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Brasil e Peru: Comparando legislações sobre áreas protegidas

Brasil e Peru tem quase três mil quilômetros de fronteira e legislações ambientais parecidas, o que sugere que cooperem para proteger melhor.

24 de novembro de 2014 · 9 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Parque Nacional de Cutervo, Perú. Foto:
Parque Nacional de Cutervo, Perú. Foto:

O Brasil tem quase 3.000 quilômetros de fronteira com o Peru. Estes países compartilham grande parte da mesma diversidade biológica, têm áreas protegidas fronteiriças e vários projetos de corredores ecológicos que cruzam os limites internacionais. Por isso é importante conhecer como conservam suas áreas protegidas e, em especial, algumas das caraterísticas da sua legislação que até podem ser replicáveis. Neste artigo se compara, em termos gerais, a legislação sobre áreas protegidas desses dois países.

O primeiro parque nacional do Brasil foi Itatiaia (1937). O primeiro do Peru foi Cutervo (1961). Apenas para fins comparativos, em 1990 no Brasil já existiam 162 áreas protegidas (20,5 milhões de hectares) enquanto que no Peru havia 24 (5,5 milhões de hectares). Hoje, no Brasil existem mais de 600 áreas protegidas (federais e estaduais) que cobrem cerca de 150 milhões de hectares, e no Peru há 166, com quase 20 milhões de hectares. Levando em conta o tamanho dos países, a situação é similar já que o Brasil protege 17% do seu território e o Peru mais de 15%. Em ambos os países existem áreas protegidas enormes. No Peru destacam-se Alto Purus, Pacaya-Samiria, Manu, Cordillera Azul e Bahuaja-Sonene, com entre 1 e 2,5 milhões de hectares cada. A principal diferença entre os dois países é que no Peru 59% da extensão protegida estão submetidos ao regime de proteção integral enquanto no Brasil mais de 63% é de uso sustentável.

Em ambos os países os primeiros textos legais completos sobre áreas protegidas foram incorporados como capítulos da legislação florestal (na de 1960, no Peru, e na de 1965 no Brasil) e foram inspirados na “Convenção da OEA (Organização dos Estados Americanos) para a Proteção da Flora, da Fauna e das Belezas Cênicas dos Países da América”, firmada em Washington em 1940. Em 1997, no Peru, e em 2000, no Brasil, foram promulgadas as primeiras leis específicas desses países para as áreas protegidas. A gestão das áreas protegidas nos dois países foi responsabilidade do setor florestal durante uns 50 anos, até a sua transferência ao setor ambiental. Hoje, as áreas protegidas do Brasil dependem do ICMBio e as do Peru do SERNANP (Serviço Nacional de Áreas Naturais Protegidas). Em ambos os países, aspectos importantes que concernem às áreas protegidas dependem da legislação florestal e da ambiental. Como se observa, a evolução da legislação e da gestão das áreas protegidas tem sido semelhante no Peru e no Brasil.

Semelhanças nas formas de proteger

“Os dois países tem doze categorias de áreas protegidas, mas suas descrições apresentam diferenças importantes. O Peru só tem três categorias de uso indireto (parques, santuários nacionais e santuários históricos, como Machu Picchu), enquanto o Brasil tem cinco.”

A comparação das leis de áreas protegidas também chama atenção para as semelhanças. Ambas definem o sistema nacional de áreas protegidas (SNUC no Brasil, SINANPE no Peru), reconhecem dois tipos de categorias (de uso indireto ou preservação permanente e de uso direto ou uso sustentável), ambas têm o mesmo tipo de zoneamento interno, zonas de amortecimento, conselhos consultivos e de gestão, planos de manejo, reservas particulares, etc. Os dois países tem doze categorias de áreas protegidas, mas suas descrições apresentam diferenças importantes. O Peru só tem três categorias de uso indireto (parques, santuários nacionais e santuários históricos, como Machu Picchu), enquanto o Brasil tem cinco. No Peru, não há reservas biológicas nem estações ecológicas, pois lá se considera que as funções dessas categorias podem ser cumpridas nos Parques Nacionais, com dependência apenas do zoneamento que se adote.

