Análises

O Planeta dos Macacos Mestiços

Micos soltos fora do seu habitat cruzam com os outros micos e geram descendentes híbridos e férteis. Humanos também fizeram a mesma coisa

Fabio Olmos ·
16 de abril de 2013 · 11 anos atrás
Um híbrido com ancestrais mico-estrela, sagui-da-serra-escuro e talvez sagui-de-tufos-brancos (todos observados no mesmo grupo) na Mata Atlântica de Ubatuba, em São Paulo. Foto: Fabio Olmos.

Donos de bichos malcriados e autoridades ambientais com um ou vários micos na mão soltaram incontáveis saguis originários da Caatinga, do Cerrado e da Mata Atlântica do nordeste em variados locais fora de sua área de distribuição original. A esses se juntaram os primatas espertos que fugiram para uma vida de liberdade e caíram fora da psicose humana de tratar bicho como brinquedo. Dois exemplos foram o sagui-de-tufos-brancos (Callithrix jacchus) e o sagui-de-tufos-negros ou mico-estrela (C. penicillata).

Hoje, uma ou ambas as espécies podem ser encontradas em vida livre em locais como a Baixada Fluminense, a Floresta da Tijuca, a Ilha Grande, o litoral de São Paulo, Florianópolis, Curitiba e outros lugares onde nunca ocorreram naturalmente. Áreas com geadas cada vez menos intensas, como Curitiba, permitem que esses imigrantes mais tropicais se sintam em casa.

Esses invasores exóticos (porquê de outros biomas) se tornaram um novo componente em ecossistemas onde as demais espécies não co-evoluíram com um primata de pequeno porte e generalista. Há tipos de gaviões que agradecem o acréscimo ao seu cardápio, mas há lugares onde os micos (predadores de pequenos vertebrados) podem impactar, por exemplo, as populações de aves, anfíbios e lagartos. Além disso, competem com espécies nativas similares, como os ameaçados micos-leões-dourados.
E não é só isso. É comum os recém-chegados encontrarem populações de Callithrix nativos, como os saguis-da-serra (C. aurita e C. flaviceps) e o sagui-de-cara-branca (C. geoffroyi). Nesse caso, uma coisa interessante pode ocorrer: duas espécies diferentes podem hibridizar e produzir descendentes férteis, os quais podem gerar miquinhos com uma terceira espécie, produzindo um sagui tutti-frutti que parece muito bem adaptado a seu novo ambiente.

Isso bagunçou o que já foi uma situação aparentemente bem ordenada, com cada espécie ocupando um pedaço do Brasil e mantendo sua identidade. Mas só aparentemente, porque mesmo nas áreas de ocorrência natural já se registravam híbridos desses micos. Embora as diferentes espécies possam ter aparência, hábitos e mesmo “idiomas” diferentes, micos solitários de espécies distintas não se incomodam com tais detalhes e vão viver no mesmo oco.

Espécies animais morfológica e geneticamente distintas são capazes de hibridizar e produzir descendentes férteis quando se encontram, apesar de terem evoluído por dezenas ou mesmo centenas de milhares de anos de forma isolada. Essa é uma daquelas coisas inconvenientes tanto para quem acredita no conto de fadas com espécies criadas e ordenadas em suas gavetinhas como quem tenta reconstruir a história evolutiva. Os genes alienígenas atrapalham a vida quando se tenta reconstruir uma árvore evolutiva (filogenia) com os ramos (ou clados) bem definidos. Você acaba encontrando ramos que se separam aqui e se unem mais adiante.

Hibridização é coisa nossa

A hibridação é um fenômeno frequente em animais. Nossa tribo, os primatas, de lêmures a babuínos, tem muitos exemplos de híbridos férteis, onde genes de uma espécie são incorporados no genoma de outra, fenômeno chamado introgressão. Por sua vez, esses híbridos geram novas espécies. A mais conhecida é a sua, caro leitor, a espécie Homo Sapiens.

A linhagem primata mais famosa é a humana. Ela surgiu na África e, ao longo do tempo, diferentes espécies do gênero Homo deixaram o continente e colonizaram a Europa, a Ásia e, por fim, a América. Humanos anatomicamente modernos, os Homo Sapiens, surgem no registro fóssil a 160 mil anos, emigrando da Mama África rumo ao resto do mundo entre 62 e 95 mil anos atrás. Estes viajantes, ancestrais dos europeus, asiáticos e ameríndios modernos percorreram rotas já viajadas por outros tipos de humanos e os encontraram ao longo do caminho.

Um alienígena que visitasse a Terra a meros 50 mil anos encontraria não apenas Homo sapiens, mas também os famosos Neandertais (Homo neanderthalensis) da Europa e Ásia, cuja linhagem se separou da nossa há pelo menos 370 mil anos, os pitorescos Hobbits (Homo florisiensis), os misteriosos Denisovas (ainda sem nome científico e geneticamente mais distantes de nós) e talvez até mesmo populações remanescentes do primitivo Homo erectus. Isso para não falar em outros humanos cuja identidade ainda é debatida (são espécies diferentes ou parte da nossa?) na China e na África.

Os Homo sapiens – espécie exótica e invasora suprema – ao encontrar estes outros humanos fizeram o que continuariam fazendo depois: sexo e conquista. O resultado é que 1% a 4% do DNA das populações não africanas atuais é de origem Neandertal, enquanto até 6% do genoma dos nativos melanésios é Denisova. Alelos desta origem também aparecem no genoma de populações no sudeste asiático e de índios americanos.

O pessoal que continuou na África até poderia se considerar gente puro sangue, mas os geneticistas modernos descobriram que linhagens africanas incorporaram genes originários de alguma espécie humana antiga, que originalmente se separou da nossa há 700 mil anos, mas que produziu bebês com humanos modernos há uns 35 mil anos atrás. Outras gentes, que ainda não sabemos bem quem são, ainda se somarão à lista de espécies humanas que viviam juntas neste planeta faz pouco tempo no relógio da evolução.

Nenhuma destas outras espécies humanas ainda está por aqui, apesar das várias lendas sobre “homens selvagens” em todo o mundo (folclore baseado em populações sobreviventes?). É razoável supor que a outra coisa que fizemos é levar aquelas outras parcelas da Humanidade à extinção por competição, hibridação, doenças introduzidas ou a boa e velha guerra, um esporte que praticamos desde sempre.

Somos um grande enxame híbrido, resultado do sexo entre diferentes espécies humanas. Embora parecessem diferentes entre si e pensassem de forma distinta, eram próximas o suficiente para que climas rolassem e bebês nascessem.

E foi assim que a Terra se tornou o planeta dos macacos mestiços, alguns dos quais ainda falam em raças puras.

Autor deste blog, Fabio Olmos é biólogo e doutor em zoologia. Tem um pendor pela ornitologia e gosto pela relação entre ecologia, economia e antropologia. Seu último livro, sobre ecossistemas brasileiros e conservação, é Espécies e Ecossistemas.
 

  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

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Comentários 2

  1. Liana John diz:

    Parabéns pelo artigo, Fábio! Bem completo e interessante, como sempre!!


  2. Bom dia! Interessante o pensamento sobre hibridação.

    Convido-o a visitar álbum de fotos tiradas no sítio Copaíba, em Joanópolis SP, local com mais de 240 espécies diferentes de árvores nativas e que atrai naturalmente vários animais, dentre eles vários saguis.
    https://goo.gl/photos/SViWgs87yxyUHh7q8