Reportagens

Por trás de uma emboscada

Repórter visita Caracaraí, em Roraima, dias depois de emboscada contra fiscais do Ibama na região e ouve relatos de agressões cometidas durante flagrantes de pesca de tartaruga.

Tetê Oliveira ·
7 de dezembro de 2006 · 17 anos atrás

À primeira vista, Caracaraí é uma cidade pacata do interior de Roraima: moradores sentados em cadeiras de balanço nas calçadas de casas e lojas no final da tarde, ciclistas passeando por ruas largas, crianças correndo em praças e alamedas. Mas a emboscada de traficantes de tartarugas contra uma equipe do Ibama no dia 14 de novembro trouxe à tona denúncias, não oficializadas, de abuso de autoridade e violência contra tartarugueiros e pescadores no Baixo Rio Branco. “Aquilo foi vingança. Até pouco tempo, o pessoal do Ibama agia de forma brusca, grosseira. O traficante se rendia e, em vez de algemar e prender, os fiscais batiam, açoitavam e colocavam o bicho-de-casco sobre os tartarugueiros para arranhar eles. Eu conheço gente que ficou deformada. Se uma pessoa dessas encontrar de novo com a fiscalização e tiver uma arma, você acha que vai reagir como?”, diz, sem meias palavras, Esaque Ferreira Gomes, vice-presidente da Associação de Pescadores de Caracaraí, entidade que reúne cerca de 400 associados.

Para ele, o autor dos disparos contra os fiscais e profissionais contratados pelo Ibama foi uma das vítimas dessas humilhações e maus tratos. “Ele viu a lancha do Ibama e decidiu se vingar. O pessoal deu azar. Ficamos irados porque quem morreu foi um cidadão comum, que não tinha nada a ver com a história. Se tivesse sido um fiscal, ninguém ia lamentar”, diz. Segundo relatos, na véspera da emboscada corriam boatos de que o Ibama preparava uma ação junto com a Polícia Federal na região.

Esaque afirma que a violência não atinge só os traficantes de tartaruga. “Um pescador de mais de 65 anos foi pego com três tartarugas vivas e um pirarucu morto. O pessoal da fiscalização do Ibama quebrou a canoa dele, pegou o rancho e os equipamentos e o deixou de cuecas numa ilha. O homem só saiu de lá seis dias depois. Se você quiser, pode ir lá falar com ele, é o Miguel Paulino”. Outro pescador teria tido seu isopor e seis tralhas apreendidas por fiscais do Femact (Fundação Estadual de Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia) no rio Água Boa, numa área de pesca permitida.

Apesar de Miguel Paulino estar há dias pescando no Baixo Rio Branco, a agressão foi confirmada junto à família com a qual ele mora. “A história saiu na Folha. Até pouco tempo meu pai guardava o recorte do jornal”, diz uma das filhas do dono da casa. Ela dá mais um detalhe: a agressão física teria sido cometida por um policial militar, que acompanhava os fiscais do Ibama, e acabou transferido após o episódio. Um empresário da região que não quis se identificar confirma que há dois anos houve conflitos entre policiais militares que acompanhavam equipes do Ibama e a população. E que os incidentes levaram o Ibama a preferir a companhia da Polícia Federal e do Exército em campo.

O vice-presidente da Associação de Pescadores conta que na época, ele e Miguel procuraram o então chefe do escritório do Ibama em Caracaraí, Raimundo Nonato Carvalho Bezerra, mais conhecido por Total, mas não formalizaram a denúncia por escrito. Tampouco registraram queixa na delegacia policial da cidade. “Preferimos conversar e pedir que a abordagem dos fiscais fosse menos violenta. Sabemos que se a gente cometer um crime, eles têm direito de multar e prender a gente. Mas não adiantou nada. Só depois da emboscada é que melhorou um pouco.”

Num primeiro momento, ao ser perguntado sobre a denúncia, Raimundo Nonato negou ter tido a conversa com Esaque e Miguel.”Não lembro de nada. Toda denúncia deve ser feita por escrito. Constantemente, eles vêm com histórias incabíveis. Nós, fiscais, agimos de acordo com os procedimentos do Ibama. Não somos treinados para agir de forma violenta”, diz ele, que atualmente exerce o cargo de técnico administrativo (fiscal) no escritório. Raimundo afirma que os fiscais são mal vistos exatamente porque agem dentro da lei e multam os infratores. E que nas reuniões com os pescadores sempre recomenda que as denúncias, se houver, sejam formalizadas.

“Não há qualquer denúncia por escrito. Ficam só essas conversas por aí”, acrescenta o técnico ambiental Valdir Ribeiro da Cruz. Ele e Raimundo são os únicos fiscais do Ibama em Caracaraí. Quando há operações de fiscalização, a equipe geralmente inclui profissionais lotados em Boa Vista.

