Reportagens

Biopirataria

Prisão de alemão que tentava levar ovos de aranha caranguejeira revela inexistência de leis brasileiras contra a biopirataria. Ele foi solto sem processo ou multa e ainda pode voltar ao Brasil quando quiser.

Vladimir Netto ·
30 de setembro de 2004 · 20 anos atrás

Vejam como anda o combate à biopirataria no Brasil. Depois de três semanas de investigação, a Polícia Federal prendeu no último fim de semana o alemão Carsten Hermann, 58 anos. Na mala dele, centenas de ovos de aranha caranguejeira. Hermann foi detido pela Polícia Federal no aeroporto de Brasília quando esperava o embarque para Porto Alegre, de onde seguiria para a Europa. Estava no Brasil há três semanas. Já tinha passado por Campo Grande, Caruaru e Pirenópolis, em Goiás. O objetivo da viagem: coletar aranhas para pesquisa científica voltada para a produção de remédios. Os ovos de aranha estavam em dois casulos, colhidos no interior de Goiás e embalados em papel alumínio para escapar do raio-x. Apesar do flagrante e da confissão de Carsten Hermann, que ainda disse que enviou várias aranhas vivas pelo correio para a Suíça, nada aconteceu com ele. Depois de prestar depoimento por cinco horas na Polícia federal, foi liberado sem indiciamento, sem multa. Sequer foi proibido de voltar ao Brasil.

A polícia acompanhava os passos de Hermann desde a passagem dele por Campo Grande. Vinte e cinco agentes e delegados trabalharam para registrar o biopirata em ação. Ele trabalha sozinho, fala pouco e anda muito. Recolhe as aranhas no mato, em árvores e estava particularmente interessado em uma espécie de aranha que vive debaixo de cupinzeiros, comuns no cerrado. A Acanthofcurria Atrox pertence a um gênero de aranha que está sendo estudada por instituições brasileiras como o Instituto Butantã e a Universidade de Brasília por causa do veneno, eficiente no combate a micróbios. Os ovos eram deste tipo de aranha.

“Estou impressionado com o modus operandi desse cientista ele sabia exatamente o que queria e como conseguir. Se levasse os ovos para a Europa poderia criá-las sem problema”, diz o professor Paulo César Motta, do Departamento de Zoologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília, UnB. Para se ter idéia da mira do alemão, estima-se que existam mais de dez mil espécies de aranhas no Brasil, das quais apenas perto de 3 mil já foram estudadas. Os especialistas imaginam que o pirata cientista estivesse buscando espécies cujo valor já é conhecido, mas que se deparasse com espécies desconhecidas, certamente se interessaria por elas também.

Carsten Hermann recolhia as aranhas e as guardava dentro de garrafas plásticas e saboneteiras. As mais jovens e saudáveis foram enviadas pelo correio para o sócio de Hermann na suíça. As mais fracas, de acordo com uma carta que ele mandou para a mulher, morreram vítimas do tempo seco e do calor da mala, que ficava sempre trancada.

“É a primeira vez que prendemos um biopirata tão sofisticado. Não há a menor dúvida: ele veio ao Brasil em busca de animais que tenham substâncias com potencial para a fabricação de remédios no exterior”, disse o delegado Jorge Barbosa Pontes, chefe da divisão de repressão a crimes contra o meio ambiente da Polícia Federal. Mesmo com tantas provas na mão, o delegado Pontes esbarrou num fato insólito: o crime de biopirataria não está previsto em nenhuma lei brasileira. É como se não fosse crime. A polícia ainda enquadrou Hermann por tráfico de animais silvestres. Mas este crime é considerado de menor gravidade pela lei brasileira. A pena varia de seis meses a um ano de detenção e multa, mas na maioria absoluta dos casos o acusado é liberado sem pagar nada. Foi o que aconteceu com Hermann. “Sei que cometi um erro, mas acredito que as aranhas brasileiras precisam ser estudadas. Elas podem ter um grande potencial no futuro”, disse o alemão antes de ir para o aeroporto e de deixar o país sem esperar qualquer decisão da Justiça. E a polícia nem pode proibi-lo de voltar quando quiser.

A falta de uma lei contra a biopirataria, só ajuda a aumentar os casos de pilhagem da natureza brasileira. E prisões como a de Hermann são raríssimas. O mais comum é que ninguém seja preso. De acordo com a Ong Renctas (rede nacional de combate ao tráfico de animais silvestres), o tráfico de animais retira da natureza no Brasil, todo ano, 38 milhões de espécimes. Um mercado que no mundo movimenta cerca de US$ 10 bilhões por ano. O Brasil é responsável por 10% deste comércio. O governo poderia estar ajudando a reverter esse quadro. Há um anteprojeto de lei contra a biopirataria em estudo que prevê pena de até 12 anos de prisão. Mas ele começou a ser feito em abril do ano passado e até hoje não está pronto. Nove ministérios, sob a coordenação da Casa Civil da Presidência, participam da discussão. A dificuldade é estabelecer um controle que fiscalize as ações ilegais mas que não impeça as atividades de pesquisa. A base do texto é um projeto apresentado doze anos atrás pela então senadora petista Marina Silva, hoje ministra do Meio Ambiente. A proposta prevê penas de um a quatro anos de prisão para quem explorar material biológico sem autorização. A pena máxima, de doze anos, é para quem tiver a intenção de colher material para produzir armas químicas e biológicas. A previsão do governo é de que este projeto seja enviado para o Congresso até dezembro. Até que ele seja aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, os biopiratas vão continuar livres para agir.

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