Análises

Festival de caviar mexicano atrai convidados gigantes

Os tubarões-baleia se agregam em quantidade nunca vistas em outro lugar para um banquete deles e dos "convidados", como as raias manta.

Fabio Olmos ·
24 de setembro de 2013 · 11 anos atrás

 Fotos:O tubarão-baleia é a maior espécie do grupo, mas se alimenta de plânton e pequenos peixes. Foto: Fabio Olmos | Clique para ampliar
Fotos:O tubarão-baleia é a maior espécie do grupo, mas se alimenta de plânton e pequenos peixes. Foto: Fabio Olmos | Clique para ampliar

Tubarões-baleia (Rhinchodon typus) são os maiores “peixes”. Na verdade, tubarões e raias são parentes mais distantes de peixes ósseos como bagres, piranhas e bacalhaus do que uma galinha de um crocodilo. Eles têm um comprimento máximo confirmado de 12,85 m e pesam até 21,5 toneladas, embora haja histórias de bichos chegando a 23 metros e peso superior a 30 toneladas. Tubarões crescem durante toda a vida e como os R. typus vivem pelo menos 70 anos, um gigante verdadeiro também é um venerável ancião.

Estes espetaculares gigantes de pele pintada (seu nome em várias línguas comparam as pintas a estrelas) ocorrem em águas tropicais e subtropicais de todo o mundo. Alimentam-se de plâncton, de minúsculos crustáceos a ovos e larvas de peixes e corais, ou pequenos peixes. O alimento dos tubarões-baleia tende a ocorrer em manchas localizadas no espaço e tempo que os tubas rastreiam ao longo de migrações de milhares de quilômetros.


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Na maioria dos anos (2007 foi uma exceção), em meados do mês de julho, bonitos-pintados Euthynnus alletteratus, uma espécie abundante no Atlântico tropical, desovam nas águas quentes ao norte da Isla Mujeres, próximo à famosa Cancun, tão procurada por turistas brasileiros. Bonitos são prolíficos, cada fêmea liberando 1,75 milhão de ovos ao longo da temporada reprodutiva. Cada ovo com uma gota de óleo altamente calórico que faz os ovos fertilizados boiarem na superfície. Este nutritivo caviar atrai um grupo muito especial de predadores.

Tubarões-baleia vindos de diferentes partes do Atlântico se reúnem no Afuera de Isla Mujeres para este banquete especial. E não são poucos. Em um único dia pode haver 420 tubarões em uma área de 18 km2, e essa agregação, a maior em do mundo, continua durante poucas semanas entre o fim de julho e agosto, proporcionando um dos grandes espetáculos da vida marinha no Atlântico.

O interessante é que parece ser um fenômeno recente e só foi reportado pelos pescadores locais em 2002, o que contrasta com outras agregações conhecidas desde muito tempo como a da ilha Holbox (também no México, que criou uma Reserva de la Biosfera Tiburón Ballena por causa disso), Gladden Spit, em Belize, e Ningaloo, na Austrália.

A agregação do Afuera é monitorada pelo Proyecto Domino, do equivalente mexicano ao nosso ICMBio, em colaboração com pesquisadores de várias instituições e países. Claro, o espetáculo da agregação da nata da megafauna marinha atrai turistas.

Durante a temporada dos tubarões empresas baseadas em Cancun e Isla Mujeres enviam cerca de 70 barcos por dia, cada um com 8 a 12 pessoas, para o Afuera. Isso significa somas nada desprezíveis entrando para a economia local graças aos tubarões e ao desejo das pessoas de estarem próximas de uma criatura que pode ser descrita como nada menos que estupenda.

Eu sempre quis ver tubarões-baleia, uma espécie incomum no Brasil, onde parecem mais freqüentes no entorno do Arquipélago de São Pedro e São Paulo (quando vão criar uma reserva marinha lá ?), embora já tenham sido observados bem mais perto da costa, como no Parque Estadual Marinho da Laje de Santos, em São Paulo (uma fêmea grávida enorme).

