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Nem o “fim do mundo” está livre de poluição causada por humanos

Animais que vivem nas águas do arquipélago de Kerguelen, a 3 mil km da região habitada mais próxima, estão contaminados por metais, como cádmio e mercúrio

Evanildo da Silveira ·
20 de março de 2019 · 5 anos atrás
Vista do arquipélago francês de Kerguelen. Foto: Divulgação.

Nem o “fim do mundo” está livre da poluição gerada pela humanidade. Localizado ao Sul do Oceano Índico, a 3.300 km de Madagascar, a região habitada mais próxima, o arquipélago de Kerguelen, formado por cerca de 300 ilhas e ilhotas, está contaminado por metais, como cádmio e mercúrio, cobre e zinco. A constatação é do pesquisador brasileiro Caio Vinicius Cipro, pós-doutorando no Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), em dois estudos que realizou na Universidade de La Rochelle, na França, em parceria com cientistas de lá.

De origem vulcânica, Kerguelen está a 4 mil quilômetros ao sul da Índia e 2 mil quilômetros ao norte da Antártida. O arquipélago pertence àquele país e administrativamente faz parte das Terras Austrais e Antárticas Francesas (TAAF). Atualmente há uma estação científica e estruturas associadas a ela. “Há também atividade pesqueira em função da zona de exploração econômica exclusiva da França”, diz Cipro. “Biologicamente há inúmeras espécies de aves e mamíferos marinhos que estabeleceram colônias na ilha e tantos outros, além de quantidades importantes de peixes e invertebrados graças à elevada produtividade primária de alimentos local. Há ainda diversas espécies introduzidas pelo homem, como, por exemplo, ratos e renas, e algumas plantas.”

Ele conta que a ideia do estudo surgiu durante um período em que ele trabalhou como pesquisador convidado na Universidade de La Rochelle. “Meu supervisor à época, professor Paco Bustamante, havia me contado sobre um conjunto de dados que ele havia obtido anos antes, no qual começou a trabalhar durante seu próprio doutorado e cuja publicação nunca teve tempo de levar adiante”, diz. “Eu me ofereci para realizar a tarefa e escrever a publicação.”

Cipro passou então a estudar a ocorrência de quatro elementos químicos (cádmio, cobre, mercúrio, zinco e selênio) em mais de 30 espécies de invertebrados e peixes, a maioria de nível trófico (da cadeia alimentar) mais baixo. O objetivo era entender como se comportam as concentrações desses poluentes inorgânicos nesses níveis mais baixos que vão influenciar organismos acima deles na cadeia alimentar.

O primeiro estudo de Cipro foi realizado em 2014, logo depois que ele chegou na França, em amostras que haviam sido coletadas pela equipe de Bustamante nos verões austrais de 1997 e 1998. O cientista brasileiro analisou a contaminação por metais numa espécie de ave, o petrel pardela-preta (Procellaria aequinoctialis). “Constatamos contaminação por cádmio, cobre, mercúrio, selênio e zinco”, conta. “Um artigo sobre o trabalho foi publicado, em 2016, na revista científica Polar Biology.”

Amostra de peixes contaminados por metais. Foto: Divulgação.

A segunda pesquisa foi realizada em 2018 e rendeu outro artigo, publicado na mesma revista. “Neste caso, analisamos os níveis de contaminação dos mesmos metais, como exceção do selênio – não havia condições na época de fazer isso com esse elemento no laboratório da Universidade de La Rochelle – em 18 espécies de peixes e 11 de invertebrados”, explica Cipro. O resultado do trabalho também apontou a contaminação dos animais pelos metais.

De acordo com Cipro, o que se pode concluir dos resultados das suas pesquisas é que nesse caso específico de Kerguelen, os valores de cádmio variaram muito mais que os de mercúrio (quatro ordens de magnitude contra uma) e dependeram mais da especificidade na ecologia alimentar e no habitat do que do nível da cadeia alimentar pura e simplesmente.

Em outras palavras, os resultados dos estudos mostraram que, ao contrário do que ocorre na maioria dos casos, as concentrações de poluentes encontradas nos animais dependiam pouco da posição deles na cadeia alimentar, mas mais de mecanismos específicos de fisiologia e exposição, de tal modo que predadores de níveis tróficos mais baixos podiam estar mais sujeitos a alguns contaminantes do que outros de posições mais altas.

Isso significa, segundo Cipro, que trabalhos com espécies de maior nível trófico ou sentinelas precisam de estudos de ecologia alimentar mais aprofundados antes de se tirar certas conclusões e que a na cadeia alimentar por si só não significa muita coisa nesse ambiente. “Além disso, minha pesquisa fornece bases sólidas sobre a exposição a que predadores estão sujeitos, já que na maioria dos casos essa discussão permanecia no terreno hipotético por falta de dados de campo”, explica.

O trabalho mostrou ainda uma possível influência de uma fonte secundária local de contaminantes, provavelmente as próprias colônias de aves, hipótese confirmada em ambiente antártico durante seu projeto de pesquisa atual. Dando mais detalhes, Cipro explica que os metais analisados têm fontes naturais, mas a atividade humana certamente tem um papel maior que elas de um modo geral. Para o mercúrio, por exemplo, estima-se que as emissões atuais sejam de três a cinco vezes maiores do que antes da era industrial. Esse elemento pode chegar ao arquipélago de Kerguelen vindo de despejos feitos por fábricas localizadas a 10 mil quilômetros de lá.

Apesar disso, localmente, além de colônias de aves, algumas outras fontes naturais podem ser significativas, como, por exemplo, certas rochas e combustíveis fósseis. “No caso das colônias de aves, alguns trabalhos que propus sugeriram e posteriormente confirmaram o papel delas como fonte local e relevante de alguns elementos e também de poluentes orgânicos”, diz Cipro. “Em Kerguelen, levantamos essa hipótese, comparando mexilhões de dentro e de fora do Golfo do Morbihan, e ela pareceu ser confirmada pelos resultados obtidos.”

Colônia de pinguins no arquipélago francês de Kerguelen.

 

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