Reportagens

A floresta solitária

Perto de Piracicaba, interior de São Paulo, 2 mil e 200 hectares ocupados por Mata Atlântica de planalto guardam praticamente tudo o que sobrou da paisagem original da região.

João Teixeira da Costa · Manoel Francisco Brito ·
28 de março de 2007 · 17 anos atrás

A 60 quilômetros de Piracicaba, no interior de São Paulo, há uma área de mata cuja importância mal cabe em seus 2 mil e 200 hectares de extensão. Pelas suas picadas, desde a década de 50, andou gente com credenciais científicas e conservacionistas impecáveis. Os primatólogos Karen Strier e Russel Mitermeyer estiveram lá para observar seus muriquis. O ornitólogo Edwin Willis foi atrás de aves como o raríssimo tangará de chifre, com seu corpo negro arrematado por um esplendoroso topete vermelho. Paulo Nogueira Neto, um dos pais do ambientalismo brasileiro, ainda frequenta o lugar para lembrar como era a paisagem original daquela região. 

A floresta virou uma espécie de meca da ciência e da conservação pela sua raridade, uma atribuição que tem um pouco a ver com sua biologia e muito com sua escassez. Há 70 anos, ela era apenas um naco insignificante da Mata Atlântica de planalto. De lá para cá, tornou-se praticamente seu único remanescente florestal que não está encarapitado no cume de um morro entre os rios Piracicaba e Tietê. Esse feito se deve a três gerações de uma única família. Em especial a José Carlos, um dos sete filhos do patriarca Carlos Leôncio (Nhô Nhô) Magalhães, que fundou por lá, nas prrimeiras décadas do século XX, uma fazenda de 26 mil hectares, a Barreiro Rico.

Caçador exímio na juventude e mateiro dos bons, ele tornou-se um profundo estudioso de nossas aves. Helmut Sick, um dos bambas do assunto, demonstrou a admiração pelo seu trabalho citando-o diversas vezes em sua obra-prima, Ornitologia Brasileira. José Carlos ajudou a mapear a ecologia de várias espécies e foi pioneiro na gravação e estudo de seus pios. Sua coleção de espécimens da avifauna brasileira está abrigada, pela sua importância, no Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, um dos principais das Américas. Foi José Carlos que decidiu manter a mata que havia restado naquelas terras protegida. Foi ele também que a abriu à curiosidade dos cientistas.

Pressões

A iniciativa rendeu quase uma centena de estudos sobre a vida de mamíferos, insetos e aves da Mata Atlântica, alguns deles já extintos na região. O trabalho pioneiro de José Carlos ganhou corpo a partir dos anos 50. Em 1956, sabendo que o fechamento das comportas de Barra Bonita levaria à inundação de quase cinco mil hectares da fazenda e à destruição das matas ribeirinhas ao longo do Piracicaba, ele deu início a um projeto pioneiro de documentação. Graças aos seus esforços, biólogos do governo do estado de São Paulo coletaram 178 espécies de aves para auxiliar na medição posterior do impacto ambiental da represa.

Através das pesquisas do ornitólogo Edwin O. Willis na década de 70 e das observações posteriores do próprio José Carlos, ficou evidente que além da represa, outro perigo rondava o seu resto de mata, a pressão da caça. “Essa pressão sempre existiu. Ela levou a onça pintada daqui de uma vez por todas por volta de 1910”, diz o segundo Carlos Leôncio dessa história, filho de José Carlos e membro da geração de primos que ainda trabalham para manter a mata. A anta ele viu em pessoa sumir em meados dos anos 50, quando seu pai decidiu que manteria os 2 mil e 200 hectares de mata intactos. “Era uma animal bobo, manso. Foi aniquilado”, conta. “Os barcos desciam os rios fuzilando as antas por puro divertimento”.

