Reportagens

Defesa da Floresta do Camboatá une movimento ambientalista no Rio

Enquanto o processo de licitação do autódromo do Rio começa a aparecer nas páginas policiais, movimento em prol da floresta vira referência

Daniele Bragança · Marcio Isensee e Sá ·
17 de setembro de 2020 · 4 anos atrás
Autódromo está projetado para ser construído na parte mais florestada do terreno. Foto: Marcio Isensee e Sá.

A semana começou movimentada nas páginas policiais dos jornais fluminenses. O prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), candidato à reeleição, foi alvo de recente operação do Ministério Público Estadual e a licitação do novo Autódromo do Rio está sob suspeita de ter sido direcionada por Rafael Alves, empresário acusado pelo MP de comandar o ‘QG da propina’ dentro da Prefeitura do Rio. 

O novo autódromo do Rio foi projetado para ser construído em cima de um dos últimos nacos de Mata Atlântica de terras baixas no município do Rio de Janeiro – o último em bom estado. A denúncia do Ministério Público, que os acusados negam, animou o Movimento SOS Floresta do Camboatá, um coletivo que reúne técnicos ambientais, professores universitários, gestores e moradores de Guadalupe e Deodoro em prol da conservação da área.  

“Já estávamos confiantes antes. Essa denúncia só corrobora tudo o que já dissemos nos nossos relatórios e nas nossas denúncias enviadas ao Ministério Público”, diz o ambientalista Felipe Candido, um dos fundadores do movimento. 

((o))eco entrou em contato com o consórcio Rio Motorsports, solicitando entrevista com o empresário José Antônio Soares Pereira Júnior, JR Pereira, na segunda (14), que preferiu não responder nossas perguntas.

O avanço da proposta para derrubar a última área verde em bom estado de terra plana da capital fluminense uniu pessoas na defesa pela floresta, que trabalham voluntariamente revisando papeladas, produzindo pareceres, acionando a Justiça e se mantendo acordados até tarde para se fazer ouvir na audiência pública, realizada em agosto. A campanha também alcançou as redes sociais, com vídeos, fotos e mensagens enviadas para a F1, pilotos e anunciantes. 

“Eles sentiram que não vamos ficar quietos. Esse autódromo não será construído em cima de Camboatá, eles que construam em outro local”, diz o arqueólogo e antropólogo Fabio Origuela de Lira, que também é um estudioso dos peixes rivulídeos, os peixinhos das nuvens. O Leptopanchax (Leptolebias) opalescens criticamente ameaçado de extinção, vive em Camboatá.

Os alagados de Camboatá. As poças menores abrigam os peixes das nuvens. Foto: Marcio Isensee e Sá.

O trabalho está longe de acabar

“O SOS Floresta do Camboatá tem duas fases. Uma é impedir que a floresta seja destruída. A segunda fase é a luta pela criação de uma unidade de conservação de proteção integral na área, para garantir a proteção”, defende André Ilha, do Grupo Ação Ecológica (GAE), ONG ambientalista atuante no estado e suplente no Conselho Municipal de Meio Ambiente da Cidade do Rio de Janeiro (CONSEMAC).

Há duas propostas, uma na Câmara de Vereadores, outra da Assembleia Legislativa, que transformam Camboatá em unidade de conservação. Mesmo se não houver essa decretação de proteção, o terreno, cedido para a Prefeitura exclusivamente para a construção do autódromo, volta para o Exército.

“O Ministério Público Federal já disse que a área pertence à União, sob tutela do Exército e se essa área não for destinada à Prefeitura para se fazer esse autódromo, ela continua sendo da União sob tutela do Exército. Ela não deixa de ser tutelada pelo Exército. Ou seja, desmonta por completo aquele boato, fake news, que a empresa [o consórcio Rio Motorsports] promove, que muita gente acredita, que se não fizer o autódromo, será invadida. Isso é um absurdo, isso é uma mentira”, diz Felipe Cândido, em entrevista a ((o))eco dentro de Camboatá.

Não é mato, é uma floresta

O drone desaparece após dois minutos que levantou voo. De um lado da estrada do Camboatá, que liga os bairros de Deodoro e Guadalupe, na zona norte da capital fluminense, o som dos carros passando e o muro dão a impressão de que aquela área é só um terreno degradado. A impressão vai embora assim que as primeiras imagens do drone aparecem na tela do celular onde está conectado: trata-se de uma manta verde encravada em uma das áreas mais urbanizadas da cidade. A floresta do Camboatá existe – e é linda.

“E tem quem chama isso aqui de mato”, provoca o ambientalista Felipe Candido, nosso guia pelo local. Nosso objetivo inicial era documentar a mata por dentro, mas acabamos tendo que filmar de cima, estacionados do outro lado da estrada do Camboatá, que beira a floresta. Por volta das 16h, conseguimos entrar, mas não avançamos muito. Seguimos pela estrada de chão até a placa avisando que o estande de tiro estava próximo, a 200 metros. De um lado a outro do caminho de terra, capins crescidos margeavam a floresta e invadiam construções abandonadas. Fezes de capivara marcam o caminho.

