Análises

Cururuá, o verdadeiro nativo de Ilhabela

Rato gigante encontrado apenas em Ilhabela é um dos poucos mamíferos restritos a ilhas no Brasil. Seu habitat está ameaçado por imobiliárias.

Fabio Olmos ·
11 de setembro de 2013 · 11 anos atrás

A tranquila Cururuá que capturei em junho de 1994 posa para uma foto. Até recentemente essa era a única foto de um exemplar vivo desta espécie. Foto: Fabio Olmos
A tranquila Cururuá que capturei em junho de 1994 posa para uma foto. Até recentemente essa era a única foto de um exemplar vivo desta espécie. Foto: Fabio Olmos

 


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Ilhas são microcosmos onde podemos observar a evolução acontecendo e não é à toa que espécies insulares despertam grande interesse entre os cientistas. Comparações morfológicas, ecológicas e genéticas entre espécies aparentadas vivendo em diferentes ilhas ou em ilhas no continente têm ajudado a compreender como e por que espécies se multiplicam.

As ilhas do litoral do Brasil entre o Rio de Janeiro e Santa Catarina emergem de uma plataforma continental rasa (na maior parte entre 10 e 40 m de profundidade) e larga (c. 75 km no Rio, mais de 200 km em São Paulo). Entre 123.000 e 7.000 anos atrás, com muita da água do planeta armazenada em gigantescas geleiras e calotas polares, o nível do mar era bem mais baixo que o atual (até 110 m mais baixo em alguns momentos) e estas ilhas eram morros que pontilhavam uma grande planície coberta por vegetação adaptada a climas frios e secos que talvez fosse similar à de locais como Cabo Frio.

Ao atingir o nível atual 7 mil anos atrás (mais ou menos quando a vila que deu origem a Aleppo, na Síria, começou a ser ocupada), o mar transformou morros em ilhas e isolou populações de animais e plantas que, no mesmo período que levou para criar e destruir civilizações, deram origem a espécies distintas. Exemplos são as fantásticas jararacas ilhoas das ilhas paulistas de Queimada Grande, Alcatrazes e Vitória, sapinhos como Hylodes fredi e Proceratophrys tupinamba da Ilha Grande, Scinax alcatraz, Cyclorhamphus faustuoi de Alcatrazes, que também é o único lar das plantas Begonia venosa, B. larorum, Sinningia insularis e Anthurium alcatrazense.

Estes endemismos são apenas parte das razões pelas quais Alcatrazes e Queimada Grande, e o mar ao seu redor, já deveriam ter se tornado parques nacionais. Mas é mais fácil criar um parque nacional no Iraque que no Brasil.

Além de plantas, moluscos, anfíbios e répteis endêmicos, as ilhas costeiras dessa parte da Mata Atlântica também abrigam duas espécies de mamíferos únicos. Um é a preá Cavia intermedia, que ocorre em uma área de apenas 10 hectares (ou 10 campos de futebol) nas ilhas Moleques do Sul, um conjunto de três ilhotas a 14 km do continente.

Esta espécie, com uma população média de apenas 42 indivíduos, é o mamífero com menor área de distribuição conhecida e considerada criticamente ameaçada de extinção. Como é comum acontecer com populações insulares onde não há pressão de predadores, esta espécie ocorre em altas densidades, sua população constituída principalmente por adultos com alta taxa de sobrevivência e baixa fertilidade. Uma curiosidade é a “genitália masculinizada” dessas preás clitorudas, similar à de sua espécie-irmã, Cavia magna, encontrada de Santa Catarina ao leste do Uruguai.

O Cururuá

Os Cururuás pertencem ao grande grupo dos “ratos de espinho” restritos à América tropical, que produzem ninhadas pequenas de 1-3 filhotes bastante precoces que nascem com pelos e olhos abertos

A outra espécie é o cururuá Phyllomys thomasi, também em perigo de extinção – sina dos endemismos insulares. Este belo roedor arborícola ocorre apenas na Ilha de São Sebastião, melhor conhecida como Ilhabela, no litoral norte de São Paulo.

O Cururuá pertence a um gênero de roedores arborícolas endêmico da Mata Atlântica. Os Cururuás pertencem ao grande grupo dos “ratos de espinho” restritos à América tropical, que produzem ninhadas pequenas de 1-3 filhotes bastante precoces que nascem com pelos e olhos abertos. Noturnas, muitas espécies desse grupo são arborícolas e algumas “cantam” à noite para manter contato entre si. O nome Cururuá seria uma onomatopeia do canto do roedor.