Cogitei visitar diferentes lugares, mas quando descobri sobre o Afuera eu soube que esse era o lugar a ir e depois de pesquisar decidi comprar nossas vagas em um tour com uma empresa especializada, a Big Fish Expeditions que me daria o tempo e a qualidade da experiência que eu desejava com os tubarões.

Existem muitas empresas que levam turistas para ver tubarões-baleia no Afuera, mas digamos que entre ficar na água quatro ou cinco horas por dia ao longo de quatro dias e um bate-volta que ocupa uma manhã há uma boa diferença e eu não engulo o tipo de turismo fast-food que dominou o mundo. Há coisas que devem ser degustadas.

Não só aprovei como tive um enorme bônus. Todos os dias embarcávamos na rápida Preziza, comandada pelo safo Gabriel da operadora local Solo Buceo e chegávamos na agregação do Afuera ao redor as 8h, retornando para Isla Mujeres entre 12h30 e 14h00. Chegar no Afuera antes das massas permite apreciar o espetáculo de dezenas de tubarões-baleia medindo entre 5 e 8 metros (longe do tamanho máximo) passeando para lá e para cá na superfície, parte da boca acima da linha da água, enquanto filtram os boiantes ovos de bonito.

Segundo me contaram, este ano, pela primeira vez, havia quase tantas mantas-oceânicas Manta birostris e mantas-caribenhas (uma espécie ainda não descrita) quanto tubarões-baleia no Afuera. Também filtradoras de plâncton, as mantas são as maiores raias, chegando a envergaduras superiores de até 7 metros. As que vimos no Afuera tinham entre 3 e 4 metros, e parecia haver muitos bichos jovens.

Tubarões-baleia nadam na superfície, filtrando os ovos de bonitos-pintados que flutuam. Foto: Fabio Olmos | Clique para ampliar
Tubarões-baleia nadam na superfície, filtrando os ovos de bonitos-pintados que flutuam. Foto: Fabio Olmos | Clique para ampliar

Ao que se saiba, aqui no Brasil as mantas ocorrem regularmente apenas no litoral entre o norte do Paraná e o Rio de Janeiro, com destaque para o paulista Parque Estadual Marinho da Laje de Santos, onde são a grande atração para os mergulhadores e há um programa de estudo das mantas oceânicas e as ilhas próximas de Queimada Grande (quando vão criar uma área protegida marinha lá ?) e Alcatrazes (quando o governo federal irá se coçar e criar o parque nacional marinho tão esperado?).

Encontrar estes gigantes participando da festa do Afuera foi um presente muito especial por que eu nunca havia estado na água com estes bichos espetaculares.

Era interessante notar como as mantas (enormes mas menores que os tubarões) permaneciam a poucos metros de profundidade quando havia muitos tubarões filtrando a superfície, mas subiam e começavam a nadar com o dorso exposto quando, já de barriga cheia, o número de tubarões diminuía com o passar do tempo. Isso acontecia no meio do dia e, então, algumas mantas, por razões que só elas sabem, saltavam fora da água como que querendo voar, algo bem impressionante de se ver.

Ao chegar no Afuera nosso grupo procurava um ponto com um bom número de tubarões e mantas na periferia da concentração de embarcações de turismo, para evitar a muvuca humana. Devidamente equipados com equipamento para snorkelling, wetsuit (obrigatório, as regras mandam que você deve ter flutuabilidade positiva) e diversos tipos de câmeras, caíamos na água. Os tubarões são numerosos e tendem a nadar circulando a mesma área, então é uma questão de esperar e em minutos um ou mais tubarões nadarão diretamente na sua direção e você verá a enorme e bela forma do Rhinchodon como um submarino ou nave espacial (mais de um autor de sci-fi se inspirou neles) chegando cada vez mais perto.

