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Não mata, mas deixa encalhar

Ainda há quem pense que salvar baleias não é ético, enquanto há seres humanos pobres e famintos. Será difícil entender que dependemos dos recursos naturais?

13 de setembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Como se não bastasse ver as diversas formas de contaminação das águas, graças a atividades humanas, afetando as migrações das baleias e provocando encalhes e mortes atrozes nas praias, agora uma escritora de certa importância proclamou que esses pobres animais, vítimas da cobiça e do descaso do ser humano, não a emocionam. Na verdade, o fato de esses seres não despertarem os bons sentimentos daquela senhora não teria nenhuma importância, se ela não propagasse seu desamor em revista de grande circulação nacional.

O problema, claro, não são as baleias. A autora da desafortunada nota retrocedeu quase um século, propagando sua incompreensão da estreita relação entre a pobreza, que tanto comove seu aparentemente frígido coração, e a conservação da natureza ou, para ser tão frio como ela, dos recursos naturais renováveis, dos quais as baleias fazem parte. Seu ponto de vista reflete a mensagem ultrapassada de que apenas o homem é importante e merece investimentos e esforços. Ela parece não ter entendido que o bem-estar da humanidade, inclusive o dos pobres, depende estreitamente da natureza que a sustenta. Da baleia dependeram grandes setores da economia mundial por séculos, e ainda hoje ela é uma extraordinária fonte de desenvolvimento, através do turismo. Salvar, ou melhor, tentar salvar as baleias encalhadas, é apenas um símbolo de que muitos, no Brasil, compreendem os fatos mencionados, que a escritora pretendeu reduzir ao absurdo.

Outra coisa seria se ela tivesse apontado sua caneta contra o absurdo, isso sim, de gastar pequenas fortunas em academias de yoga para reduzir o stress canino, em salões de beleza e consultórios médicos exclusivos para cachorros e gatos. Existe, obviamente, muita distância entre salvar as baleias e gastar dinheiro e talento para embelezar ou cuidar de animais domésticos, ou efetuar complexas cirurgias que não existem para a maior parte dos humanos. Mas esse é outro tema. E se a senhora que criticamos tivesse falado disso, em vez de falar de baleias, esta nota não teria sido escrita.

Para não ser tão frio como a autora, vamos evitar usar o argumento de que existem muito poucas baleias, enquanto o ser humano está sobrando no mundo tudo. Mas ela deveria saber que uma baleia a mais ou a menos faz uma grande diferença na minguada população desses animais. Portanto, se, por culpa do ser humano, apenas são salvas duas ou três dentre cinqüenta desses animais encalhados, isso pode representar a sobrevivência de alguma espécie. E é por esta razão que tanto esforço para salvá-las faz diferença. Falando de recursos naturais renováveis vivos, o que importa é a espécie, e o maior crime possível, inclusive contra a obra divina, é eliminar uma espécie da face da Terra, pois nós os humanos não temos o poder de fazê-la voltar. Em princípio, apenas o Criador tem essa prerrogativa, e nem isso deve ser fácil, pois de outro modo Ele não teria ordenado a Noé construir a Arca para salvar do Dilúvio Universal um casal de cada espécie… mesmo que naquela época as baleias já soubessem nadar.

Os caminhos divinos, no fundo, se parecem muito com os terrenos. Por isso, o Ibama, ignorando a falta de emoção da autora do desatino, iniciou estudos junto à Agência Nacional do Petróleo para determinar a relação entre a prospecção sísmica de hidrocarbonetos e o aumento atual de encalhamentos. Também tem tomado medidas preventivas. O Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro está treinando novas técnicas para os casos de encalhamento. O mesmo está sendo feito na Universidade do Vale do Itajaí (Santa Catarina). Nenhuma das instituições ou pessoas envolvidas nesses esforços tem sentimentos anti-sociais ou se importam mais com os bichos que com gente. Tampouco são cruzados da luta contra a “crueldade com os animais”. Apenas, eles sabem que as baleias são espécies importantes para o bem-estar da humanidade e que têm direito a uma pequena porção dos mares do planeta.

A relação imoral ou amoral que a autora pretende estabelecer entre as campanhas a favor dos animais e a falta de atenção aos meninos de rua, ou aos mortos na calçada, carece de lógica. Ou melhor, ela simplesmente não existe. Os recursos biológicos, todos, são necessários para reduzir a pobreza e oferecer melhor qualidade da vida aos humanos, especialmente aos pobres, que dependem mais estreitamente deles que os ricos. Cada baleia gera muitos postos de trabalho ao longo da costa brasileira, em hotéis e restaurantes, em agências de turismo, em aluguel de carros e barcos, em guias de turismo, em passagens de avião. Se a população destes animais fosse maior, até poderiam outra vez ser capturados, produzindo carne de primeira qualidade e dezenas de outros produtos, aportando ainda mais oportunidades de trabalho e de desenvolvimento econômico e social. A proteção de espécies em processo de extinção não está em contradição com a ética cristã. É parte dela.

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