Reportagens

Governo institui anistia prévia a criminosos ambientais

Decreto publicado como parte das medidas de 100 dias do governo Bolsonaro aumenta burocracia para aplicação de multas ambientais e favorece infratores

Cristiane Prizibisczki ·
14 de abril de 2019 · 5 anos atrás
Decreto cria burocracia extra para o Ibama. Foto: Felipe Werneck/Ibama.

A promessa do presidente Jair Bolsonaro (PSL) de acabar com as multas ambientais e tirar o Estado do “cangote do produtor” caminhou mais um passo para sua concretização na última quinta-feira (11). Na esteira de decretos publicados em edição extraordinária do Diário Oficial como parte das medidas de 100 dias de governo, o presidente alterou a legislação que dispunha sobre crimes ambientais no país e suas formas de compensação.

Na prática, o decreto nº 9.760 traz duas mudanças importantes na legislação anterior sobre o assunto: a criação de “núcleos de conciliação” para apurar a aplicação de multas ambientais, e modificação do programa de conversão de multas em projetos de restauração florestal.

“Núcleos de Conciliação”

Segundo o decreto nº 9.760, as infrações ambientais serão, a partir de agora, analisadas previamente por um “Núcleo de Conciliação Ambiental”. Isto significa que, antes mesmo de qualquer defesa do autuado, os núcleos de conciliação poderão analisar a multa para confirmá-la, ajustá-la ou anulá-la, caso se entenda que houve alguma irregularidade, após pronunciamento da Procuradoria-Geral Federal.

Caso o processo seja mantido, caberá a este núcleo explicar a multa ao autuado e apresentar soluções para encerrar o caso, como “desconto para pagamento, o parcelamento e a conversão da multa em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente”. Pelo decreto, os descontos podem chegar a 60%.

Atualmente, se um fazendeiro cometeu alguma infração ambiental, ele já pode recorrer administrativamente no Ibama e, caso perca, em outras quatro instâncias na Justiça. Com o novo decreto, o infrator ambiental ganhou mais uma facilidade: ele pode optar pela conciliação. Ao ser lavrado o auto de infração, o autuado será notificado a comparecer a uma audiência. Isso caso ele queira comparecer pessoalmente, já que o decreto prevê a conciliação até por meio eletrônico.

Para Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Preservação Ambiental (Proam), a criação dos “núcleos de conciliação” é, na verdade, uma medida de “anistia antecipada” às infrações ambientais e representa a falência funcional das instituições de fiscalização.

Decreto faz parte das comemorações dos 100 dias de governo Bolsonaro. Foto: Alan Santos/PR.

“O governo aponta para a impunidade. Primeiro porque sinaliza que o sistema instituído para multar carece de saneamento posterior, enquanto, na verdade, como poder público, ele deveria capacitá-lo para ser mais eficiente. Segundo, porque esses núcleos estão, pela lei, subordinados à indicação política do governo ”, disse Bocuhy a ((o))eco.

Atualmente, apenas 5% dos cerca de R$ 3 bilhões em multas que o Ibama aplica anualmente são de fato pagas. Ao optar pela conciliação, a instrução do processo sancionador que levará à cobrança da multa é automaticamente suspensa até que a audiência de conciliação seja realizada. Caso o núcleo não aceite converter a multa em recuperação ambiental, como prevê o decreto, o infrator ainda poderá apresentar até três recursos no próprio Ibama ou recorrer à Justiça.

Com uma cifra de cerca de 14 mil infrações anuais aplicadas pelo órgão ambiental federal, resta saber como o “Núcleo de Conciliação” (ou núcleos) atenderá à demanda, de modo a “acelerar os processos ainda na fase inicial e resolver possíveis conflitos”, como o próprio governo defendeu, em nota, por ocasião da publicação do decreto.

“A eficiência do sistema de gestão ambiental estatal do Brasil está em jogo. Se o decreto nº 9.760 de 11 de abril vingar, o Brasil estará instituindo uma medida antiambiental, que representa o desmonte de um dos principais meios de prevenção ao crime ambiental com o qual a sociedade brasileira conta. Favorecerá especialmente os grandes devastadores, com reflexos negativos e riscos para os biomas brasileiros, intensificando as agressões e uso inescrupuloso e predatório das florestas, afetando a biodiversidade, a água, o solo, o ar e diminuindo a possibilidade do pacto intergeracional, pois afetará também as futuras gerações”, defendeu o Proam, em nota.

Conversão de multas

Outra medida do Decreto nº 9.760 é a suspensão da chamada “conversão indireta de multas”, criada em 2017 pela gestão Michel Temer e cujo conteúdo também era criticado por Bolsonaro e pelo Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

A Bacia Hidrográfica do Rio Taquari, que nasce em Mato Grosso e vai desaguando até o estado de Mato Grosso do Sul, seria alvo do ° Chamamento Público do Programa de Conversão de Multas do Ibama. O rio Taquari sofre processo de assoreamento devido ao aumento da atividade agropecuária na região desde a década de 70. Governo suspendeu o programa. Foto: Ubirajara Pires/Ibama.

