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Poder judiciário e meio ambiente: complexidades em uma sociedade democrática

Devido às suas enormes repercussões políticas, econômicas e sociais, as questões ambientais precisam de decisões mais uniformes, com validade em todo o território nacional.

13 de julho de 2007 · 17 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Muito se tem discutido no Brasil sobre a excessiva intervenção do Poder Judiciário em matéria ambiental. Alega-se que os órgãos administrativos de proteção ao meio ambiente, em razão de uma constante intervenção judiciária, perdem o seu papel de agentes de implantação da política ambiental e passam à condição de simples executores de decisões judiciais, ou do Ministério Público. Sustenta-se que os órgãos ambientais passam a ser correias de transmissão de políticas ditadas pelo Poder Judiciário mediante provocação do Ministério Publico. Se são tais afirmações verídicas, até que ponto isto realmente corresponde aos fatos tais como eles são?

Quando os juízes decidem uma questão ambiental eles não o fazem em função de uma especial habilidade, eles o fazem em razão de um expresso mandamento constitucional que contempla a cláusula de ampla submissão ao Judiciário de toda lesão ou ameaça de lesão a direito. Com isto se quer dizer que todos aqueles que se sintam de alguma maneira prejudicados por terceiros podem recorrer a um órgão do Poder Judiciário, expor suas razões e pleitear a adequada proteção. Isto é parte do jogo democrático tal como ele é entendido nos países ocidentais, de cuja tradição, com idas e vindas, “sístoles e diástoles”, somos herdeiros.

Na verdade, a intervenção judicial em questões ambientais em nosso país tem sido até pequena e, em grande parte dos casos, as posições governamentais têm sido mantidas, pelo menos na instância do Supremo Tribunal Federal, que raramente tem negado legitimidade à ação administrativa.

A introdução em nossa ordem jurídica da chamada súmula vinculante é um fortalecimento do poder político do Supremo Tribunal Federal que tende a centralizar mais a atividade judiciária, servindo como um “pré-julgamento” das questões submetidas às cortes “inferiores”. Dado que o STF é uma “corte constitucional” atípica, haja vista que decide questões que dificilmente podem ser classificadas como “constitucionais” entre as demandas efetivamente constitucionais. Não é difícil se imaginar que em futuro próximo teremos súmulas vinculantes sobre matéria ambiental. Como sabemos, tem sido comum a multiplicação de ações ambientais sobre temas palpitantes, tais como a transposição do rio São Francisco e Organismos Geneticamente Modificados. Fazendo um exercício de futurologia judiciária é possível se especular em uma super primeira instância ambiental, cujas conseqüências práticas não podem sequer ser imaginadas. Do ponto de vista do federalismo, o STF tem agido de forma a ampliar as atribuições da União com uma constante redução das competências dos estados federados. Parece-me que vem se desenvolvendo de maneira muito clara um federalismo excessivamente centralizado e no qual a União cada vez mais desempenha o papel central.

Registre-se que se pode notar um movimento descentralizador no Ministério do Meio Ambiente que, no entanto, não se desenvolve com mais firmeza ante a indiscutível falta de recursos dos estados e do próprio ministério.

As questões ambientais têm sido levadas ao Supremo Tribunal Federal com cada vez maior freqüência, seja pelo caminho da ação direta de inconstitucionalidade, seja pelo caminho da Reclamação (avocatória) ou dos Recursos Extraordinários. No caso do controle concentrado de constitucionalidade, a nova redação do Texto Fundamental, conforme estabelecida pela chamada Reforma do Judiciário, introduziu no § 2o do art. 102 o efeito vinculante da decisão proferida tanto para os demais órgãos do Poder Judiciário como para a Administração Pública em seus diferentes níveis . A importância do texto está em que – espera-se – as decisões judiciais passem a ser respeitadas de forma mais efetiva e concreta.

