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STJ reconhece existência de injustiça ambiental no Brasil

Acórdão sobre contaminação por chumbo autoriza a adoção de padrões internacionais da OMS quando a lei nacional for tímida na defesa da saúde humana.

27 de janeiro de 2014 · 10 anos atrás
Desabamento do Morro do Bumba, em Niterói, matou 47 pessoas em 2010. Favela foi construída em cima de um lixão desativado. Foto: Vladimir Platonow /ABr.
Desabamento do Morro do Bumba, em Niterói, matou 47 pessoas em 2010. Favela foi construída em cima de um lixão desativado. Foto: Vladimir Platonow /ABr.

Há 12 anos, a interdição da empresa Acumuladores Ajax era manchete nos jornais. De um universo de 30 exames realizados pelo Instituto Adolfo Lutz em crianças de até 7 anos que moravam perto da empresa, 22 haviam apresentado índices de chumbo acima do limite recomendado pela OMS. A Folha de S. Paulo de 12.04.2002 informava que um filtro colocado em uma casa a 400 metros da empresa tinha acumulado 3,7 μg de chumbo em um dia, quando o aceitável é de 1,5 μg em três meses.

Na ocasião, a Vigilância Sanitária da Secretaria da Saúde paulista autuou a empresa, aplicando-lhe multa administrativa pela reiterada emissão de chumbo na atmosfera, gerando a exposição e contaminação, por esse metal pesado, do meio ambiente e da população. As vítimas eram pessoas humildes que viviam nas imediações da indústria, na cidade de Bauru (SP). E aquela que era uma das maiores empresas brasileiras de fabricação e reciclagem de baterias automotivas, com mais de mil empregados, não pagou a multa, obrigando a PGE/SP a promover sua execução fiscal.

Pois bem, finalmente, em 23 de outubro de 2013 transitou em julgado no STJ o acórdão em sede de Recurso Especial n. 1.310.471-SP, última tentativa judicial de se postergar o pagamento da multa administrativa.

Sob a perspectiva econômica, a cobrança da multa, depois de 12 anos, não seria digna de comemoração. No entanto, por conta do teor de referido acórdão, o tema adquiriu uma importância transcendental. De forma inédita, o STJ reconheceu o princípio in dubio pro salute, enfatizou o papel do juiz ao decidir litígios que envolvam substâncias perigosas e reconheceu a perversa relação existente entre miséria e poluição.

Ainda que a natureza dos bens ambientais seja difusa, é fato que existe certa margem para uma injusta distribuição das externalidades negativas (poluição visual, poluição sonora, resíduos sólidos), quase sempre suportadas pelas camadas da população mais pobre. Pois bem, o acórdão no REsp 1.310.471-SP, de que foi relator o Exmo. Sr. Ministro Herman Benjamin, pela primeira vez na história da jurisprudência em nosso país reconhece a existência de injustiça ambiental e de segregação pela saúde ao ressaltar:

“Aqui, como é realidade comum no mundo todo em casos de graves incidentes de poluição por resíduos tóxicos ou perigosos, em sua grande maioria as vítimas são pessoas humildes, incapazes, pela baixa instrução, de conhecer e antecipar riscos associados a metais pesados e agentes carcinogênicos, mutagênicos, teratogênicos e ecotóxicos”.

Mais à frente, o acórdão é ainda mais enfático na denúncia das mazelas em nosso país no que diz respeito à igualdade social:

“Substituímos, ou sobrepusemos, à segregação racial e social – herança da discriminação das senzalas, da pobreza da enxada e das favelas – a segregação pela poluição, isto é, decorrente da geografia da contaminação industrial e mineral, do esgoto a céu aberto e da paisagem desidratada dos seus atributos de beleza”.

Nesse sentido, podemos dizer que, quando, na USP-Leste, criada sobretudo para atender à demanda de jovens da periferia de São Paulo, as aulas são interrompidas por causa de zoonoses e emanação de metano do solo onde o campus foi construído; ou então quando a população humilde é literalmente empurrada para APPs urbanas, isto é, as encostas dos morros de Petrópolis, que é onde lhes resta para construção de suas casas, estamos diante de uma situação duplamente injusta: os espaços de exclusão social também são ambientalmente insalubres ou perigosos.

O STJ, ao reconhecer a existência de injustiça ambiental (compartilhamento socialmente desigual da ambientes degradados), inaugura uma nova fase no Direito Ambiental, que não deve limitar-se a cuidar apenas dos parques, florestas, rios e cachoeiras. As normas de Direito Ambiental socorrem a dignidade de vida humana e a redução das desigualdades sociais com a mesma intensidade com que vêm na proteção da fauna, da flora e dos elementos abióticos da natureza.

Além disso, como destaca o acórdão, sob o manto da razoabilidade, se forem tímidas as leis que dizem respeito à saúde humana, o Judiciário “deve adotar referências mais rigorosas da Organização Mundial de Saúde – OMS”. Isto para que não sejam adotados dois padrões de controle: um, destinado a proteger uma elite capaz de se auto proteger; e outro “frouxo, incidente sobre a esmagadora maioria da sociedade, notadamente sobre aqueles que, expatriados em guetos sociais e até raciais, acham-se destituídos de poder e voz para eficazmente reclamar seus direitos formalmente estatuídos na Constituição e nas leis”.

É de se supor que este precedente jurisprudencial será de enorme valia, por exemplo, na luta pelo banimento do amianto em nosso país.

 

 

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