A maioria dos tubas-baleia desvia quando nota um primata estranhamente vestido no seu caminho e passa ao lado fazendo marola, mas alguns fazem valer a norma usada pelos caminhoneiros brasileiros (provavelmente a profissão que mais mata, se excluirmos as ocupações relacionadas a atividades criminosas) e fazem seu tamanho valer. Fui atropelado umas quatro vezes, o que na verdade foi divertido e permitiu sentir a textura da pele do tubarão, surpreendentemente macia, ao contrário da que cobre as mantas, uma pele bem áspera (uma deixou que eu tocasse sua barriga).

Os tubarões-baleia te olham nos olhos quando passam por você, especialmente nas quase-colisões. Eles parecem dizer “viu como sou educado e não bati em você?”. Quando eles já pararam de filtrar alimento e mergulham abaixo de você para não trombar, parecem definitivamente contrariados. Os tubarões no Afuera não mostram uma curiosidade evidente pelas pessoas nem buscam interagir (embora alguns brinquem com mergulhadores em outros lugares). Parecem mais preocupados em filtrar a superfície da água para engolir a maior quantidade possível de ovos de peixe e em evitar colisões com outros bichos.

Eles não são como os tubarões-brancos, que passam ao lado te estudando, alguns timidamente, outros com mais interesse. Diferente das mantas, que parecem curiosas com os mergulhadores e às vezes gostam de sentir as bolhas que você solta batendo na barriga, ou as garoupas e meros, obviamente inteligentes e curiosos.

Enquanto os tubarões raramente interagiam entre si, exceto quando uma dupla nadava em paralelo de forma coordenada ou em caso de colisão iminente (dois foram vistos trombando, para evidente embaraço mútuo), as mantas “voavam” pela água em formações regulares, às vezes 8 ou 9 em fila, e era evidente que grupos de indivíduos permaneciam juntos, pois era possível identifica-los pelas cores e marcas. E definitivamente estavam curiosas com as pessoas na água, aproximando-se para investigar com cara de “que bicho é esse?”, às vezes permitindo serem tocadas. As mantas também eram mais acrobáticas e comumente nadavam completando círculos no sentido vertical, piruetas que permitem filtrar o alimento concentrado em áreas menores, um espetáculo à parte.

Essa reunião de gigantes que cuidavam de sua vida e tentavam evitar bater nos humanos e seus barcos tinha alguns convidados minoritários. As Mobulas (Mobula hypostoma), uma versão bem menor das mantas, apareceram em pequeno número, mas eram tímidas. Também observei e fotografei dois marlins-brancos Tetrapturus albidus e um golfinho nariz-de-gafarra, que fez uma breve aparição, além das muitas rêmoras e peixes-piloto que acompanhavam os gigantes.

A guerra que travamos com os tubarões na nossa tentativa de levá-los à extinção é bem conhecida. Tubarões-baleia há muito são objeto de pesca dirigida tanto pela sua carne como pelas barbatanas, matéria-prima de uma sopa caríssima mas sem gosto que é consumida como objeto de status por gente que precisa compensar sua própria pequenez. Embora hoje sejam protegidos em Taiwan, lá são chamados de tubarão-tofu devido ao gosto e textura da carne.

Mantas e mobulas também estão sendo aniquiladas para suprir o gigantesco mercado da “medicina” chinesa. Milhões de bárbaros acreditam que os rastros branquiais que estas raias usam para filtrar o plâncton da água, após serem moídos e engolidos, “filtram as impurezas do sangue”. Essa bobagem supersticiosa, sem base científica, está levando espécies à extinção, da mesma forma que acontece com os rinocerontes e tantos outros animais e plantas usados nesta picaretagem que chamam de medicina. Tubarões-baleia e mantas são considerados globalmente ameaçados de extinção devido a estes impactos.

Por isso, poder apreciar a concentração desses megabichos no Afuera, foi uma experiência cheia daqueles momentos PQP que fazem a vida valer a pena. Com frequência não havia ninguém por perto e tinha uma dúzia de tubarões e mantas só para mim. A situação me fez pensar como deveriam ser os mares cheios de “monstros” antes dos humanos aprenderem a pescar.