Entre as aves, as que mais sofreram com a caça e captura foram o macuco e o curió. O pior impacto para elas, no entanto, veio com o alagamento do reservatório da usina em 1962. Treze espécies – por exemplo, o araçari-banana, o tucano-de-bico-verde e a araponga – não toleraram a queda da oferta de frutas e sumiram da mata. Mas outras aves amantes da água, como as garças, apareceram. Veio até marreco da Patagônia, junto com seis espécies de patos até então inéditas na área. De acordo com os levantamentos que José Carlos pai começou a fazer há 50 anos sobre as aves da sua floresta, 351 espécies foram avistadas dentro dela. Trezentas e trinta e oito continuam frequentando suas árvores.

Carlos Leôncio conta que a última grande derrubada no terreno original da Barreiro Rico, já então dividida por cinco herdeiros de Nhô Nhô Magalhães, aconteceu em 1972. Mas a paisagem local continuou a sofrer modificações. As áreas urbanas de Piracicaba e Anhembi cresceram muito e seu clarão passou a dominar o horizonte noturno da região. Esse processo, de certo modo, ajudou a aumentar a pressão sobre os 2 mil e 200 hectares da floresta preservada. “Ela tem sofrido muito. A estrada que corta ela foi duplicada para dar vazão ao tráfego de caminhões que transportam cana”, diz. “E isso contribuiu para fragilizar suas bordas. Além disso, ela sofre invasões, principalmente de caçadores e, eventualmente, de madeireiros”.

Visitação

O filho seguiu o exemplo do pai. Simpático, muito bem educado e magro feito um dos milhões de pés de cana que hoje dominam o cenário rural ao redor de Piracicaba, ele virou um estudioso da conservação e mais especificamente da floresta de sua família. Fala dela não raro com a autoridade de um biólogo. “Esse remanescente é de vegetação semicaducifólia, em que parte das árvores perde as folhas no inverno, e era típica da altitude em que estamos, em torno dos 500 metros”, ensina. Quando entra na mata, no entanto, fica claro que a sua intimidade com ela vai muito além dos livros. É sobretudo familiar.

“Da borda até uns 1 mil e 500 metros à frente, nasce um cerradão”, diz. “Tem árvore alta, mas o tronco é fino. A vegetação é mais esparsa. O solo aqui é arenoso”. Carlos Leôncio sabe exatamente o ponto em que a floresta começa a encorpar. Mostra árvores mais grossas ao longo do caminho até ver um tronco de peroba, árvore nobre naquele ecosssistema. “Agora estamos no matão”, anuncia. A fauna do local ainda é razoavelmente diversa. Tem mamíferos (paca, queixadas), cobras ( jibóia, cascavél e coral) e as centenas de aves. Mas elas andam quietas nessa época do ano. “Estão na muda, trocando as penas para o inverno”, explica.

José Carlos, a quem essa bicharada deve muito por ainda ter onde morar no interior de São Paulo, morreu em 2003. O seu quinhão da Barreiro Rico foi dividido entre os cinco filhos. Cada um levou um pedaço razoável da floresta, cerca de 160 hectares, incluídos nos 800 hectares recebidos de herança. O resto da floresta se espalha por outras 8 fazendas, 6 delas ainda em mãos de descendentes da família Magalhães. E a boa notícia é que Carlos Leôncio decidiu abrir o lugar a visitantes que não têm credenciais científicas, mas carregam no sangue a mesma paixão do pai por árvores e por aves. Por enquanto, a maior parte das pessoas que se aventuraram a visitar o local são estrangeiros levados para lá por guias especializados.

Eles parecem ter mais consciência do que é o privilégio de poder entrar numa área no interior de São Paulo onde espécies nobres de árvores, como a peroba, ainda podem crescer sem estar sob risco iminente de serem derrubadas. Carlos Leôncio torce para que, um dia, essa equação se inverta e a frequência naquela floresta seja na maior parte de brasileiros. Se você, leitor, quiser contribuir para essa mudança e visitar um pedacinho do que sobrou da paisagem original do país, a sua viagem pode começar pela internet. No site de sua fazenda, Carlos Leôncio informa tintim por tintim o que se deve fazer para chegar até a sua solitária floresta.

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Comentários 1

  1. José Luiz de Sanctis diz:

    A família Magalhães é a prova de que o caçador consciente é o maior interessado na conservação. Não fossem caçadores essa mata seria um imenso canavial hoje.