“Elas vêm dormir aqui de noite”, explica Felipe, apontando para um pátio coberto abandonado. “Essa aqui é uma das áreas mais degradadas, tem muito capim, nada que não dê para ajustar”, explica.

Edição do jornal O Globo de 04 de Agosto de 1958, Matutina, Geral, página 5. Imagem: Acervo O Globo.

A área está sob os cuidados do Exército desde 1904, quando a Vila Militar de Deodoro estava sendo construída. Por ser área de Mata Atlântica em regeneração – no passado parte do local era fazenda de cana-de-açúcar –, a área virou o principal paiol do Exército, local onde se guardavam armamentos e explosivos. Na década de 1950, uma grande explosão ceifou vidas e deixou dezenas de feridos. O paiol acabou desativado por conta disso. A explosão também afetou a mata.

“Uma parte foi degradada e já foi regenerada, pelo tempo que passou”, explica Felipe. Atualmente, a Floresta do Camboatá possui entre 160 a 200 mil árvores em diferentes estágios de regeneração.

O número de árvores é objeto de disputa, entre 140 mil e 200 mil árvores. Mas a quantidade não importa muito, mas sim as espécimes que sobreviveram ali, algumas raríssimas, como a Couratari pyramidata, uma árvore de grande porte que só ocorre na Mata Atlântica do Rio de Janeiro.

“Camboatá é a floresta que sobrou, um remanescente florestal com vários estágios de regeneração, diz o botânico Cyl Farney de Sá, que ajudou no primeiro levantamento de flora do local, em 1985. “Tem muito mais árvores nativas lá que árvores exóticas. Eu sei que aquilo ali é uma joia”, diz Farney de Sá, que é pesquisador do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ).

O levantamento de flora de Camboatá foi feito por pesquisadores do JBRJ a pedido do major Mauro Barroso, que comandava na época o 1º Batalhão de Forças Especiais, e tinha o quartel em Camboatá. “Ele era um cara bem comprometido com a unidade dele, bem esclarecido e ligou para a direção do Jardim Botânico solicitando ajuda”, conta Cyl, que era estagiário na época. Junto com a colega Solange Pessoa, passou um ano visitando o local e coletando amostras. “Seguimos o ritmo do quartel. Eles nos buscavam, tínhamos que almoçar no refeitório, cumprir esses horários que quando estamos em campo não cumprimos. Foi uma boa experiência”, diz.

A floresta do Camboatá ocupa uma área de aproximadamente 160 hectares. No local são encontradas mais de 146 espécies de árvores, sendo 16 espécies ameaçadas de extinção. Segundo o relatório produzido por pesquisadores do Jardim Botânico, há pelo menos 20 hectares de floresta nativa madura, em bom estado de conservação, “além de cerca de 67 hectares de floresta em estágio avançado de regeneração”.

Na audiência pública, realizada no dia 12 de agosto, o representante da consultoria Terra Nova – responsável pelo Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) – Diego Rafael dos Santos Peixoto, passou boa parte da sua fala defendendo que essas espécies poderiam ser plantadas em outro lugar e que a área seria invadida caso não seja transformada em autódromo.

E no princípio houve uma promessa

A ideia de transformar um dos últimos nacos de Mata Atlântica de terras baixas no município do Rio de Janeiro em um novo autódromo tem pelo menos uma década, e esse projeto ganhou forma após o antigo autódromo de Jacarepaguá ter sido destruído para dar lugar a uma arena esportiva. O autódromo já havia perdido parte da pista para a construção de uma arena em 2006, quando a cidade se preparava para sediar os Jogos Pan–Americanos, ocorridos em 2007. Em 2009, quando o Rio foi escolhido para sediar as Olimpíadas de 2016, seu fim foi decretado. A prefeitura escolheu construir ali o Parque Olímpico de Jacarepaguá.

São 160 hectares de vegetação nativa da Mata Atlântica, três vezes o tamanho do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Foto: Marcio Isensee e Sá.

Em 2010, diante das mudanças na legislação municipal para preparar a cidade para sediar a Copa de 2014 e os Jogos Olímpicos, A prefeitura e o Ministério dos Esportes anunciam que o novo autódromo será construído na Floresta do Camboatá. No mesmo ano, a Fundação Getúlio Vargas foi contratada pelo Ministério dos Esportes para produzir um relatório sobre a floresta. O documento não apontou a presença de espécies ameaçadas e viabilizou o empreendimento do “ponto de vista ambiental”.

O parecer da FGV foi apresentado ao Instituto Estadual do Ambiente (Inea) e usado como base para subsidiar a decisão, já em 2011, de dispensar os estudos de impacto ambiental (EIA/RIMA) e liberar a derrubada da floresta. Foi a partir dessa decisão que nasceu o Movimento SOS Floresta do Camboatá.

“De cara o relatório disse que a área não tinha importância. Um sujeito desconhecido, em nome da Fundação (FGV), indo contra a fina flor da Botânica do Rio de Janeiro, que está ali no Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico. Um relatório desses foi vergonhoso”, relembra André Ilha. (Veja a linha do tempo, no fim da matéria).