A proposta original previa que grandes infratores recebessem um desconto caso aderissem a projetos de recuperação de áreas degradadas, com conversão direta ou indireta, sendo o desconto maior no segundo caso. A conversão indireta permitia a um autuado ter desconto de 60% em sua multa caso depositasse os 40% restantes para projetos de recuperação ambiental previamente selecionados pelo Ibama.

Essa medida foi tomada sob o argumento de que, desta forma, era possível viabilizar recursos de vários autuados e direcioná-los a um mesmo projeto, ganhando, desta forma, escala de recuperação.

O problema é que, nesta modalidade de conversão indireta, a implementação dos projetos ficava a cargo de terceiros, na maior parte Organizações Não Governamentais e, como se sabe, o atual governo não quer “dar dinheiro pra ONG”.

Bolsonaro e Salles sempre argumentaram que era melhor dar o desconto maior direto para o autuado. Então, o novo decreto estabelece que “os órgãos ou as entidades da administração pública federal ambiental poderão realizar procedimentos administrativos de competição para selecionar projetos apresentados por órgãos e por entidades públicas ou privadas, para execução dos serviços em áreas públicas ou privadas”. Isto é, agora, o decreto permite que as próprias empresas que infringirem a lei ambiental tenham seus próprios projetos de recuperação.

A conversão indireta – o que inclui projetos de ONGs – não foi extinta, mas está suspensa, já que o novo decreto suprimiu regras de como essa modalidade passará a ser operacionalizada a partir de agora, remetendo o tema a regulação futura.

 

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Comentários 3

  1. Amadeu Leite Furtado diz:

    Esse decreto visa não apenas anistiar previamente os infratores ambientais, mas como diz o artigo primeiro do decreto:
    "….de acordo com o rito estabelecido neste Decreto, com vistas a encerrar os processos administrativos federais relativos à apuração de infrações administrativas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.” (NR)"
    esse novo decreto tem por objetivo também somar-se ao novo Código Florestal, o qual anistiou todos infratores que desmataram antes de 22 de julho de 2008, a redação é clara:… com vistar a encerrar os processos…", ou seja, fará parte dessa comissão conciliadora pessoas alheias ao ilícito, não poderá participar o agente de fiscalização que autuou, não é apenas uma anistia prévia, mas uma anistia retroativa, ampla e irrestrita, complementando a anistia dada qdo da publicação do novo código florestal. O IBAMA e ICMBio tem milhares de autos de infração esperando para serem ainda homologados, não foram nem julgados, penso que o próximo passo é o governo criar qualquer Cálculo Hipotético Universal Técnico Estimativo (CHUTE), para passar a régua e apertar a tecle DEL em milhares de processo de autos de infração, da noite para o dia, os responsáveis diretos que apagaram 3,5 bilhões de anos de evolução da vida no Planeta são inocentados (somos corresponsáveis quando não fazemos nada, quando não deixamos de comer carne, quando apoiamos essas ações, quando compramos madeira da Amazônia para nossas casa etcetecetc). Atualmente é fundamental ouvir as pessoas envolvidas, os fiscais ambientais são sempre chamados como testemunha durante o processo penal, como alguém alheio totalmente ao processo, sem ouvir mais ninguém , apenas o infrator, poderá tomar uma decisão isenta?
    Vamos imaginar a seguinte situação: você está no semáforo com seu carro, um criminosos chega de moto e anuncia um assalto, voce desesperado acelera, o assaltante atira, voce morre. Antes do julgamento, o assassino é chamado para uma audiência de conciliação e é ouvido. A narrativa do criminoso: "… então autoridade conciliadora, eu realmente não tenho culpa, eu fiquei viciado em crack, estava locão precisando da droga, estava fora de mim, nem percebi que atirei, na verdade era só pra assutar, foi sem intenção, eu estava precisando de dinheiro pra comprar leite pro meu filho, eu desmatei porque preciso atender uma demanda do Financiamento, não tinha conhecimento da lei, não sabia que beira de rio era APP, foi só um corte seletivo de árvores sem valor, desmatei porque minha família precisa comer, estou com dívidas no banco, comprei a fazenda e preciso tornar ela produtiva, os agricultores são os que mais preservam, usamos só 10% do Brasil pra produzir, aqui era um pasto degradado, não sou criminosos autoridade conciliadora, sou um pai de familia , produtor rural carinhoso e amigo….
    poderia listar milhares de justificativas, mas qualquer uma delas não tem valor quando atravessamos o limite da lei, e se atravessamos o limite da lei, ah…alteramos o limite, aumentamos o limite, como se a natureza fosse um atleta de olimpiada em salto em altura e forçamos a natureza sempre saltar mais alto, foi o que fizemos com o limite aceitavel de glifosato na soja, no início dos transgênicos, foi o que fizemos com o novo código. E assim vamos bovinamente caminhando ate o fim do tortuoso corredor do matadouro.


  2. João diz:

    Parabéns pro novo governo. Está conseguindo fazer o que prometeu, acabar com a política ambiental do país … Lamentável !!


  3. Lucas diz:

    Até onde eu sei, bandido tem que pagar pelos os seus crimes e não o Estado ficar incentivando a cometer mais. Daqui a pouco as empresas que desmatam vão ter desconto de 100% das suas multas e ainda nem a obrigação de recuperar as áreas desmatadas.