Há diferenças maiores nas categorias de uso direto. No Peru nem existe o conceito de Área de Proteção Ambiental (APA) que no Brasil ocupa uma enorme extensão do território protegido. Lá, o que mais se parece a uma APA são as Reservas Paisagísticas (só existem duas), cuja função é evitar alterações da paisagem original. No Peru, quando existiam, as florestas nacionais não eram consideradas áreas protegidas. Duas categorias peruanas têm alguma semelhança com as reservas de desenvolvimento sustentável: as reservas nacionais e as reservas comunais. As primeiras podem ser estabelecidas sobre terras de comunidades camponesas ou indígenas, caso aceito por elas, ou sobre terras públicas que em parte pequena têm assentamentos tradicionais. As reservas comunais se estabelecem sobre terras públicas anexas a comunidades indígenas e/ou sobre os seus territórios tradicionais. Nestas, a gestão é compartilhada com os indígenas, mas não se pode desmatar.

Uma categoria peruana inexistente no Brasil é a das reservas de caça (cotos de caza), onde a caça é permitida só com base em um manejo da fauna estrito. Ao contrário, os refúgios de vida silvestre brasileiros são praticamente idênticos aos peruanos. Tampouco existe no Brasil a categoria conhecida como Floresta de Proteção, que tem por finalidade preservar bacias hidrográficas de importância especial. No Brasil esta categoria está na prática suprida pela legislação sobre Áreas de Preservação Permanente (APPs) e, diga-se de passagem, essa é uma medida que o Peru deveria adotar evitando estabelecer áreas protegidas específicas o que implica um custo elevado. Ambas as legislações outorgam um tratamento similar às Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPNs).

Em termos gerais, a legislação brasileira – não unicamente a de áreas protegidas – oferece mais vantagens para as áreas protegidas do que a peruana. As áreas de preservação permanente se somam as reservas legais. Na medida em que se consolidem, isso facilitará muito a conectividade entre áreas protegidas. O artigo 36 da lei do SNUC é valioso: obriga como compensação ambiental até 0,5% do valor de empreendimentos impactantes, que devem ser destinados a áreas protegidas de proteção integral, embora na prática este dispositivo esteja sendo aos poucos deturpado. A existência, em vários estados, do ICMS ecológico é uma excelente oportunidade para que a população e as autoridades locais aceitem com maior simpatia as áreas protegidas. Disposições da nova legislação florestal como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o caráter transferível e negociável das cotas de reserva legal podem contribuir a consolidar áreas protegidas e facilitar a sua interconexão. Isso também existe na legislação peruana, mas sua implementação é improvável. Outra vantagem importante do Brasil sobre o Peru é a existência de corpos de brigadas de bombeiros florestais bem treinados e relativamente bem equipados, que atuam na defesa das áreas protegidas. No Peru sequer existe um corpo de bombeiros militares, e todo esse serviço fica a cargo de voluntários que só atuam nas zonas urbanas.

A legislação florestal peruana oferece, em compensação, duas opções interessantes chamadas de Concessões de Conservação e Concessões de Ecoturismo. As primeiras não têm limites de extensão e se outorgam sobre terras públicas por 40 anos renováveis para serem manejadas como áreas protegidas por instituições que demonstrem ter os recursos e a capacidade técnica para fazê-lo. As Concessões de Ecoturismo, com dimensões menores – até 10.000 hectares por 40 anos renováveis – são outorgadas a empresas ou outros interessados em desenvolver projetos de ecoturismo e que demonstrem ter capacidade técnica e econômica. Este tipo de concessão permite ampliar a ação de conservação do governo e de criar corredores entre áreas protegidas. Outra ferramenta interessante no Peru é o Profonanpe, um fundo para financiar as áreas protegidas que começou com US$5,2 milhões em 1995 e que hoje dispõe de US$134,4 milhões, e que funciona como complemento ao orçamento público anual.

Em conclusão, o tratamento legal para as áreas protegidas no Brasil e no Peru é muito semelhante e, se for bem aplicado, oferece boas oportunidades para que esses países possam efetivamente garantir a manutenção de amostras viáveis dos seus biomas, ecossistemas e da sua diversidade biológica. A realidade legal e administrativa de ambos os países, apesar de algumas diferenças, permite que juntem esforços para construir um futuro melhor para todos.

 

 

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