É verdade que a tradição das Adins brasileiras é a da produção de efeitos “erga omnes”, o que implica na obrigatoriedade da decisão para todos, pois o que foi decidido pelo Tribunal diz respeito à própria saúde da norma impugnada, uma vez detectados vícios em sua relação com a Constituição, ela é eliminada do universo jurídico. Aqui a Corte exerce chamado controle abstrato ou concentrado de constitucionalidade, mediante o qual, uma lei em tese, pode ser declarada constitucional ou inconstitucional, conforme seja a natureza da provocação apresentada ao Tribunal. Contudo, existe um longo caminho a ser percorrido entre a declaração de inconstitucionalidade e a sua observância pela administração. Como já foi afirmado acima, a conseqüência da inovação constitucional é indiscutivelmente um amento na tendência centralizadora.

Um outro aspecto extremamente relevante é a introdução do artigo 103-A que alterou radicalmente a natureza dos efeitos do controle difuso de constitucionalidade, isto é aquele controle de constitucionalidade que se exerce na base do caso a caso, processo por processo. Segundo a nossa tradição constitucional, tal tipo de controle de constitucionalidade somente seria capaz de produzir efeito entre as partes do processo. Assim, se determinado imposto foi considerado inconstitucional pela via do controle difuso, aquela parte que propôs a ação judicial perante o Poder Judiciário está isenta de seu pagamento, os demais contribuintes deverão pagar o tributo ou propor uma ação judicial semelhante perante o Poder Judiciário e aguardar uma decisão semelhante.

O inovador foi o fato de que, mesmo em processos de natureza individual e nos quais seja exercido o controle difuso de constitucionalidade, será possível se definir a questão de forma a atender a uma comunidade mais ampla e não meramente as partes de determinado processo. “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.” De acordo com o determinado no § 1o do art. 103-A “ A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.”

Assim, a perplexidade da sociedade diante de decisões judiciais com conteúdos absolutamente diferentes para casos absolutamente iguais poderá diminuir.

Merece ser observado que a abrangência da súmula é bastante ampla e a sua inobservância acarreta a anulação do ato administrativo e a determinação para que o administrador publique outro ato administrativo de acordo com o decidido pelo Supremo Tribunal Federal . Assim, os tribunais inferiores, os juizes de primeira instância e a própria administração (federal, estadual ou municipal) ficam inteiramente vinculados ao decidido pela Corte Suprema.

O que a CF afirma com as regras acima apresentadas é que a cláusula de ampla revisão judicial dos atos administrativos impõe uma severa restrição à discricionariedade administrativa, consistindo na necessidade de estrita observância ao decidido pela Suprema Corte. Não se pode deixar de observar o “absurdo” da norma constitucional, pois em última análise ela nos afirma que uma decisão judicial deve ser respeitada e obedecida!

Bem se vê que o Poder Judiciário e, em especial o STF, passaram a dispor de um imenso poder ante a nova norma Constitucional, e que nunca foi desfrutado pela Corte e que, certamente, será exercido com moderação, como tem sido a tradição do Tribunal. De certa forma e, guardando-se as devidas proporções, é um sistema bastante semelhante ao dos precedentes judiciais utilizados nos paises de tradição jurídica anglo-saxônica, nos quais os precedentes têm força obrigatória.

O fortalecimento do Poder Judiciário corresponde aos anseios de uma sociedade democrática. No caso que estamos examinando, houve antes um fortalecimento da cúpula do Poder Judiciário do que um fortalecimento do próprio Judiciário como um todo. Seria equivocado antecipar uma tendência para as questões que, eventualmente, possam demandar uma decisão do STF, contudo, parece cada vez mais claro que, diante das enormes repercussões políticas, econômicas e sociais das questões ambientais que elas necessitem cada vez mais de decisões uniformes e que possam ter validade para uma base territorial mais ampla e, até mesmo, nacional. Isto se demonstra pela intensa movimentação entre os especialistas pela produção de um Código de Processo Coletivo que, necessariamente, contemplaria as questões referentes à abrangência de decisões em casos de lesão generalizada e multi-localizada.

1 “As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.”

2 § 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.”

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