Reportagens

Filhos de Madre de Dios

Atividade garimpeira na Amazônia peruana iniciada há mais de 50 anos intensifica-se com asfaltamento da estrada Interoceânica Sul. Devastação está fora de controle.

Maria Emília Coelho ·
8 de novembro de 2010 · 13 anos atrás
Vista aérea da devastação em Guacamayo, Peru. (fioto: Enrique Ortiz)
Vista aérea da devastação em Guacamayo, Peru. (fioto: Enrique Ortiz)

Julho de 2007. Um ônibus me levava pela primeira vez de Cusco, no Sul do Peru, à Puerto Maldonado, capital de Madre de Dios, a 230 quilômetros da fronteira com o estado brasileiro do Acre. Após horas viajando pelo caminho de terra curvilíneo e íngreme que une os Andes à Amazônia, noto um movimento dos passageiros. Pergunto ao motorista: Por que estão descendo se ainda não chegamos a Puerto? “É o KM 98, quebrada Guacamayo, e tem muito ouro por aqui”. Três anos depois, a estrada é asfaltada, o tempo da viagem encurta, e o igarapé vira uma amostra do garimpo em sua face mais descontrolada e devastadora.

Hoje, estima-se que cerca de 300 pessoas cheguem por dia à Madre de Dios. A maioria vem das regiões pobres da cordilheira andina em busca de trabalho nas áreas de extração do minério. São estimuladas pela facilidade de acesso gerada pela construção da rodovia Interoceânica Sul, que liga o Acre aos portos do Pacífico, rasgando as montanhas peruanas. E pela subida do preço do ouro, que bateu recordes nos últimos tempos graças à crise econômica mundial.

Em três anos, ao menos 10 mil pessoas já passaram por Guacamayo, que avançou mais uns 15 quilômetros da via. Na beira da estrada, o pequeno acampamento se transformou em uma caótica vila de barracas construídas com lona azul e madeira barata. Nelas estão o comércio de combustíveis e insumos para mineração, além de hotéis, cantinas, bares e prostíbulos.

Como uma espécie de Serra Pelada deste século, os garimpeiros peruanos repetem a tragédia brasileira dos anos 1980: desbravam a floresta com a ânsia de encontrar o valioso metal, e a convertem rapidamente em um imenso deserto possível de ser visto do céu.

No Velho Oeste

A exploração do ouro em Madre de Dios teve início há mais de 50 anos, quando a estrada era só lama e poeira. “Antes viajávamos duas, três semanas à Puerto Maldonado. Hoje fazemos em menos de um dia”, conta Dante Olivera, um jovem cusquenho com 15 anos de garimpo que conheci em uma das minhas “incursões” pelos vários centros mineiros da região.

Adentrar as zonas de Guacamayo, Huepetuhe e Delta 1 é como invadir o território inimigo. Nesses lugares, a presença do Estado é praticamente inexistente, em um ambiente de filme de faroeste. Terras com suas próprias leis, onde jornalista quase sempre é persona non grata.

“Foto agora só quando eu falar”, orientou Dante, zelando pela minha vida em Guacamayo. Depois de ter sua confiança, perguntei se ele tem consciência que está destruindo o meio ambiente. “Claro que tenho, mas não há trabalho em meu país. Aqui também chegam profissionais, gente instruída, que simplesmente não encontra emprego na cidade. E trabalhar na selva não é fácil. É bem perigoso, Maria. Qualquer dia posso amanhecer morto”, respondeu com sinceridade.

O trabalho é de fato pesado e sem nenhuma cautela em relação à mata, à água e à segurança dos trabalhadores. Garimpeiros removem a vegetação com machado e motosserra, e abrem buracos no chão com jatos d’água que saem de uma mangueira gigante. Tem que haver muita pressão para desmoronar a terra e abrir cada vez mais o buraco. A qualquer vacilo, a mangueira pode se descontrolar. O bico do jato, que tem muitos quilos, pode atingir a cabeça de alguém. Se isso acontecer é morte na certa.

Outra mangueira controla a bomba de sucção ou “maraca”, que chupa a água do buraco misturada com a terra, e a despeja em uma espécie de escorrega de madeira coberto com um carpete cinza. É aí que são retidos a areia, e o ouro. Para separá-los, mercúrio. O metal líquido extremamente tóxico é queimado e jogado no ar, no solo e nos rios, contaminando fauna, flora e homens. Um estudo da Caritas do Peru estima que em Madre de Dios sejam usados mais de 50 toneladas de mercúrio por ano.