Os dois ressaltam que, na maioria das vezes, os tartarugueiros se embrenham no mato quando percebem a chegada da fiscalização. E deixam para trás roupas, barcos, equipamentos e tudo mais. “Eles ficam pescando de short, cuecas mesmo”, dizem. Outra questão levantada por Raimundo e Valdir é que há ações coordenadas por profissionais da Femact, e não pelo Ibama, na região.

Diante da insistência da repórter sobre os procedimentos da fiscalização, Raimundo Nonato afirmou que a legislação determina que, como funcionário público, ele deve ter a autorização da superintendência do Ibama para dar entrevistas. E que poderia se negar a falar, mas preferia esclarecer o assunto.

Com mais um pouco de conversa, na qual soube que o vice-presidente da Associação de Pescadores não citou nominalmente os fiscais que extrapolariam nas suas ações, Raimundo Nonato voltou atrás. Ele lembrou do encontro com Esaque e Miguel. Segundo ele, a denúncia foi levada ao conhecimento do Departamento de Fiscalização em Boa Vista, mas nada pôde ser feito. “Não tínhamos os nomes dos fiscais acusados nem uma denúncia por escrito.”

Ele chegou a admitir o uso da violência em algumas operações: “Há casos em que os traficantes desacatam ou agridem o policial que acompanha a equipe, e aí ele reage com mais rigor”. Também haveria a necessidade de um “arrocho” para os tartarugueiros confessarem o crime quando eles são pegos em flagrante e insistem que são inocentes.

Tratamento diferenciado

Outra reclamação dos pescadores é o tratamento diferenciado a infratores de colarinho branco. Um homem foi flagrado com armas importadas para caça, aves abatidas e tartarugas vivas em sua lancha no Baixo Rio Branco há uns dois meses. Raimundo Nonato participou do flagrante, junto a agentes da Polícia Federal. O infrator era parente de um desembargador no Amazonas e bastou um telefonema para que um helicóptero com quatro advogados descesse em Santa Maria, às margens do rio. A fiscalização aplicou a multa e apreendeu o material, mas o infrator não foi preso. “Houve um pequeno vacilo e ele foi embora no helicóptero. Os advogados garantiram a presença dele em juízo ao ser convocado”, conta Raimundo, acrescentando que os fiscais não têm autoridade para efetuar uma prisão, só os policiais.

Com a experiência de mais de 30 anos como pescador – embora hoje pouco se aventure no Baixo Rio Branco, porque ocupa um cargo na prefeitura local -, Esaque Gomes afirma que os pescadores convivem com os tartarugueiros, mas não são amigos. “Não podemos denunciar, porque também corremos risco de vida. Os traficantes prejudicam nós. Eles não pegam as tartarugas só na desova, porque se fosse assim a gente ainda tinha muitas aqui. Eles usam um capa-saco (rede especial para pegar o animal) que mede 300m de comprimento e 12m de altura. Ali arrastam tudo: morre peixe-boi, pirarucu, piraíba… Jogam fora, porque não têm gelo para carregar e a gente fica sem peixe”.

Segundo Esaque, muitos tartarugueiros são aliciados pelo tráfico nas próprias comunidades ribeirinhas do Rio Branco. “Os traficantes grandes vêm de Manaus e contratam gente de Cachoeirinha, Lago Grande, Caicumbi e Sacaí. Uma vez, um deles pescou a noite toda ao lado do meu barco e pegou 56 tartarugas. Perguntei quanto ele recebia pelo serviço e ele falou que os traficantes pagavam R$ 40,00 pelos bichos maiores e R$ 15,00 pelos menores”. Em Manaus e Belém, a tartaruga chega a ser vendida por até R$ 500,00. “Já ouvi falar que eles exportam pro Japão, onde pagam R$ 800,00 pelo quilo”, afirma Esaque.

Num ponto, pelo menos, os fiscais do Ibama e os pescadores concordam. Para coibir a ação dos traficantes de tartarugas, uma ação mais eficaz do que as fiscalizações esporádicas no rio seria a instalação de uma guarita na boca do Rio Branco, reunindo agentes do Ibama e da Polícia Federal. “Lá ficam as lanchas grandes, de 12 a 15 metros, usadas pelos traficantes que vêm de Manaus. No rio mesmo só entram as voadeiras menores”, conta Esaque.

Apesar da aparente fácil solução, os traficantes podem ficar tranqüilos. O Ibama de Roraima não tem recursos para a construção da guarita – nem mesmo para novas operações de fiscalização no Baixo Rio Branco até o final do ano. “Poucos dias antes da emboscada, o pessoal de Brasília recolheu todos os recursos da superintendência de Roraima. Agora estamos sem caixa para qualquer ação e justamente no início do verão, quando as águas do rio baixam e precisamos agir mais. Nossa superintendente está lutando para recuperar esse dinheiro”, diz o fiscal Valdir Cruz.

*Tetê Oliveira é jornalista freelancer em vaigem pela Amazônia.

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