Reportagens

O triste saldo da destruição do grande museu brasileiro de história natural

Perdeu-se o crânio de Luzia, a "primeira brasileira", fósseis de dinossauros, milhões de insetos e invertebrados, 700 antiguidades do Egito e muito mais

Peter Moon ·
3 de setembro de 2018 · 6 anos atrás
A fachada do prédio resistiu. Já o acervo… Foto: Erick Dau/Farpa.

Há exatos 40 anos, em julho de 1978, o descaso do poder público e do empresariado cariocas com a cultura e o patrimônio histórico do Rio de Janeiro fez uma primeira vítima: o Museu de Arte Moderna (MAM) que, atingido por um incêndio, perdeu mais de 90 por cento de seu acervo. O fogo consumiu cerca de mil obras, entre elas trabalhos de Pablo Picasso, Joan Miró, Henri Matisse, René Magritte, Salvador Dalí e dos brasileiros Cândido Portinari e Di Cavalcanti. Sobreviveram apenas 50 obras, em boa parte esculturas. Aquela perda irreparável de um patrimônio artístico único, percebe-se agora, não serviu de lição. Desta vez foi o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, o mais antigo museu de história natural da América do Sul, fundado por Dom João VI em 1808, há exatos 200 anos, comemorados em junho.

Na noite de domingo, 2 de setembro de 2018, um incêndio de grandes proporções consumiu parece que totalmente o prédio principal do museu, um palacete colonial que serviu de palácio imperial para Dom Pedro II e sua família.

Em termos históricos, portanto, a destruição do Museu Nacional é comparável à perda do Louvre ou de Versalhes, os dois palácios parisienses dos reis de França.

“Palácios podem ser reconstruídos à sua antiga imagem e semelhança. Coleções científicas, uma vez perdidas, o são para sempre.”

Em termos culturais e científicos, a dimensão da perda é incomensurável. Palácios podem ser reconstruídos à sua antiga imagem e semelhança. Coleções científicas, uma vez perdidas, o são para sempre. O Museu Nacional era depositário do maior acervo de espécimes da flora e da fauna da América do Sul.

Felizmente salvaram-se as coleções de invertebrados e de vertebrados, e a coleção de botânica, todas instaladas há 30 anos em um edifício anexo não atingido pelo fogo. O valor científico destas coleções que se salvaram é imenso, assim como descomunal é o valor de tudo o que se perdeu. A seguir, um balanço da tragédia.

Paleontologia

A reserva técnica do setor de paleontologia e a ala expositiva do museu abrigavam praticamente todos os fósseis de plantas e de animais, vertebrados e invertebrados, descobertos no Brasil ao longo do século 19 e nas primeiras décadas do século 20. Perdeu-se em seis horas de incêndio o testemunho petrificado de dezenas de milhões de anos de evolução da vida no Brasil e na América do Sul.

Entre o patrimônio paleontológico consumido pelo fogo, os primeiros exemplos que me vêm à cabeça são as duas dezenas de fósseis de pterossauros da Chapada do Araripe, em sua maioria descobertos e descritos pelo atual diretor do museu, o paleontólogo Alex Kellner.

Também provenientes dos depósitos calcários do Araripe vinham os milhares de preciosos fósseis de insetos e de plantas, testemunho da fauna que habitava as terras e os mares do Nordeste quando da abertura do oceano Atlântico, há 110 milhões de anos.

Lembro também das dezenas de fósseis de dinossauros e centenas de exemplares da megafauna da era do gelo que habitaram terras brasileiras há 2 milhões de anos.

Entre os dinossauros, havia reconstruções dos esqueletos do Maxakalisaurus e do Uberabatitan, gigantes pescoçudos com mais de 10 metros que habitaram o sudeste brasileiro. Ao seu lado, por anos esteve exposto o esqueleto de um dino carnívoro, o Angaturama, do Araripe. Havia ainda a reconstrução do mais antigo dinossauro brasileiro, o estaurikossauro, uma fera do tamanho de um cachorro que habitou o Rio Grande do Sul há 225 milhões de anos.

Mostra das preguiças-gigantes. Foto: Guilherme Braga Alves/Facebook.

Pairando acima de todo este acervo maravilhoso que encantava e fazia brilhar os olhos das crianças que visitavam a exposição permanente, havia esqueletos dos pterossauros descritos por Kellner, batizados com sugestivos nomes indígenas, como Anhanguera e Tupandactylus.

Já no caso dos animais da megafauna, o que fica na mente são os esqueletos das duas preguiças gigantes e do tigre dentes-de-sabre expostos no saguão principal do museu, local de onde foram montados em 1945 pelos gaúchos Carlos de Paula Couto e Llewelyn Ivor Price, os dois maiores nomes da paleontologia brasileira na primeira metade do século 20.