Uma raia manta filtra os ovos de bonito que flutuam na superfície. Foto: Fabio Olmos | Clique para ampliar
Uma raia manta filtra os ovos de bonito que flutuam na superfície. Foto: Fabio Olmos | Clique para ampliar

O último dia da excursão foi um sábado com a pressão atmosférica caindo, muitas embarcações e poucos tubarões. Neste dia pude ver o lado ruim do turismo e a razão pela qual uma proporção importante dos tubarões, talvez 20%, mostra cicatrizes e nadadeiras rasgadas por colisões com hélices.

Como havia poucos tubarões (e menos ovos na água, já bem mais clara) e nenhuma fiscalização, havia capitães que conduziam suas lanchas irresponsavelmente entre outras embarcações, pessoas na água e tubarões para que seus clientes, pregos de limitada habilidade aquática vestindo coletes salva-vidas, pulassem na água ao lado de um pobre bicho. Eles proporcionavam o espetáculo de um tubarão sendo perseguido por 12 primatas que gritavam e espirravam água para todos os lados. A embarcação dos guardas-parque que deveriam colocar ordem na coisa só esteve presente em um dos quatro dias de meu tour.

Essa forma de operar resulta em acidentes, como mostram as cicatrizes nos tubarões e a pancada que um de meus colegas levou de um barco “pilotado” por um sujeito especialmente displicente. O comportamento dos farofeiros aquáticos tem o resultado esperado. Os tubarões simplesmente submergem e vão cuidar de sua vida em outro lugar. Fim da brincadeira para todos. Quem tinha apenas esse dia para ver um dos maiores espetáculos naturais do Atlântico se deu mal.

O anticlímax do último dia só confirmou a necessidade de controlar visitantes em áreas onde há interação com a vida silvestre. Há operadores irresponsáveis e há pessoas, mesmo informadas, que irão fazer coisas pouco inteligentes que resultam em danos a elas e aos animais. Do tipo gente que não sabe nadar, decide brincar nas ondas de uma praia cheia de placas alertando para o risco de ataque de tubarões e fica esperneando como um peixe ferido quando descobre que o lugar é fundo demais.

Uma das coisas interessantes que a tecnologia atual permite é participar de projetos de ciência cidadã. A maioria das pessoas e cientistas em especial têm curiosidade de saber de onde vêm e para onde vão os tubarões-baleia que encontram. Como o padrão de manchas da área logo atrás das nadadeiras peitorais é único em cada indivíduo, pesquisadores começaram a construir um banco de dados de fotos de tubas-baleia, hoje com mais de 3 mil indivíduos registrados.

Alguns inspirados foram além e criaram um software que compara os padrões no banco de dados e um website para onde fotos podem ser enviadas para comparações. O colaborador recebe retorno se seu tubarão ou tubarões já foram vistos e em qual local. Nas próximas semanas processarei minhas fotos para saber se os tubarões que fotografei têm história conhecida.

Mergulhar com tubarões é uma daquelas coisas espetaculares que podem mudar como você vê a vida se sua mente e olhos estiverem abertos. Seja com as espécies inofensivas como os baleia, aos mordedores como os cabeça-chata. Os últimos são responsáveis pela maioria dos ataques em Pernambuco — onde querem exterminá-los –, mas também estrela de excursões de mergulho pertinho de Isla Mujeres — onde os querem muito vivos e abundantes.

Eles te mostram que a natureza, ao contrário do que alguns querem te fazem crer, não é um shopping center ou parque de diversões onde tudo é seguro, asséptico, controlado e feito para quem tem um tempo de atenção de 15 segundos. A beleza da realidade tem várias camadas que levam tempo para ser percebidas e apreciadas.

E os tubarões e raias, uma estirpe muito mais antiga que a nossa, mostram inteligência, humores e personalidade que te fazem pensar nas outras tribos que compartilham o mundo com você.

Foto: Fabio Olmos | Clique para ampliar
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  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

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