Colunas

Duplamente afetados

Os decretos presidenciais que têm entregado parques nacionais à administração dos índios agridem não apenas o bom senso, mas também a Constituição Federal.

3 de maio de 2006 · 18 anos atrás

A nova moda demagógica e ilegal no Governo Lula responde pelo adequado nome de “dupla afetação”. Se, em tese, ela quer dizer que uma mesma unidade de conservação servirá a dois ou mais nobres propósitos, do interesse de todos, na prática, até agora, ela só significou a condenação de dois parques nacionais à extinção, em nome do interesse de poucos.

O assunto já foi esmiuçado recentemente aqui em O Eco, nas colunas de Marc Dourojeanni, Maria Tereza Pádua e Marcos Sá Corrêa, por ocasião do decreto presidencial que instituiu esse regime para o Parque Nacional do Araguaia, entregando a sua administração aos índios da região e à Funai. Tal qual aconteceu no Monte Roraima com a terra Raposa Serra do Sol.

Mas, fora o evidente conflito lógico de se entregar a administração de um patrimônio público, de todos os brasileiros, do qual, por lei, não se pode extrair nada animal, vegetal ou mineral, a um grupo que vive, quase exclusivamente, de uma ou mais dessas atividades, Lula ainda escolheu o instrumento legal errado para implementar mais essa idéia absurda. Por isso, vale a pena nos determos em mais esse aspecto da “dupla afetação”, sem risco de chover no molhado.

A criação de parques nacionais, como o do Monte Roraima e do Araguaia, decorre de norma constitucional (art. 225, § 1°, III), que estabelece a obrigação para o Poder Público de “definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais [unidades de conservação em geral] e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas apenas através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção”.

A Lei do SNUC (Lei 9.985/2000), por sua vez, além de estabelecer que os parques nacionais encontram-se entre as unidades de conservação de uso indireto (o que impossibilita qualquer forma legal de extrativismo), dispõe que a “desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só pode ser feita mediante lei específica” (art. 22, § 7°).

Em ambos os dispositivos, o termo “lei” não aparece em vão (existe até um brocardo jurídico, que por bom senso deixo de transcrever em latim, dizendo mais ou menos que, nas normas jurídicas, nenhuma palavra é inserida em vão). “Lei” é uma espécie de norma, assim como os decretos e as medidas provisórias, entre outros. O legislador constituinte e ordinário fez constar esse termo específico, portanto, por um motivo: as leis, para serem promulgadas, devem passar por um processo rigoroso de análise e aprovação em diversas comissões do Congresso Nacional, além da promulgação presidencial. Isso não acontece com os decretos presidenciais, expedidos à mercê de quem tenha autoridade para tanto.

Por isso, dependendo da delicadeza e relevância do tema, a Constituição estabelece um tipo de norma que o regulamenta, confiando em que, com isso, assuntos mais importantes não serão tocados sem a devida burocracia que, nesses casos, serve para que a sociedade e seus representantes tenham tempo hábil de perceber e impugnar qualquer irregularidade.

Os decretos, por sua vez, expedidos de uma penada, sujeitam os jurisdicionados à discrição de uma única pessoa, enfraquecendo muito o que se chama “segurança jurídica”. Por isso, devem ser usados com cautela, apenas nos casos em que a constituição autoriza.

Não é o caso dos atos que instituíram a “dupla afetação” para os parques de Monte Roraima e Araguaia. A Constituição e a Lei do SNUC são claras ao determinarem que a afetação de unidades de conservação só pode ser alterada por lei. Ambos os decretos do Presidente Lula são, portanto, evidente e vergonhosamente, contrários à Constituição e à Lei 9.985/2000. A alteração do regime de afetação de ambos os parques nacionais só poderia se dar através de lei (específica), com o devido trâmite no Congresso. Qualquer coisa fora disso é inconstitucional e demonstra que ou o Presidente não quer que a sociedade discuta o que ele faz com os parques nacionais ou anda muito mal assessorado juridicamente, o que é ainda mais estranho num texto assinado também pelo Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos.

Até agora, portanto, na vida real, para fora do Mundo de Oz de onde Lula parece governar, “dupla afetação” tem significado apenas que, de uma só vez e por atos ilegais, nossos parques nacionais têm se desnaturado em outra espécie mais branda de unidade de conservação e sido entregues nas mãos de gente que vida da natureza, o que não é bem sinônimo de conservá-la.

Com isso eles foram, sem dúvida, duplamente afetados.

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