O grande legado de Paula Couto foi destruído. Eram os fósseis de mamíferos primitivos, entre eles o mais antigo tatu que se conhece, que viveram há 50 milhões de anos em Itaboraí. Os fósseis foram achados no fundo da cava de uma antiga mina de calcário, hoje abandonada, no município homônimo do outro lado da baía da Guanabara. São centenas de delicados fósseis que representam, pura e simplesmente, o principal e mais importante registro de um meio ambiente brasileiro para o Paleógeno, o período geológico que se estende desde o momento da extinção dos dinossauros, há 66 milhões, até 23 milhões de anos atrás.

Não pense que, por serem de pedra, fósseis podem resistir intactos a um grande incêndio. Não podem. Além de a maioria deles ser muito delicada, como os insetos, as folhas fossilizadas e os delgados ossos dos pterossauros, o dano provocado pelas altíssimas temperaturas quase com certeza pôs fim ao grosso das coleções. Sem contar o peso das estruturas do edifício que, ao desabar, destruíram o pouco que, por ventura, ainda restava.

Geologia

Meteorito de Bendegó, o sobrevivente. Foto: Erick Dau/Farpa.

Aí resta um pingo de esperança. Talvez, apenas talvez, boa parte das dezenas de milhares de itens da coleção de pedras, rochas e cristais do Museu Nacional possa ter sobrevivido ao fogo. Já se sabe que na sala dos meteoritos, a primeira que os visitantes conheciam logo ao entrar no museu, o maior meteorito achado no Brasil permanece intacto. Trata-se do Bendegó, um gigantesco bloco disforme e negro, um monólito de ferro com mais de 5 toneladas, que errou pelo sistema solar por 4,6 bilhões de anos até cair no interior da Bahia, onde foi encontrado em 1784, e de onde foi levado ao Rio em 1888.

Se o Bendegó não derreteu durante a exposição ao fogo de 800 graus centígrados, talvez uma parte do acervo geológico do Museu Nacional, aquele com as peças maiores e mais resistentes, tenha se salvado.

Antropologia

Outro departamento onde a perda foi total.

A área de Antropologia do Museu Nacional era dividida em diversos setores. O de Etnologia, por exemplo, guardava máscaras, armas e utensílios do folclore de inúmeros povos indígenas brasileiros, coletados ao longo de dois séculos pelos antropólogos do museu.

Na Antropologia física, a perda que mais salta aos olhos foi o crânio de Luzia, “a primeira brasileira”, achado em 1977 no fundo de uma gruta em Lagoa Santa (MG), onde aquela mulher viveu há 12.500 anos.

O estudo do rosto de Luzia nos anos 1980 pelo biólogo Walter Alves Neves, da Universidade de São Paulo, foi responsável por uma reviravolta no entendimento do povoamento das Américas. A partir da constatação de que as feições de Luzia eram mais assemelhadas às populações negroides africanas do que aos índios americanos, Walter sugeriu que teria havido uma primeira migração humana da Ásia para a América há mais de 13 mil anos. De acordo com Walter, os ancestrais fundadores das linhagens de todas as nações indígenas das Américas teriam cruzado o estreito de Behring muito mais tarde, há pouco mais de 10 mil anos, ao final da última era do gelo.

Crânios. Foto: Guilherme Braga Alves/Facebook.

Mas não foi apenas o crânio de Luzia que se perdeu. Na coleção de esqueletos humanos do Museu Nacional haviam, por exemplo, dezenas de crânios dos índios botocudos. Era deste modo que os colonizadores portugueses chamavam os membros de uma tribo de guerreiros que viviam até meados do século 19 no vale do rio Doce, entre Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia.

Os botocudos, ou “vis aimorés”, como declamado no poema I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, levavam tal alcunha devido aos grandes discos de madeira (os botoques) que costumavam usar no lábio inferior e nas orelhas.

Os botocudos não eram tupis, mas pertencentes ao grupo linguístico macro-jê. Guerreiros, sempre evitaram o contato com o colonizador branco. Para “pacificar” a região do rio Doce, durante o reinado de Dom Pedro II promoveu-se uma guerra contra eles, o que resultou no virtual extermínio de todos os botocudos. A única evidência física da existência daquele povo eram as dezenas de crânios de botocudos guardados no Museu nacional. Eles não mais existem.

Arqueologia

O Museu Nacional era depositário da grande coleção de antiguidades egípcias, gregas e romanas reunida por Dom Pedro II durante as suas viagens pelo mundo no século 19. Lá estava a maior coleção de antiguidades egípcias da América do Sul. Eram mais de 700 peças, entre estátuas, estatuetas, sarcófagos, múmias, e artefatos do dia-a-dia, como um disco de metal polido que servia de espelho para as vaidosas mulheres dos faraós.