A decisão de dispensar o Estudo de Impacto Ambiental foi alvo de ação civil pública, pelo Ministério Público, e após percorrer os labirintos do Judiciário, chegou até o Supremo. Na última instância, ficou decidido, em 2018, que o órgão licenciador deveria cumprir com o rito do licenciamento que a legislação ambiental exige.

Antes da decisão do STF, a Prefeitura do Rio  – já sob o comando de Marcelo Crivella – fez uma convocatória para interessados na “implantação, operação e manutenção de Autódromo Parque, na região de Deodoro”. Foi assim que o empreendedor José Antônio Soares Pereira Junior, o JR Pereira, entrou no caminho de Camboatá, pois sua empresa, a Crown Assessoria e Consultoria Empresarial, foi a única que se habilitou a elaborar os termos da licitação que a Prefeitura quis lançar.

Com a licitação aberta, de novo apenas uma empresa se interessou pelo empreendimento, a Rio Motorpark Holding S.A., que pertence ao mesmo dono da empresa que elaborou os termos da licitação. Levou.

Após adiamentos na Justiça, em agosto de 2020 foi realizada a audiência pública, onde os resultados do Relatório de Impacto Ambiental foram apresentados ao público. ((o))eco acompanhou as discussões. “Por pelo menos duas vezes questionamentos sobre o financiamento do empreendimento não foram respondidos, uma feita pelo procurador Daniel Prazeres, e outra feita pelo jornalista Roberto Kaz”, reportamos, em agosto.

LEIA MAIS: Manifestação do público em audiência pública do autódromo do Rio começou meia noite 

Como previsto nos termos da licitação, a Rio Motorpark Holding S.A. tem direito sobre 41% do terreno de Camboatá, que construirá o autódromo na parte mais preservada da floresta. Onde não tem autódromo, o terreno fica à disposição do empreendedor para fazer o que quiser, inclusive prédios para moradias.

Nove dias após a audiência pública, o consórcio enviou uma carta de intenções à Secretaria de Estado do Ambiente e Sustentabilidade do Rio abrindo mão destes 41% da área, que ao invés de serem usados para empreendimento imobiliário serão usados em “projeto de cunho ambiental”.

Em comunicado divulgado pela assessoria do grupo, o empreendedor  promete utilizar 810 mil metros quadrados do terreno como “espaço de preservação ambiental” (o restante terá uma pista de autódromo, oficina e arquibancada). E “sugere que o espaço seja reservado para desenvolvimento de projetos ambientais como de manutenção do patrimônio biótico, Centro de Estudos em Interpretação Ambiental, implantação de um Centro de Recuperação de Animais Silvestres – CRAS, implantação de uma Área de Soltura de Animais Silvestres – ASAS, horto florestal e arboreto. A empresa propõe, ainda, que tais medidas sejam incluídas como condicionantes da licença a ser expedida pelo INEA”, disse a Rio Motorsports.

Pica-pau-verde-barrado (Colaptes melanochloros) na Floresta do Camboatá. Foto: Bruno SCH.

“Esse tipo de manifestação soa para a gente apenas como uma tentativa desesperada de esverdear um projeto absurdo que pretende desmatar uma área de Mata Atlântica importantíssima e que abriga espécies ameaçadas de extinção. Não altera em nada nossa opinião sobre o empreendimento. Não altera em nada a nossa opinião sobre os inadmissíveis impactos ambientais que esse autódromo geraria se fosse construído na área da floresta do Camboatá”, diz o engenheiro florestal Beto Mesquita, que também participa do movimento SOS Floresta do Camboatá. “Eles não alteraram em absolutamente nada o projeto do autódromo, ou seja, considerando que cerca de 20% da área total do Camboatá não tem floresta, mas que o autódromo se concentra justamente na porção mais florestada, como o próprio EIA-RIMA assume, pelo menos 73% da área florestal seriam desmatadas para a instalação do autódromo. Isso, se ele viesse voando e aterrizasse na vertical sobre a área”, acrescentou Mesquita, em conversa com ((o))eco.

A tentativa do Consórcio animou os integrantes do grupo do Movimento SOS Floresta do Camboatá, que viu na carta de intenções um sinal de desespero.

“[O movimento] é uma união espontânea de pessoas preocupadas com o destino de uma área natural que se mobilizam em prol dessa causa. E te digo o seguinte, no panorama atual no Brasil, de desmobilização social e de avanço de toda espécie de ataques ao meio ambiente, hoje ele [o movimento SOS Floresta do Camboatá] está se transformando em uma referência”, diz André Ilha, que foi diretor de Biodiversidade e Áreas Protegidas do INEA entre 2009 a 2014.

 

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  • Daniele Bragança

    Repórter e editora do site ((o))eco, especializada na cobertura de legislação e política ambiental.

  • Marcio Isensee e Sá

    Marcio Isensee e Sá é fotógrafo e videomaker. Seu trabalho foca principalmente na cobertura de questões ambientais no Brasil.

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