeito para o CO2. Já as fugas que, em geral ocorrem, são de 3 ou 5% de metano. Esse efeito pode ser muito significativo na pegada das emissões de gás de efeito estufa”.

E nas condições inóspitas da floresta, tudo pode ficar ainda mais difícil e oneroso. Na região onde está situada a província de Urucu, a umidade relativa do ar tem uma média anual de 82% com precipitações em torno de 2.350 mm por ano. Jones defende mais regulação e melhores práticas para a indústria, com o intuito de reduzir as fugas, que ainda por cima, lança no ar gases inflamáveis. “Não vejo uma saída imediata, essas instalações continuam muito isoladas e a boa vontade pode não estar lá”, disse.

Construção do gasoduto Urucu-Manaus. Foto: Divulgação/Governo Federal
Construção do gasoduto Urucu-Manaus. Foto: Divulgação/Governo Federal

São muitos poços produtores espalhados por uma vasta área na província de Urucu. “Para o gasoduto transportar o gás produzido dos campos para Manaus é preciso conectar os campos produtores à rede. Mas até tudo estar absolutamente dentro de uma política de zero queima, levando em conta os campos que ainda não estão interligados, vai levar tempo”, diz Jones. 

“Se ignora a questão do controle, é muito mais fácil e pragmático instalar um queimador do que instalar equipamentos para reinjeção, compressão, acumular o gás em tanques nas plataformas ou fazer a separação dos gases. Tudo isso é possível”, diz o geólogo. Ele afirma que a queima de gás já foi um “desastre” no Brasil: “Tínhamos queimas equivalentes às importações da Bolívia. Era um absurdo, em 2008 e 2009, algo como 70% do que importávamos da Bolívia a gente queimava em Urucu e na Bacia de Campos. Era um desperdício, um dano ambiental e os gases ficarão na atmosfera por muito tempo. Não tem justificativa”.

O flare é tido como um “dispositivo de segurança” em refinarias, plataformas e unidades de produção. “Caso haja algum surto nos equipamentos ou algum problema, o gás não pode ficar retido na tubulação e precisa escoá-lo de algum modo. Mas também não se pode lançá-lo na atmosfera, pois é prejudicial, não é respirável. O flare tem sempre uma chama acesa na ponta e quando o gás passa imediatamente entra em combustão e queima”, explica Welington José Ferreira, funcionário da Cenpes da Petrobras, uma unidade de pesquisa e desenvolvimento da empresa. Em 1999, ele integrou a equipe de engenharia da Petrobras responsável por realizar as obras de ampliação das plantas existentes na província de Urucu. Entre idas e vindas à floresta, o técnico em engenharia ajudou a instalar a unidade Polo Arara, que tinha como objetivo multiplicar a capacidade de geração de gás com a instalação de três grandes compressores, um maquinário de grande porte e ainda um integrado sistema de automação.

No tempo em que Ferreira esteve em Urucu, o flare era constante devido a testes feitos nos equipamentos – desde compressores, planta de processo, unidades para retirar enxofre, purificar e separar o óleo do gás. “Era uma época de teste ainda. Os descartes maiores de gás são consequência de paradas bruscas de equipamento ou na época do comissionamento em que se está ajustando as máquinas, os comandos e o software”, disse. Ele conta que existe uma condição biológica na região amazônica que favorece a existência de grande quantidade de óleo e gás. “Em perfurações de 120 metros de profundidade para buscar água, encontravam-se sedimentos orgânicos como se muito tempo atrás houvesse ali uma floresta soterrada. Era uma camada de terra sobre um extrato orgânico e pode ser que, tendo sido comprimido por milhões de anos, tenha gerado bolsões de gás”.

Desde a época dos testes que Ferreira presenciou até hoje o aproveitamento de gás natural no estado do Amazonas mais do que dobrou. A queima, porém, ainda é recorrente. Só em 2013, no meio da floresta, queimou-se ou ventilou-se 171 milhões de m3, de um total de 1,3 bilhão de m3 de gás natural que o Brasil desperdiçou.

Gasoduto Urucu-Manaus

A dificuldade de escoamento do gás natural extraído em Urucu é um dos pontos que dificulta seu aproveitamento. Para minimizar o problema, o Governo Federal providenciou a construção de um gasoduto de 663 km ligando Urucu à Manaus, uma megaobra que também provocou impactos na floresta. A construção começou em 2006, levou três anos e envolveu cerca de 9 mil trabalhadores. Inserida no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a obra custou R$ 4,5 bilhões e teve como principal objetivo o abastecimento das usinas Manauara, Tambaqui, Jaraqui, Aparecida, Mauá, Cristiano Rocha e Ponta Negra. Operado pela Transpetro, o gasoduto foi inaugurado em novembro de 2009 com a presença do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e da então ministra Dilma Rousseff (PT). O gás natural produzido no Amazonas passou a servir, principalmente, para a geração de energia elétrica em Manaus – antes as usinas eram termelétricas movidas a óleo combustível e a diesel, consumindo cerca de 1,3 bilhão de litros desses combustíveis. Menos poluente e mais barato, o gás natural passou a substituir os combustíveis líquidos com a perspectiva de reduzir a emissão de gases do efeito estufa.