Nigthclubs

Mesmo assim, para alguns, o negócio compensa. Se trabalhar duro e tiver sorte, o mineiro fatura em um dia o que ele não ganharia por mês em um emprego público, por exemplo. Mas, detalhe: “Na selva se ganha bem, mas também se gasta. A rotina aqui é trabalhar, pegar o ouro, e sair para tomar umas com as meninas malcriadas”, brinca Dante, tocando, na verdade, em assunto muito sério: prostituição infantil e tráfico de pessoas.

Adolescentes de 12 a 17 anos, vindas de outras partes do Peru, mas principalmente da serra, são ludibriadas com “boas” ofertas laborais como babás, vendedoras, garçonetes. Quando chegam a Madre de Dios, descobrem que o trabalho é nos “nigthclubs” dos garimpos, em um caminho, na maioria das vezes, sem volta.

Estes bares funcionam 24 horas e têm nomes sugestivos como “Las garotitas” e “Tu lugar de placer”. “As meninas acabam violadas e endividadas, tendo que devolver todo o gasto que seus patrões investiram. Sem dinheiro, não conseguem mais sair dessa vida”, explica Oscar Guadalupe, que dirige o albergue da Associação Huarayo, o único que ampara menores em situação de risco nestes garimpos. De outubro de 2008 até hoje, mais de 70 adolescentes já foram atendidas no lugar.

Números do garimpo

A produção mineira em Madre de Dios é completamente informal, mas milionária. Em Heupetuhe, onde chegaram os primeiros serranos atrás do sonho dourado, há mais de 30 anos, homens-carregadores foram substituídos por retroescavadores, em uma mineração que já não deveria mais ser considerada artesanal ou pequena. No lugar, que hoje serve como exemplo de desastre ecológico no planeta, ao menos 70% da atividade aurífera é semi ou totalmente mecanizada.

Segundo o Ministério de Energia e Minas, em 2008 foram produzidas no departamento 16 toneladas de ouro, no valor aproximado 500 milhões de dólares. No mesmo ano, o Estado recebeu apenas 47.800 soles (menos de 18 mil dólares) em tributos dos mineiros. É evidente que quase toda a produção não aportou os impostos correspondentes. Esse ouro representa 9,5% do que é produzido no Peru, o quinto país do mundo no mercado do metal.

O número do estrago ambiental na região, segundo o ministro Antonio Brack, do recém criado Ministério do Meio Ambiente do Peru, é 18 mil hectares. Até março de 2009, o Instituto Geológico, Mineiro e Metalúrgico havia entregado 1.592 concessões mineiras, e somente 19 continham estudos de impacto ambiental aprovados.

Ação e reação

Vista de Guacamayo. (foto: Enrique Ortiz)
Vista de Guacamayo. (foto: Enrique Ortiz)

A grandeza do problema exige cada vez mais ação do governo peruano. Em fevereiro deste ano, foi publicado um decreto de urgência que suspende os petitórios mineiros em Madre de Dios, e que proíbe a operação das “dragas”, tipo de garimpo que usa embarcações que aspiram o fundo dos rios. “Vamos permitir a atividade somente em 9% do território”, declarou o ministro.

Os assentamentos avançam no sentido dos parques e reservas nacionais, e das comunidades indígenas da região que abriga um dos principais reservatórios de biodiversidade do mundo. O Serviço Nacional de Áreas Naturais Protegidas realizou durante todo o ano de 2010 patrulhas específicas para o controle da mineração em todo o âmbito da Reserva Nacional Tambopata, já invadida pelos garimpeiros de Guacamayo.

As medidas de emergência do governo não agradam as associações de mineiros de todo o Peru. Contrariados, eles realizaram protestos e bloquearam estradas em várias partes do país no mês de abril. Exigiam a renúncia do ministro Brack e a anulação do seu decreto. Seis pessoas acabaram morrendo na região de Arequipa em um confronto entre manifestantes e policiais.

Garimpeiros afirmam que até agora não receberam nenhuma delegação do Estado com a missão de orientar seus processos de formalização e a busca de solução para os problemas ambientais e sociais do lugar. Para Ernesto Raéz, biólogo e um dos personagens da luta pela conservação da selva de Madre de Dios, uma mensagem humanitária aos mineiros pode ser um grande passo para gerar as condições de governança no setor. “Aqui, como em qualquer parte, as pessoas estão sedentas de conhecimento e anseiam viver melhor”.

* Maria Emília Coelho é jornalista brasileira e viveu quase três anos em Puerto Maldonado, no Peru.

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