Ilhabela é o que resta de um antigo vulcão e uma das maiores ilhas brasileiras, com 337 km2 e altitudes que chegam a 1.380 m. A ilha é separada do continente por um canal que varia entre 2 e 5 km de largura, mas com profundidades que chegam a 40 m. Isso tanto a isolou como a torna visada para empreendimentos portuários. Um detalhe interessante é que 80% da ilha é um parque estadual que, no entanto, na sua maior parte protege apenas áreas acima de 100 m de altitude.

A ilha é um lugar especial para mim. Depois de aprovado em processo seletivo da CETESB (braço da SMA/SP) fui comissionado como gestor do parque estadual em 1993-94. Além de ser uma experiência educativa sobre a realidade da gestão de áreas protegidas e a disfuncionalidade do setor público, o posto me permitiu desenvolver pesquisas sobre a fauna da ilha. No topo das minhas prioridades extra-trabalho estava encontrar o mítico Cururuá.

Descrito em 1897 pelo grande naturalista teuto-brasileiro Hermann von Ihering, fundador do Museu Paulista (hoje Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo), o Cururuá era conhecido de menos de 10 exemplares, o último coletado em 1915, nas coleções daquele museu. Estes espécimes mostravam que o Cururuá é a maior espécie do grupo, um Phyllomys gigante.

Vivendo em uma ilha onde faltam espécies de possíveis competidores e predadores, o Cururuá pode ser considerado um processo em andamento do fenômeno do gigantismo insular, que produziu roedores do tamanho de ursos no Caribe (claro, extintos quando humanos chegaram). Este, junto com seu oposto, o nanismo insular, que produziu elefantes e hipopótamos anões em ilhas do Mediterrâneo (logicamente extintos quando humanos chegaram) fazem a alegria dos que estudam evolução.

A rápida divergência de tamanho, resultado de intensa pressão seletiva provavelmente acoplada a processos epigenéticos é uma constante na evolução insular. Por exemplo, populações de veados isolados em Jersey, uma ilha do Canal da Mancha (famosa por abrigar dinheiro malufado da prefeitura paulistana) encolheram 80% em apenas 6 mil anos.

Busca

Embora autores antigos dissessem que o Cururuá era comum a ponto de ser uma praga em roças de mandioca, a realidade que encontrei foi muito diferente.

Minha busca por um bicho que nenhum biólogo (ou pelo menos biólogo que soubesse o que estava vendo) havia reportado fazia décadas levou meses. Após muito buscar e perguntar, João Oliveira, um dos guardas-parque, descobriu que um Cururuá morava na árvore atrás da residência, boteco e restaurante do Canindé, uma das figuras folclóricas da Praia dos Castelhanos.

A Cururuá (pois era uma menina) habitava um ninho feito de folhas com o formato de um iglu no alto da árvore. Trilhas escurecidas feitas de alguma secreção produzida por uma glândula que ela tinha no peito marcavam os galhos nas rotas usadas pela roedora nas suas andanças arborícolas. Eu já havia sido informado de que Cururuás faziam ninhos de folhas e que, nos “tempos dos antigos”, eles eram caçados com lanças feitas com espinhos de raias. Era uma simples questão de achar o ninho e com uma “chuchada” se conseguia uma refeição.

Minha Cururuá foi capturada com a mão e mostrou ser muito dócil, aceitando bananas, mangas e mamões (mas não a salada) que ofereci durante os poucos dias que a mantive cativa. Ela nunca tentou morder quando a medi (27,5 cm do nariz à base da cauda, 27 cm de cauda e saudáveis 432 gramas) nem quando foi sedada por um amigo veterinário para obter uma amostra de sangue para estudos genéticos. Essas foram as primeiras medidas obtidas de um Cururuá vivo (os antigos coletores de museu não se preocupavam com isso), mas a amostra, que ajudaria a resolver a filogenia do grupo, acabou perdida ao ser enviada para uma universidade.

Libertei a Cururuá na mesma árvore onde ela foi capturada. Após cheirar os ramos marcados com a trilha odorífera, ela correu árvore acima e desapareceu no seu iglu. Nunca mais a vi,mas consta que continuou vivendo ali por um bom tempo. Minhas descobertas foram publicadas em um artigo científico que permanece como um dos poucos sobre a espécie.

Outros mamíferos endêmicos das ilhas costeiras do sul-sudeste podem estar aguardando serem descobertos em gavetas de museu. Por exemplo, as vizinhas ilhas de Vitória (lar da endêmica Bothrops otavioi)e Búzios (lar do endêmico caracol Gonyostomus insulanus) são localidade de coleta de roedores e marsupiais que merecem ter seus genes, morfologia e ecologia estudados.

Como eu e outros pesquisadores que procuraram Cururuás descobrimos, a espécie está longe de ser comum. Na verdade, parece ser genuinamente rara e talvez mesmo restrita a áreas a menor altitude, a maioria fora do parque estadual.

