Reportagens

Apartheid no sertão

Os calungas, que vivem em quilombos de Goiás, são ameaçados por fazendeiros e invasores, perdem suas plantações e aguardam a inundação das hidrelétricas.

Carolina Mourão ·
10 de setembro de 2004 · 20 anos atrás

Os calungas são descendentes de escravos fugidos do trabalho cruel nas minas de ouro do nordeste goiano no século XVIII. Durante 250 anos, eles se isolaram nos fundos dos vales dos afluentes do rio Paranã, que fica nas bordas do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Em lugar seguro, misturaram o sangue ao de índios, posseiros e fazendeiros, criando uma cultura híbrida, católico-africana no sertão goiano.

Achava-se que o tempo de fuga e medo havia acabado. Hoje, problemas ambientais se misturam com novas ameaças de perseguição e morte que rondam os calungas. Alguns deles, dentro do sítio histórico, precisam se esconder sistematicamente de um grupo de fazendeiros que reclama a posse das terras, armados e prontos para atirar.

São muitos os quilombos espalhados pelo Brasil. Em Goiás, os calungas que vivem nos municípios de Cavalcanti, Monte Alegre e Terezinha de Goiás. Os calungas, ou Kalungas – como preferem os pesquisadores – enfrentam problemas contemporâneos. Por exemplo, a construção de não só uma, mas três hidrelétricas no sítio histórico destinado aos remanescentes de quilombo da Chapada dos Veadeiros. É a pressão de Furnas, que promete proteção, monitoramento e recuperação de áreas destruídas pela obra. Tipo de assunto para profissional. Impotentes, resta aos calungas vigiar a exploração de minerais, da água e da madeira do sítio, que vira lenha todos os dias. As queimadas em terras fronteiriças, para formar pasto, atingem quase sempre a localidade, matando animais que também são fonte de proteína dos calungas. O fogo é levado pelos ventos do Planalto Central de um terreno para o outro, o prejuízo é inevitável. Bom para os fazendeiros, que encontram mais uma forma de forçar a saída dos calungas de uma área que os fazendeiros acreditam pertencer a eles. Com eles, a disputa de terras é antiga celeuma.

De trinta anos para cá, a pressão aumentou. O que antes era um incômodo, passou a ser ameaça. Cerca de 50 donos de terras controlam, de fato, metade dos 237 mil hectares da área definida em 1995, que de acordo com uma lei estadual é um Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga. A área disputada, 30% do sítio, é de sertão fértil. Hoje, os calungas são proibidos de fazer roças e criar animais, parte fundamental de sua cultura, e estão vivendo em situação de penúria. Os fazendeiros argumentam que impedir o plantio de plantas com raízes é fundamental, porque caracteriza a posse. Antes isolados, agora os calungas estão cercados e vigiados, num clima permanente de ameaça. A situação se torna mais difícil quando os bois avançam sobre as roças e os calungas são obrigados se esconder para espantar o gado, deixando outras atividades diárias pendentes. As únicas culturas permitidas são a banana, a mandioca e o algodão, que está desaparecendo e dele se fazia vestimentas. A mandioca é a principal mercadoria da região. A luta pela comida tem se tornado um desafio. O terreno destinado à construção das hidrelétricas vai tomar metade das terras onde estão as roças. Não é difícil fazer uma projeção: carência de roupas, falta de alimento. Miséria nunca vista antes entre os calungas, que vivem com simplicidade muito particular, mas não dependem da ajuda de ninguém.

As nascentes também estão secando por conta dos novos poços artesianos irregulares de invasões que beiram o sítio. Além disso, o projeto de construção das três hidrelétricas próximas ao Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros está previsto para ser realizado dentro do território calunga: são as represas de Santa Mônica, Funil do Paranã e Foz do Bezerra.

Os jovens, que não fazem questão de se isolar das influências externas como seus pais, acabam cedendo aos apelos e às promessas do chamado mundo desenvolvido, e quase sempre abandonam as famílias e os costumes para tentar a sorte nas cidades. Lá, trabalham como pedreiros ou empregadas domésticas. Com a fuga dos mais jovens, nos pequenos povoados onde os calungas vivem há 250 anos, a população está diminuindo e envelhecendo. Com os velhos, vão-se as tradições orais, costumes e lendas peculiares.

Lenha no fogo – Uma Medida Provisória editada em 2001 determinou que o poder de emitir títulos de terras para remanescentes de quilombos em todo o país passaria a ser atribuição da Fundação Cultural dos Palmares. A intenção era boa. O presidente Fernando Henrique Cardoso considerou que não cabia indenização para os fazendeiros que reclamam direitos de propriedade nessas áreas, baseado em um parecer jurídico da Casa Civil da Presidência.

Mas o que seria um sonho para os descendentes de escravos, tornou-se um pesadelo. Em Goiás, os fazendeiros, que antes se mostravam dispostos a deixar suas terras em troca de uma indenização, mudaram de idéia e passaram a tratar os calungas como ladrões de terras e inimigos em potencial. Em Cavalcanti, o dono do cartório se recusou, na época, a registrar o título emitido pela Fundação Palmares para os calungas. Em Campos Belos, o juiz, que responde pelos três municípios abrangidos pelo Sítio Histórico, até hoje não decidiu o que fazer. Enquanto pensa, concedeu uma liminar de reintegração de posse a um fazendeiro que reclama para si 900 alqueires em uma área habitada por calungas, dentro do Sítio Histórico, em Terezinha.

Há vários meios de expulsar pessoas de uma região. A forma que os fazendeiros goianos têm escolhido para retirar os calungas de seu lugar ancestral é das mais cruéis. Ainda não atiraram, apesar das constantes ameaças. Escolheram como método secar por dentro uma cultura rara, fruto do desejo de liberdade que também floresceu no sertão do Brasil. Cercados por todos os lados, os calungas da Chapada dos Veadeiros não cedem às pressões. É parte da tradição deles resistir até o fim.

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