A obra reduziu a queima de diesel e óleo nas cercanias de Manaus, mas não resolveu o problema do flaring na floresta. A porcentagem de gás queimado segue praticamente a mesma ns últimos anos, sem variações por conta da construção do gasoduto.

Apesar de o gasoduto já estar em operação, é preciso ainda haver mercado consumidor preparado para receber esta commodity. Segundo o diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura, Adriano Pires, “Até bem pouco tempo não havia o gasoduto para escoar o gás para Manaus. Agora que está pronto, ainda há o processo de substituição das térmicas em Manaus que consumiam óleo para que passem a consumir gás”. O primeiro mercado consumidor foram as térmicas, “mas será preciso haver um programa de incentivo ao uso de gás em Manaus como em automóveis, residências e indústrias. Assim, vai se achando mercado e tentando reduzir a queima, mas isso exige mais infraestrutura ”.

No Brasil, para acabar com a queima de gás, na avaliação de Pires, o grande problema é a infraestrutura de transporte ainda “muito precária”. “Temos poucos gasodutos que transportam no Brasil e, em termos de distribuição, há poucas distribuidoras que fazem um investimento alto para levar gás até o consumidor final”, diz.

Ferreira, o funcionário da Petrobras que trabalhou na região, diz que “hoje não existe interligação entre os gasodutos das regiões Norte e Nordeste e Nordeste-Sudeste. Com isso a solução encontrada pela Petrobras, operadora destes campos, foi a de injetar a maior parte do gás natural produzido no próprio reservatório do campo”. A maior parte do gás é reinjetado nos poços porque não há os meios de aproveitá-lo, assim “milhões de metros cúbicos são reinjetados nos poços diariamente, desde os primórdios da exploração”.

O isolamento faz com que Urucu seja comparada a uma plataforma de petróleo, só que esta cercada por mata e não água. Todo o transporte de pessoas e carga é feito por avião, helicóptero ou rio. Não há estradas. “Só se chega de avião saindo de Manaus para Urucu. Tem um aeroporto no meio da floresta e a viagem leva duas horas. De barco pelo Rio Urucu leva três dias. A maior parte dos trabalhadores ficava um período como se estivesse embarcada, quase como num regime de plataforma. Meu regime lá era de 14 dias”, lembra Ferreira.

A Petrobras, procurada pelo ((o))eco, declarou que a entrada em operação do gasoduto Urucu-Coari-Manaus, em 2009, não influenciou o aproveitamento de gás do campo “uma vez que, mesmo antes de sua implantação, todo o excedente não entregue ao mercado era reinjetado no próprio reservatório”. Através de sua assessoria de imprensa, a empresa disse que “para os próximos anos, há previsão de novos investimentos na revitalização do parque de compressores de Urucu, o que aumentará ainda mais o aproveitamento de gás da região”.

História do petróleo na Amazônia

O marco da exploração petrolífera na Amazônia foi em outubro de 1986, quando a Petrobras descobriu petróleo em quantidades comerciais na área do Rio Urucu, na Bacia do Solimões.

Os esforços iniciais para se encontrar petróleo na região amazônica já datavam de 1900. O primeiro poço em Coari foi perfurado em 1917.

Geologicamente, a área está inserida na bacia sedimentar do Rio Solimões que se estende por cerca de 600.000 Km2 no Amazonas, dos quais 450.000 Km2 são prospectáveis.

Até 1999, a Petrobras tinha 58 poços produtores e, segundo com dados da ANP de 2011, existem 90 poços perfurados em Urucu.

Em pouco mais de 27 anos de operação, são retirados diariamente de Urucu 11 milhões de metros cúbicos de gás natural e 54 mil barris de petróleo. Esse volume de produção faz do Amazonas o terceiro maior produtor nacional em barris de óleo equivalente, e do município de Coari, o maior produtor terrestre de gás natural.

O petróleo de Urucu é de alta qualidade, sendo o mais leve entre os óleos processados nas refinarias que podem gerar produtos como gasolina, nafta petroquímica, óleo diesel e GLP (gás de cozinha).

A produção é suficiente para abastecer os estados do Pará, Amazonas, Rondônia, Maranhão, Tocantins, Acre, Amapá e parte do Nordeste.

Em Urucu, existem 740 quilômetros de dutos – dos quais 600 km são terrestres e outros 140 km submersos.

Em fevereiro de 2012, a Petrobras anunciou a descoberta de uma nova acumulação de petróleo e gás na Bacia do Solimões. A mais de 3 mil metros, os testes indicaram capacidade de 1.400 barris de óleo de boa qualidade e 45 mil metros cúbicos de gás por dia.

 

 

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  • Daniel Santini

    Responsável pela plataforma ((o)) eco Data. Especialista em jornalismo internacional, foi um dos organizadores da expedição c...

  • Fabíola Ortiz

    Jornalista e historiadora. Nascida no Rio, cobre temas de desenvolvimento sustentável. Radicada na Alemanha.

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Comentários 2

  1. jose orlando bento diz:

    os nossos cientistas já sabem, depois,que acabar esse bem finito, o que acontecerá com a floresta. ?

    professor José orlando bento