Lula gigante. Foto: EBC.

Dos gregos e romanos, desapareceram estátuas e bustos de calcário e bronze, armas, utensílios diversos e preciosas moedas. Por sinal, a coleção de numismática do Museu Nacional estava entre as maiores e mais completas do continente. O níquel, o zinco, ouro, prata e bronze de que eram constituídas suas milhares de moedas formam agora gotas disformes de metal enegrecido, perdidas em meio aos escombros e à fuligem do esqueleto calcinado daquele que foi, por 200 anos, o grande museu de história Natural brasileiro.

Claro está que a perda de um patrimônio tão diversificado, único e importante quanto o do Museu Nacional afeta cada um a seu modo. Eu sofro demais com a perda das coleções paleontológicas e de invertebrados, mas também me revolto com todo o resto que foi destruído.

Já meu enteado, o Dudu, de 9 anos, que teve a chance de visitar o museu há dois anos, ficou pasmo quando soube do incêndio. Ele se entristece por causa dos dinossauros, mas especialmente em relação à réplica in vivo de uma lula gigante de 5 metros, que pairava acima das cabeças dos visitantes no salão onde se viam conchas e caranguejos.

O que resta do Museu Nacional

Escombros. Foto: Erick Dau/Farpa.

A quase totalidade do acervo preservado está na sede do Horto Botânico, um parque anexo onde estão instaladas a Biblioteca do Museu Nacional, e em alguns prédios que abrigam os Departamentos de Botânica, de Vertebrados, de Invertebrados, e o Acervo Arqueológico do Museu Nacional:

Vertebrados

O Museu Nacional é um dos maiores centros de pesquisa de vertebrados da América do Sul. Sua coleção compreende um dos mais vastos e representativos acervos científicos sobre a biodiversidade neotropical existentes em todo mundo. O total do acervo, que se aproxima de 1 milhão de peças, se divide em quatro setores. Há 90 mil anfíbios e 30 mil répteis no setor de herpetologia, 500 mil peixes na ictiologia, 100 mil mamíferos na mastozoologia e 66 mil aves na ornitologia.

Invertebrados 

O setor de entomologia reúne uma das maiores e mais representativas coleções de insetos da América Latina. Foi criado em 1842 e possui 5 milhões de exemplares, ou seja, um quarto do acervo de toda a instituição, como borboletas (ordem Lepidoptera), besouros (Coleoptera), moscas (Diptera), vespas, abelhas e formigas (Hymenoptera), gafanhotos e grilos (Orthoptera), cigarras, percevejos, pulgões e cochonilhas (Hemiptera), libélulas (Odonata), baratas (Blattaria) e traças (Apterygota).

O departamento de invertebrados, de seu lado, abriga um acervo com milhões de exemplares de aranhas, escorpiões e opiliões (Aracnologia), crustáceos como caranguejos, camarões e lagostas (Carcinologia), corais e anêmonas (Celenterologia), estrelas-do-mar e ouriços-do-mar (Equinodermatologia), esponjas marinhas e de água doce (Espongiologia), lesmas e caracóis (Malacologia) e moluscos como mexilhões, ostras.

Dezenas de milhares de exemplares de vertebrados, de insetos e de invertebrados guardados no museu são importantíssimos, pois únicos para a ciência. São os holótipos, os exemplares que serviram de base para a descrição pela primeira vez de novas espécies da Mata Atlântica, do Cerrado, da Caatinga e da Amazônia.

Botânica 

O Departamento de Botânica do Museu Nacional funciona dentro do Horto Botânico, vizinho ao museu.  Seu terreno foi anexado ao Museu Nacional em 1896. Esta área destina-se ao cultivo de plantas e a experiências biológicas. Há construções históricas como tanques e um sistema de canais para canteiros de plantas aquáticas cuja água era suprida por uma caixa d’água que ficava sobre uma torre. Todas estas construções são datadas de 1910. O Horto Botânico possui atualmente uma área de 40 mil m², onde está  instalada uma importante área verde com 20 mil m², constituída por vegetação de vários ecossistemas brasileiros e espécies exóticas.

 

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  • Peter Moon

    Peter Moon é um repórter científico, historiador da ciência e pesquisador da história natural da América do Sul

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Comentários 1

  1. Saulo diz:

    Obrigado pelo texto, Peter. Uma pena. Como sugestão, você poderia fazer um com os museus em atividade em situação de igual descaso – quem sabe não tenham um fim diferente?