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Os biomas esquecidos

Nada contra a criação de unidades de conservação a cada 5 de junho ou Dia da Árvore. Mas tudo contra a política do governo de dar prioridade à Amazônia e às reservas extrativistas.

21 de julho de 2008 · 16 anos atrás
  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

“Amazônia de bêbado não tem dono”.
Jaguar, em frase eleita a melhor da semana (OESP 4/maio/08)

Mais um Dia do Meio Ambiente e, mantendo a tradição, são decretadas novas Unidades de Conservação como prova do compromisso governamental em cuidar do meio ambiente. E Lula, mantendo a tradição, coroa a cerimônia com uma pérola, dizendo que a Amazônia é como “aqueles vidros de água benta que tem na igreja, todo mundo acha que pode meter o dedo”. Na realidade está mais para outra coisa onde outros têm que meter o dedo para que o dono saiba que está doente.

Nada contra criar UCs a cada 5 de junho ou Dia da Árvore, muito pelo contrário. Mas tudo contra alguns vícios que tem conduzido o processo nos últimos anos.

Todas as UCs criadas estão na Amazônia, e de três, duas são reservas extrativistas. Duas outras UCs que não foram criadas por conflitos de interesses também, uma na Amazônia e outra na Mata Atlântica. Novamente as resex imperam na preferência governamental.

Do que foi decretado só acho louvável a criação do Parque Nacional do Mapinguari, adjacente à Estação Ecológica (estadual) Mujica Nava, em Rondônia. Local onde vi a diferença que faz não existir gente detonando os bichos. Mutuns entravam no acampamento para ver o que acontecia e macacos-barrigudos, além de comuns, ficavam nos olhando ao invés de sumirem o mais rápido possível porquê sabiam que o chumbo vinha logo atrás.

Coisas impensáveis em boa parte das Terras Indígenas e das reservas extrativistas. Oxímoro que junta reservar com extrair. Forma deturpada de reforma agrária que, por conta de ideologia anacrônica, um mártir conveniente e excesso de credibilidade da opinião pública, ganhou máscara ambiental.

Afinal, um dos mitos tão queridos da esquerda latina é o bom selvagem e desde sempre esta vê nos descamisados que vivem no mato os iluminados que sabem algo que o podre capitalismo nega aos urbanóides. E enquanto o proletariado rapidamente sobe para a Classe C e vira burguês, índios, campesinos e caboclos se tornaram a esperança de fazer a revolução que nos levará ao paraíso da propriedade comum tutelada por uma nomenklatura. Estranhamente similar a teocracias como as reduções jesuíticas ou o império inca, o que explica o apoio entusiasmado da igreja católica a essa turma.

Reservas extrativistas não são unidades de conservação, mas como vimos neste 5 de junho continuam a ser vendidas como tal, surrupiando tanto áreas como dinheiro que deveria estar sendo destinado à conservação de verdade.

A criação das duas resex e as outras que estão no pipeline mostra como o que deveria ser um processo baseado em boa Ciência (conservação de recursos naturais), avaliando o que funciona ou não, acaba dirigido por ideologias que, francamente, deveriam ter ficado lá atrás. Contra todas as evidências, dos pastos na resex Chico Mendes à extração madeireira em rio Cautário, se entregam vastas áreas sob a justificativa que as populações tradicionais vivem em harmonia com natureza, fizeram voto de pobreza perpétua e irão ser os grandes e eternos defensores da floresta. Má fé de uns e idiotice de outros que se mantém entranhadas nas políticas públicas. É como se a política nacional de combate a AIDs fosse na onda dos sapientes witch doctors sul africanos e optasse por sopinhas ao invés de anti-virais.

O MMA já argumentou que a área (mas não o número !) de UCs destinadas a proteção integral é equivalente à destinada a UCs de “uso sustentável”, o que é verdade. O diabo mora nos detalhes. Se forem consideradas as ecorregiões mais destruídas da Amazônia – como a área a leste do rio Tocantins, os manguezais do Pará e os manguezais do Maranhão – há uma tremenda falta de UCs de proteção integral. Aquelas sob maior pressão estão longe de serem adequadamente representadas. De fato, nas últimas só há resex. Há “amazônias” inteiras esperando proteção adequada.

Conservação é uma coisa, dar posse da terra a quem nela vive é outra. Podem até ser objetivos compatíveis, conforme as circunstâncias, mas a última está longe de assegurar a primeira.

Um item interessante foi ver Lula apregoando que homologou 10 milhões de ha de Terras Indígenas como se isso fosse equivalente a conservar esta extensão toda. Desde quando Terras Indígenas se destinam à conservação ? Ok, as áreas de alguns grupos têm baixas taxas de desmatamento, mesmo quando pressionadas, e há aqueles que têm postura firme no combate a madeireiros e outros marginais, como também têm alguns latifundiários não-índios.

Mas há outros grupos que alegremente estão vendendo sua madeira, aceitando carvoarias em seu território e arrendando áreas para os sojeiros (como em Mato Grosso). Terras Indígenas podem até ajudar no presente, mas não são garantia de conservação no futuro. Às vezes, nem mesmo no agora.

É tanto injusto como irresponsável jogar nas costas destas populações nossas expectativas sobre como eles devem se comportar. Índios e demais “tradicionais” são gente – com todas as implicações disso – e tem todo direito de, se puderem e quiserem, comprar uma Ferrari e ter padrão californiano de consumo. Tanto quanto de continuar no paleolítico. Imaginar índios e caboclos hiper-reais padrão bom selvagem ecologicamente correto é como acreditar em duendes. Transformar isso em esteio de política de conservação é estúpido. Mesmo assim áreas importantes têm sido entregues a quem tem carta branca para destruí-las, como acontece nas áreas invadidas por índios na Mata Atlântica.