Foi uma surpresa quando meu amigo Marcelo Dutra, que deve ser o maior conhecedor da fauna de Ilhabela, encontrou famílias de Cururuás (além de lontras, guaiamuns e savacus-de-coroa, todos espécies ameaçadas) vivendo no remanescente de manguezal (já único pela sua natureza insular) próxima ao atracadouro do ferry-boat que liga a ilha ao continente. Como é de se esperar, a área está sendo ocupada por uma marina e já foi parcialmente destruída.

Os desejos realizados de interesses imobiliários, portuários e industriais são a força motriz da favelização e comprometimento da qualidade de vida nas cidades do litoral paulista, que sofrem com problemas crônicos de saneamento e crescentes de transporte, saúde, educação e segurança. Os tais empreendimentos que resultariam em progresso se revelam tiros no pé.

Isso é facilmente visto no microcosmo ao longo da rodovia Rio-Santos, onde há condomínios bregas de alto a mezzo padrão (um teve a capacidade de colocar um moai na entrada) ao lado de favelas que invadem mangues e morros, praias com mais coliformes que água e criminalidade estilo cidade grande.

Ilhabela logicamente sofre com aqueles interesses e a explosão populacional atrelada à expansão imobiliária. Recentemente, a prefeitura conseguiu a aprovação pelo grupo que “cuida” do Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) do litoral norte paulista que as praias do Bonete e Castelhanos, de acesso difícil e ainda conservadas, fossem classificadas como zonas de expansão urbana. Manifestações da sociedade, notavelmente dos moradores daquelas praias, conseguiram a retirada desta proposta, feita sob medida para quem quer condomínios nas praias e ao longo da estrada do Bonete, que corta uma área que deveria ter sido inserida no parque faz muito tempo.

Propostas infelizes do tipo continuam pipocando no Zoneamento Ecológico-Econômico, onde acabam aprovadas por mecanismos “participativos” e “democráticos” que lembram os usados em assembleias de sindicados ou centros acadêmicos para garantir o que foi acordado de antemão.

Já vimos esta história no Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) da Baixada Santista, que ignorou trabalhos científicos, mapeamentos feitos pelo projeto BIOTA-FAPESP, a legislação ambiental e pareceres da própria SMA/SP e classificou áreas importantes de Mata Atlântica como de expansão urbana e de manguezais como de expansão portuária.

Graças ao Ministério Público, empreendimentos destrutivos (mas regulares, segundo o ZEE) foram barrados, mas seria pedir demais que um instrumento de planejamento respeite a lei e siga critérios técnicos ao invés dos desejos de quem já destruiu boa parte do litoral paulista? Parece que sim.

A cúpula da Secretaria de Meio de Ambiente de São Paulo é formada por advogados, então é de se esperar um conhecimento de causa similar ao de um escritório de advocacia comandado por biólogos (vou me abster de constatações óbvias sobre advogados). Falta mais gestão técnica e menos política.

Além de instrumentos de planejamento territorial que deixam muito a deixar nos aspectos técnicos e parecem antes uma lista de presentes de natal para imobiliárias e empreiteiros, a secretaria de meio ambiente paulista adotou um aparelhamento digno do pior que a política brasileira tem a oferecer. Técnicos treinados em outros tempos eram resguardados contra prefeitinhos e vereadorzecos mal intencionados. Agora, foram substituídos por candidatos derrotados e sem noção a respeito da missão e como uma área protegida deve ser gerida.

Não é surpresa as raposas dizerem que está tudo uma maravilha no galinheiro enquanto pesquisadores que estão lá no mato vendo o que acontece dizem exatamente o contrário.

Nessa era de parques abandonados invadidos por favelas, condomínios e “populações tradicionais”, usados por mais caçadores e palmiteiros do que por visitantes e administrados por gente cuja prioridade é colocar tilápias no laguinho, espécies ameaçadas como o Cururuá tentam sobreviver aos desastres nada naturais causados por imobiliárias, empreiteiros e políticos.

Qual a chance deles?

 

Leia também
O zoneamento da Baixada Santista
Queimada Grande: a Ilha das Loiras Misteriosas
A beleza das ilhas brasileiras vistas do espaço

 

 

 

  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

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Comentários 2

  1. Gabrielle diz:

    Olá, estou fazendo uma para o meu projeto de iniciação científica e gostaria de saber se você pode me passar as referências que utilizou. Obrigada


  2. Grato pelo conteúdo! Apertou meu coração quando li o trecho "Libertei a Cururuá na mesma árvore onde ela foi capturada. Após cheirar os ramos marcados com a trilha odorífera, ela correu árvore acima e desapareceu no seu iglu. Nunca mais a vi,mas consta que continuou vivendo ali por um bom tempo". Lamentável perceber que as ações humanas desencadeiam desdobramentos tão tristes como este.