Bioma que está na berlinda. Levantamento divulgado pouco antes do 5 de junho mostra que sobram meros 7,2% do bioma mais hiperdiverso do país, bem menos do que o MMA quer nos fazer crer ao somar na conta áreas de capoeirinha, como se um Fusca fosse igual a uma Lamborghini.

O destino da Mata Atlântica é o que se anuncia para a Caatinga. No 5 de junho em que todos os olhos estavam na Amazônia foi anunciado que sobram 40%, muito do qual muito diferente do que seria em um mundo sem gente. Sabemos agora que há uma competição sobre com o que acabaremos primeiro, a Caatinga ou o Cerrado, do qual a CI dizia que sobrava entre 35 e 20% em 2002.

Cerrado, bioma tão desprezado que os gênios do nosso agronegócio justificam a destruição que causam dizendo que “só ocupam áreas de Cerrado”, e que “passar o correntão em áreas abertas não pode ser considerado desmatamento”. Justificativas aceitas no recente arrego federal quanto à restrição de crédito a propriedades irregulares localizadas na transição entre Cerrado e Amazônia, exatamente a faixa onde está o máximo da biodiversidade (Leia artigo Maria Teresa Jorge Pádua).

Cerrado que, vale lembrar, fornece 94% da água que flui na bacia do São Francisco e 71% da vazão da bacia do Tocantins. Só a extrema estupidez explica porquê se fala em transposição do São Francisco enquanto o que mantém os únicos afluentes perenes da bacia no oeste da Bahia some sob mares de soja e algodão que se espalham em uma terra sem lei (ambiental). Ou se tolera o que fazem nas cabeceiras do Araguaia e do Tocantins na casa da sogra goiana.

Pessoalmente acho que as Matas Secas (Leia matéria de O Eco) irão desaparecer antes, transformadas em carvão para abastecer as guseiras de Minas Gerais, as grandes consumidoras do carvão ilegal vindo de lugares ao distantes como Mato Grosso do Sul. Guseiras que até estavam se enquadrando, mas que outro arrego permitiu se beneficiarem da ilegalidade. Ou talvez os Campos Sulinos, submersos em um mar de pinus que se espalha graças a mais arregos (Leia matéria). Alguém em Brasília liga para estes ecossistemas ? Parece que não.

No início do governo Lula algumas UCs foram criadas nos esquecidos biomas extra-amazônicos. A maioria proposta no governo FHC, muitas aparecendo no site do IBAMA para consulta pública no final daquele. Mas o sociólogo da USP não assinou os decretos e o processo só foi retomado no governo molusco sob a ministra seringueira. Apesar de jurar na sua posse que daria atenção a todos os biomas, a realidade foi outra.

Embora no início tenham sido criadas UCs importantíssimas como aquelas nas Florestas de Araucária o resto dos mandatos foi pífio no quesito tapar buracos na rede de áreas protegidas. Ainda hoje esperamos a criação de UCs que foram anunciadas há anos, como os parques nacionais Boqueirão da Onça, Canyons do São Francisco e Campo os Padres, o refúgio de vida silvestre em Boa Nova, e as 6 ou 7 áreas no Cerrado que juraram que seriam criadas logo depois do anúncio que o bioma sumiria em 2030, escândalo rapidamente esquecido. Como o do projeto de “carvão sustentável” na piauiense Serra Vermelha, que também deveria ter virado parque faz tempo. Também ficou só na vontade um sistema de UCs marinhas, como as propostas para várias ilhas cariocas e paulistas, e que no Brasil ocupam extensão patética.

O que temos é o tom monocórdio da crise do desmatamento na Amazônia, que concentra todas as atenções e olhares e faz esquecer os outros biomas. O IBGE acaba de divulgar dados que falam por si. O Pantanal representava apenas 0,6% da área das UCs federais de proteção integral em 2006. A Caatinga, 0,9%. Já o bioma amazônico, 80,3%. Por aí vai.

Longe de dizer que a Amazônia não é importante. Ela é. Mas o amazonismo do MMA (apesar de ter tido um capo oriundo da Mata Atlântica) estreitou sua ação e drenou os esforços para salvar biomas que estão em situação muito mais precária. Isso é visível no emperramento da criação de UCs extra-amazônicas de proteção integral. E até agora não há indícios de que isso vai mudar.

Enquanto isso 1: apesar do relaxamento das medidas de restrição de crédito à banda podre do agronegócio, seus representantes no Congresso correm para aprovar decreto legislativo que elimina todas as restrições impostas pelo decreto 6321. Segundo a senadora Kátia Abreu, mãe da coisa, o decreto que tenta tirar dinheiro público da marginália “ofende a livre iniciativa” (FSP 05/jun/2008, A16).

Empresários que vão do PCC a pequenos traficantes de drogas, neo-escravagistas, comerciantes de produtos roubados & boa parte do pessoal que está Catanduvas certamente podem utilizar o mesmo argumento para não só legalizar suas atividades como conseguir recursos públicos para financiá-las.

Enquanto isso 2: para tentar barrar a aprovação da proposta de emenda constitucional (PEC) do deputado Mendes Thame, que prevê a expropriação de terras na Amazônia de fazendeiros que não cumprirem a lei preservando 80% de suas áreas (meus sinceros parabéns pela idéia), o deputado Gerson Peres apresentou um voto em separado que é cópia literal de uma parecer técnico da Confederação Nacional da Agricultura (CNA): com carimbo e tudo da entidade sindical (O Globo 4/jun/2008, 3).

Realmente está tudo dominado.

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